domingo, 31 de agosto de 2014

Marina: arco e flecha

* Elson Martins

Marina Silva: "Todo partido tem em seus quadros pessoas
boas e más" (Foto: Ernesto Rodrigues/Agência Estado)



Se tivesse lido o poema “Arco e Flecha”, de autoria da candidata a Presidência da República Marina Silva, do PSB/Rede Sustentabiidade, o âncora do Jornal Nacional da Globo, Willian Bonner, teria errado menos quando a entrevistou quarta-feira passada. Aliás, ele e também Patrícia Poeta, a quem Marina provocou dizendo que conhecia pouco de Amazônia.

Do arco que empurra a flecha,
Quero a força que a dispara.
Da flecha que penetra o alvo
Quero a mira que o acerta.

Aí está uma primeira lição. A força da Marina, que não é pouca, vem da consciência de outro mundo, de uma natureza desafiadora, de uma coragem pouco usual nos espaços ditos civilizados. Lá, no adentrado da mata acreana, a sobrevida vale um marco civilizatório.

Do alvo mirado
Quero o que o faz desejado.
Do desejo que busca o alvo
Quero o amor por razão.

Tudo parece fluido e incerto, porque é nisso que paira a beleza, a paz, a harmonia entre as pessoas, os animais, os vegetais. Marina quer, antes de tudo, saber o que faz o alvo desejado. E qualquer código antecipado atrapalha. Atrapalha o fluir do desejo que procura no alvo o amor por razão.

O jornalista Bonner, que com sua arrogância cultural mais parece um delegado de policia de periferia, fica indócil, querendo esmagar o que não reconhece. E Marina percebe sua aflição, aproveita e se vira pra câmera, para falar diretamente ao povo brasileiro. Ela propõe uma “politica nova” que não se guia por siglas suspeitas, mas por pessoas: “Todo partido tem em seus quadros pessoas boas e más” – diz. Ela não vê vantagem em apartar pessoas de diferentes partidos que querem a mesmo coisa pelo bem do Brasil.

Bonner e Patrícia , aparentemente, não concordam com isso. Ou não entendem a grandeza desse sentimento.

Sou o arco, sou a flecha,
Sou todo em metades,
Sou as partes que se mesclam
Nos propósitos e nas vontades.

Quando a dupla entrevistou Dilma Rousseff, do PT, uma semana antes, a postura policialesca foi igual, mas as respostas não tinham a mesma sabedoria das de Marina Silva. Talvez porque Dilma não seja “metades que se mesclam” e por isso mostrou-se vulnerável à dupla de inquiridores. Também porque, por trás da TV Globo, tão bem representada pela dupla, rosna um monstro capitalista com ambições desvairadas, pronto para eliminar discordâncias.

É esse quadro que expressa o poder republicano brasileiro. Sua toca fica no eixo Sul –Sudeste- Centro-Oeste. Lá ele se alimenta de dólares, intolerância, disputas e ganâncias. Num processo eleitoral como o de outubro de 2014, a personagem Marina destoa e ameaça, como, aliás, as pesquisas feitas recentemente apontam. Na última, divulgada na quinta-feira, 29, Marina empata com Dilma Rousseff e deixa o candidato preferido (do monstro) na rabeira.

Num eventual segundo turno, Marina bateria Dilma, com 10% de vantagem. Mas Marina e Dilma apresentam alguma semelhança,  poderiam até se tornar parceiras por um mundo melhor, no mesmo lado da boa política.

Ainda assim, Marina e aqueles que apostam nela, em todo o país, preferem a experiência nova, dita “almatica”, para questionar as verdades propaladas até aqui em economia, cultura, desenvolvimento etc. Aguardam mentes mais abertas e corações que enxergam as partes invisíveis da sociedade. Ou seja: melhor apostar na liberdade e na sutileza mais fecunda das pessoas.

Sou o arco por primeiro,
Sou a flecha por segundo,
Sou a flecha por primeiro,
Sou o arco por segundo.

(poema Arco e Flecha, de Marina Silva)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Marina: o Acre na cabeça!


* Elson Martins



A seringueira Marina Silva, a caminho
de um "empate" (Foto: Tião Fonseca)
Acabo de ler na UOL que Antônio Campos, irmão do candidato Eduardo Campos (PSB) à Presidência da República, falecido na manhã de quarta-feira num desastre aéreo, em S. Paulo, apoia a indicação de Marina Silva (a vice) para substituir Campos na cabeça de chapa. Devo admitir que a noticia calou bem no meu coração ideológico, de esquerda, acreano e amazônico.

Estava propenso a votar na Dilma, do PT, mas se o nome de Marina for confirmado, vou alterar a escolha, para ser coerente com os sentimentos que moldam minha vida. Entendo que Marina terá mais compromisso com o Acre e com a Amazônia que a Dilma, porque é filha de seringueiro; porque abriu caminho numa vida sofrida na floresta; porque é iluminada e sabe enxergar com o coração as necessidades fundamentais dos povos da Amazônia.

Pessoalmente, até que tenho queixa contra ela. Acho que nunca deu muita importância ao jornalismo que pratico no Acre há meio século, supostamente, porque não fiz parte (sou mais velho) do iluminado grupo de História da Universidade Federal do Acre que ela liderou e arrastou para os movimentos socioambentais e para a politica, com brilho. Ou porque nunca aprendi a rezar.  Ou, ainda, porque escrevi um texto discordando do projeto de florestas públicas que ela aprovou quando ministra do Meio Ambiente no governo Lula.

“Mas o negócio não é bem eu...” 

Lembrei da música “Minha História”, do compositor e cantor João do Vale. Analfabeto, nascido no pequeno município de Pedreira, no Maranhão, aos 16 anos migrou para o Rio de Janeiro e foi trabalhar na construção civil. Na época já compunha baião, tão bem, que um deles caiu nas mãos da famosa Dalva de Oliveira que o gravou. Seus amigos de profissão riam quando dizia: “Olha, essa música que a Dalva está cantando no rádio é minha”!

Quem ia acreditar naquele negrinho bobo dos anos cinquenta? Só mais tarde, em plena ditadura militar, levaram pro palco o autor de  “Carcará”, “Pisa na Fulô”, “Carolina”... E de “Minha História”, esta gravada por Chico Buarque de Holanda:

Seu moço, quer saber, eu vou cantar num baião
Minha história pro senhor, seu moço, preste atenção

Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá
Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar
A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar

E quando era de noitinha, a meninada ia brincar
Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:


-O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar

Hoje todos são "doutô", eu continuo joão ninguém 

Mas quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém
Ver meus amigos "doutô", basta pra me sentir bem

Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz,
Ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis
E dizem: - João foi meu colega, como eu me sinto feliz

Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão,
Que também são meus colegas  e continuam no sertão
Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião


Embarco nessa sabedoria. Não vou escolher Marina para o meu próprio bem; eu a escolho pelo bem dos acreanos de um modo geral, sobretudo, dos que ainda não puderam estudar e “não sabem fazer baião”. Quero o bem dos extrativistas, dos indígenas, dos agricultores  mal assistidos... Quero o bem dos ribeirinhos, das famílias que foram expulsas de suas colocações na floresta, num passado recente (décadas de setenta e oitenta), e tiveram que migrar para as cidades acreanas onde vivem ainda desarrumadas, dependendo de mais investimento estadual e federal para melhorar de vida.

Reconheço que o Acre avançou muito nos governos do PT e da Frente Popular,  e que Lula e Dilma fazem bem ao estado e ao Brasil. Mas, no cenário politico atual, vejo Marina próxima da ideia de sustentabilidade, mais que os demais candidatos à Presidência. Também me anima saber que ela participou das comunidades eclesiais de base da igreja de D. Moacyr Grechi, foi amiga de Chico Mendes e lutou, com coragem e inteligência, contra a destruição de nossas florestas.

Ah, ela é (ou foi) amiga dos irmãos Jorge e Tião Viana, e ajudou a fundar o PT.


N.A: Texto publicado na sexta-feira, 15, no jornal A Gazeta, no Acre.


domingo, 10 de agosto de 2014

Misturado e perigoso

*Elson Martins

A eleição para governador do Acre de 2014 é a terceira em que sou levado a votar com sobrosso, pensando no risco de entregar nossa terra a um grupo de pessoas estranhas à sua história, cultura e tradições. Portanto,  pessoas sem identidade com os nossos sentimentos e modos de vida, que tentam nos impingir a barbárie que trouxeram de outras regiões. Em 2002, 2006 e 2010, escrevi meus temores de que, entre “Nós”, acreanos nascidos ou de coração, e “Eles”, representados por agressores que nos anos 1970/1980 agiam como se fossem “os novos donos do Acre”, tivéssemos que abrir mão de nossas conquistas como povos da floresta para cair na ambição capitalista que os movem.

O quadro que vejo na politica atual é difuso, uma mistura de siglas e discursos que dificulta a opção pelo voto consciente, sobretudo, entre os eleitores mais jovens, que não possuem a memória do que aconteceu por aqui há três décadas. Sei que o que aconteceu é recente, à luz da história, mas a novidade da informação eletrônica, a ascensão do capitalismo no mundo e os erros políticos de quem não consegue valorizar o protagonismo de quem faz a nossa resistência, acabam abrindo uma fresta perigosa aos inimigos da acreanidade.

Um observador atento poderá enxergar, mesmo no amontoado de asneiras que é  lançado diariamente nas redes sociais, pela internet, a força politica que permanece viva entre as nossas raízes. Uma simples fotografia da Gameleira num fim de tarde desperta, como se viu esta semana na Fanpage do senador Jorge Viana, uma unanimidade amorosa, um sentimento verdadeiro de quem se enleva com uma natureza exuberante, de cujo mistério, certamente, vamos poder construir o mundo novo e bom que tanto queremos para todos. O mesmo sentimento estava presente, há duas ou três semanas, nos espaços da universidade Federal do Acre, apinhados de jovens curiosos e esperançosos, durante a 66a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Nos amplos e promissores espaços fervilhavam gerações num diálogo entre saberes, entre tradição e modernidade...

 Seringueiros preparados para um "empate" na Fazenda Bordon, em 1987. (foto: Elson Martins)

Era como se a universidade estivesse acordando de um sono profundo, abrindo os olhos para enxergar o conhecimento dos extrativistas e dos indígenas, dos povos da floresta, o amor e a irreverencia dos jovens, a mente aberta dos cientistas apontando para o admirável mundo novo de uma comunidade fraterna possível.  Esse mundo está tão perto: está na periferia de nossa morna cidade, nas beiras de rios que desbarrancam preguiçosamente; nas periferias pobres, mas solidárias de nossas cidades e vilas; no conhecimento ancestral que decifra venenos e curas; nos gestos suaves e sábios de quem há séculos dorme com a natureza e sonha, sem maldade, para acordar com o rosto limpo e belo da simplicidade.

Ah! Doutores!  Políticos! Gestores da vida pública! Ah! Candidatos que exploram as dores do povo! Não se deixem enganar pelas aparências. Aquele senhor que vende pipoca e bombons numa birosca na esquina sabe mais que vocês, sobre como entrar e sair da floresta densa e não se perder nela; conhece remédios e fibras; sabe os nomes de quem vive muito longe; não se ofende com a solidão; tem tantas ideias simples de como viver em paz.. Sem ambição! A natureza está em nós, acreanos, e atrai, às vezes, com o hálito quente da jibóia que precisa se alimentar. Mas isso não é dominação. Não é arrogância. Não é desejo mesquinho de se apropriar de corações e mentes.

A história do Acre é uma história de bravos que orgulha aos filhos e os empurra para a resistência contra os invasores que ofendem. Essa é a politica que está em jogo nas eleições de 2014. Durante cem anos vivemos como povos invisíveis, alimentados por duas espécies da floresta – a seringueira e a castanheira. Hoje, sabemos que podemos viver outros tempos mais longos, com novas espécies, descobertas ou a serem descobertas, porque a riqueza do estado é a floresta e os que a reconhecem como tal.  Não precisamos de agouros de quem quer colocar outra forma de vida no seu lugar.

Se isso é um recado? Acho que sim! E o deixo, a quem interessar possa, porque não quero ver o Acre parecido com São Paulo, ou com o Paraná, ou com o Mato Grosso. Quero ver o Acre prosperar e se tornar um lugar bom para se viver, mas com a cara do Acre. Com a riqueza da sua floresta explorada com parcimônia, sem destruição e partilhada por todos.

Quem duvida que isso seja possível, procure acompanhar o encontro internacional do GCF que vai acontecer em Rio Branco no período de 11 a 14 deste mês. Especialistas de 7 países (Estados Unidos, Brasil, Indonésia, México, Nigéria, Peru e Espanha) vão apresentar estratégias e propor negociações que garantam pagamento a quem não desmata e, portanto, não lança dióxido de carbono na atmosfera gerando o efeito estufa. Quem age assim, presta um serviço ambiental: preserva a Natureza, salva o Planeta  e, claro,  precisa ser bem pago.



segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quem tem medo de Leila Jalul? (final)

* Por Vássia Silveira

Exercício nº 3 (Leila Jalul)

** Para ler a primeira parte da entrevista clique aqui.

E a literatura enquanto escrita, como e quando ela entrou na sua vida?

No livro Coisas de Mulher eu contei sobre viver enlatada na burocracia e entalada ao lado do Marmo. Por toda uma vida escrevi despachos, pareceres, ofícios e memorandos. Quando separei do Marmo e quebrei a perna em oito lugares, fiquei de cama e aproveitei para chamar a vida à tona.

Foi quando comecei a ensaiar as primeiras letras queridas. Tudo muito simples e eivado de contradições.  Decidi dar uma voltinha na infância e foi ai que começou a minha vida de artista. Um dia, Elson (Martins), Toinho Alves e Altino Machado foram comer meu rabo no tucupi e foi quando falei que tinha uns textos guardados. Altino já tinha o blog. Eu nada sabia de computador. De Olivette e Remington, sabia tudo.

Para mandar o primeiro texto foi uma novela. Fui xingada e execrada. Altino me chamava de burra! Depois o Elson também gostou. Outros gostaram. E foi assim. Foi assim que nasceu Suindara.

Isso foi em que ano, Leila?

A realidade dos fatos é uma: Marmo sofreu até conseguir separar de mim. Hoje entendo isso. Não foi nada fácil. O ano de ensaio da separação foi 1993. O da separação propriamente dita foi 1995, começo de 95. Neste mesmo ano lancei Coisas de Mulher. Eu já sentia necessidade de escrever. Morri muitas vezes para dar vida ao Marmo. Ele era pesadão. E negro! É difícil ser negro, é difícil ser pobre. Ser pobre e negro!

Ouvi coisas aí no Acre que não me permito lembrar. Muitos amigos meus não entendiam o meu vigor casado com o peso do Antonio. Mas se quiser ser honesta, decente e falar de amor de forma clara e limpa, digo: Marmo foi o único amor que tive na vida. Pena que ele não sabia disso. Senão... (teria corrido atrás de outro rabo de saia bem antes!)

Voltamos pra estaca zero? Ao início?

Não, acho que voltamos aos amores... Até que ponto você acredita que o amor (e mais ainda sua ausência) é alimento para a literatura?

Você conhece algum poeta alegre e saltitante? Se a dor ensina a gemer...

Sou chegada aos parnasianos. Aos românticos. Aos viscerais. Gosto de Augusto dos Anjos. Agora mesmo vou te mostrar a cobra e o pau de um dos meus poemas baseados nos simbolistas. Aguarde. É cheio de aliterações e de dor.

Masocação
ah! como eu adoro uma calamidade pública…
como eu escolho emergir pro fundo
e brincar na lama
e amamentar a dor
ah! como eu adoro!
banhar-me nas minhas próprias lavas,
chicotear-me, atar-me com minhas próprias tripas…
ah! como eu adoro!
invocar espíritos cancerosos para chorar
e é tão fácil!
vou nas gavetas e reavivo o tempo da tuberculose
arranco o Cruz e Souza das cavernas
é como se vivesse nas ruelas de N. Sra. do Desterro, hoje Florianópolis.
ah! como eu adoro!
fazer aliteração com os sons da minha hemoptise
de vermelho cardeal,
de emitir vagidos,
ah! como eu adoro!
fazer bandeiras com tiras da minha pele
que eu mesma retiro e seco ao sol,
com o sal por mim retido
esfrangalhar a alma, fritá-la em alho e óleo
ah! como eu adoro!
me enterrar torrando na quentura do fogo
que acendi
que me cozinha viva
ah! como eu adoro!
deixar cair uma mosca em minha sopa!
e ser a mosca no meu quarto
azumbizar!

Você tinha falado antes que morreu muitas vezes para dar vida ao Marmo. Como era esse "morrer"?

Depois de nossa ida para São Paulo ele foi trabalhar na Globo. Deixei de ser a Leila para ser uma brega do Acre casada com o Marmo globeleza. Para arrumar a vida a dois perdi muito da espontaneidade. E da vergonha, também! A Globo, o ambiente da Globo, numa cidade do interior paulista,  mudou a personalidade do rapaz. Eu vi e senti as coisas assim. Ele deve ter a versão dele.

Como vocês se conheceram?

Conheci o Marmo em 69. Ele foi para o Acre junto com o Sílvio Martinello, cumprir um expurgo. Ambos eram seminaristas (frades) e escreveram um artigo com uma imagem de Jesus atrás das grades. O título do artigo era O Procurado. Essa é a história que sei. A que gravei na mente.

No Acre, continuaram freis e faziam o programa da Ave Maria na Rádio Difusora, acho. Eu, na época, fazia parte de um grupo de jovens sob o comando do Clodovis Boff, primo do Leonardo (Boff). As reuniões dos jovens aconteciam na residência dos padres, no segundo piso do Colégio Meta e numa saleta de uma igrejinha que derrubaram. Havia muito mais que isso e muitas outras pessoas conhecidas, mas preciso resumir.

Foi através desse grupo de jovens que conheci o meu primeiro marido, um alemão de boa índole. Com ele namorei e casei. Ele trabalhava como monitor do Senai e também morava na casa dos padres.

De 69 até 77, 78, convivi com o Marmo como “maninhos! Ele ficava no Acre, ficava em São Paulo... Nos correspondíamos, enfim.

Em 77, 78, não lembro ao certo, já separada, Marmo foi à minha casa e...rolou! Ele já não era mais frei. Era homem. Só homem!

Ah, então você teve um casamento anterior?

Sim, casei com o alemão que dava aulas de marcenaria na oficina dos padres. Um homem bom. Casei de papel passado. Vivi apenas quatro anos com ele. Viramos amigos. Também sou "amiguinha" do Marmo. Com reservas, mas sou.

E como era o nome desse pastor alemão?

Altir Bretz. É o pai do Eulen. Até pouco tempo atrás eu o via. Ele sempre visitava o filho na Bahia.

Como é ser amiga, com reservas, do grande amor?

Por ter perdoado a falta de lealdade. O fato do seu homem arranjar e desejar uma nova parceira, é bastante comum. E não é caso de vida ou morte. Mas que avise a idiota que lhe queria bem. Foi esse o grande pecado do Marmo: deslealdade. Ele viveu vida dupla por cinco anos.

Não posso falar de fidelidade. Isso é outro departamento! Bastava que tivesse sido leal. Como na música da Nora Ney, eu sairia pela porta por onde entrei. Mas uma coisa é certa: se Marmo me fez mal, também devo ter feito muito mal a ele.

O importante é ser passado. É ter passado. É estar aliviada.

Leila, quando eu voltei para o Acre, em 1999, você parecia estar vivendo um autoexílio. Era isso mesmo?

Sim. E nele continuo. As decepções me fizeram arredia. Ganhei de presente uma síndrome do pânico e minha vida desandou.

Agora sei que ainda tenho o pânico, mas decidi que ele não me tem. Desmamei do Rivotril e dispensei os psicólogos e psiquiatras. De l993 a 2012... Chega, não é?

Minha terapia é escrever. Como disse alguém aí do Acre, escrever é distribuir abraços. No meu caso, escrever é tirar espinhos do peito. Tiro do meu e enfio no dos outros.

A palavra, então, ocupa papel importante na sua vida...

A palavra, a latinha e o cigarro. Ainda não tive vergonha para abandonar o vício. Apenas reduzi. Também reduzi as latinhas. As palavras podem correr frouxas! Não têm efeitos colaterais.

Como é seu processo de criação?

Não tenho processo. Tenho estalidos. Às vezes lembro de uma música, ou de uma pessoa, ou de um caso e anoto.

Sou uma pessoa descuidada com a escrita. Preciso cuidar das vírgulas. Preciso não cansar o leitor. Sei que meus livros (já estou preparando o sétimo) jamais despertarão o interesse dos “grandes” editores. Nem penso em venda. Estou sob exame de uma editora que tem nome de gigante. E que vai ser gigante. Vamos ver o que acontecerá.

Quando decidi sistematizar o que escrevo e colocar em livros, acredite, foi por puro deleite. Talvez queira que meus netos saibam quem foi a avó deles.

Acho que é isso.  Estou pensando em dar uma parada em publicar nos sites e blogs. Tenho algumas ideias para me aventurar num romance. Já tenho até o título: A Cornuda do São Francisco. Bem sugestivo, não? É que eu morava no Bairro São Francisco.

O que é um bom conto para você?

É o que os outros escrevem! 

Gosto dos contos que deixam coisas em suspenso. Mas tenho pecado com a obviedade. Gosto de contar coisas que aconteceram. Daí o pecado: as coisas ficam com começo, meio e fim... Se eu soubesse, escreveria contos sem final. O leitor que decidisse. Tem um autor que não lembro agora que não finaliza nada. É como um “cointo" interrompido.

Leila em sua Primeira Comunhão, na Igreja
São Sebastião, em 20/04/1956 (aquivo pessoal)

Como você vê a literatura produzida no Acre?

Não tenho lido nada daí. Li o primeiro livro do (Sílvio) Martinello e gostei muito. Não li os outrosdois por falta de uma visão decente. Gosto do Marcos Vinicius. É um historiador, eu sei. Não li o Moisés Diniz. Gostaria mesmo de ler um livro escrito pelo Toinho Alves e outro pelo Elson. Talvez fosse bem genuína. Bem acreana. 

(
Recebo outro e-mail de Leila: Não respondi bem essa pergunta. Acho que feri o Miguel Ferrante, o José Potiguara, a Florentina e outros. Outro dia, lendo o Terras Caídas, vi em alguns textos meus o embalo dos dele - do Potiguara. Posso dizer uma coisa? Prefiro ler coisas mais universais.)

O que faz um bom escritor?

Em primeiro lugar ler, ler muito! Depois, não se achar um bom escritor. Sempre querer melhorar. E essa melhora só acontece se ler muito, escrever muito e sempre achar que não é gênio. Que para ser ruim ainda tem que melhorar muito.

Há autores que dizem escrever para si mesmo. E você, para quem escreve?

Bem, eu continuo achando que escrevo para que meus netos saibam quem foi a avó deles. Escrever para o site do Lima, no entanto, traz um bom retorno para os meus ouvidos. As pessoas dizem gostar. E eu acredito.  Em primeiro lugar, penso que quero deixar algo para os meus netos. Isso que dizer que faço testamento e não literatura. É certo?

Não sei, mas isso me faz pensar: você acredita que a literatura pode ser espelho do que chamamos de “realidade”? Quer dizer, é realmente a Leila Jalul quem fala em seus textos?

É, sou eu mesma. Às vezes pareço estar recebendo procuração de alguém que já se foi... Isso é brincadeira. O que sai no papel sai de mim. Dizendo melhor, o que sai na tela, é fruto da minha realidade.

Alguns textos seus, como o Rosa dos Ventos e o Oleiro Galanteador, ambos de Minhas Vidas Alheias, parecem endossar a ideia de Sartre de que o inferno são os outros...

Parece sim, só que a gente presencia e até vive o inferno dos outros. Eu adoraria ser uma Maristela (personagem de Rosa dos Ventos), acredita nisso? Maristela reagiu. Adoro mulheres que reagem. O caso é verídico e tive que me contorcer inteira para contá-lo. Os personagens são vivos, ainda. Acho que são...

O Oleiro, idem, ele reagiu às imposições da professora louca. O inferno do João José também foi presenciado por mim. O inferno dele foi o meu. Senti na pele o que foi um garoto simples ser execrado publicamente por uma pessoa que não conhecia a realidade em que ele nasceu e viveu. Assumo as dores alheias, ao que parece.

Nesses casos, os personagens tomaram conhecimento dos textos?

Não. Camuflei o suficiente para despistar os acontecidos. Enfeitei o maracá. Deixei morto quem estava vivo e dei vida a quem estava morto. Costumo agir assim. Como também costumo inserir fatos que nunca aconteceram. Ou casar acontecimentos. Tenho um conto que envolve três acontecidos. É a famosa “casadinha” ou o econômico “três em um”. (risos)

Esse camuflar cabe na Luzinete ou não? Fale um pouco dessa personagem...

Não. A Luzinete é tudo verdade. Só que a Luzinete são muitas. E todas elas sabem o que escrevo. Exceto uma: a verdadeira. Mas há poucos fatos sobre ela. A maioria é de Lúcia, Luziene, Lucila e Patrícia. Mas acho bom não revelar o que é de quem.

Tenho uma admiração enorme pelas meninas. A baianada é muito boa de prosa e faz coisas muito engraçadas. São meninas espirituosas até no sofrer.

Outro dia fiquei embaralhada e comecei a confundir as peruas. Contei para a Patrícia sobre um texto que escrevi contando que Luzinete caiu dentro de uma sepultura e até pisou na alça do caixão. Não havia sido a Luzinete e sim, a própria Patrícia! Ainda hoje, lendo a boneca que o André está preparando, percebi que faço confusão entre as protagonistas.

Estive com muita vontade de acabar com a Luzinete. Criar um acidente fatal e fazê-la desaparecer da minha vida. Mas desisti de matá-la. Como crônica, para quando falta assunto, ela é perfeita.

Em que situação você chegou a pensar em matá-la?

Quando começou a minha confusão mental, pensei num acidente de carro. Vi que seria mórbido demais. Pensei numa despedida por mudança de cidade, bem mais tranquilo. Mas acontece que as Luzinetes principais que são a Patrícia e a Luziene estão todos os dias aqui em casa e desde que aqui cheguei.  Já lá se vão quase cinco anos. É na minha cozinha que acontecem as aulas de culinária e onde se joga conversa fora. Patrícia toma conta de mim como se eu fosse a mãe dela. Nos meus dias de desespero ela chora junto, quando fiquei hospitalizada ela esteve junta.

O livro de Luzinete, a bem da verdade, ficou como o nascer e o crescer de uma amizade que começou de forma torta.

Patrícia não sabia ler uma letra. Eu ficava com medo de tomar qualquer medicamento que ela me entregava. De conversa em conversa, incentivei-a a estudar e hoje, para minha alegria, ela está no que corresponde à antiga quarta série do ensino fundamental. Sua vida modificou completamente. E a da família, também. Ela batia muito nas crianças (4) e, de conversa em conversa, não levanta mais a mão para bater. O marido tem vitiligo. Expliquei para ela sobre a doença e hoje, graças a ela, não existe mais a vergonha que ele tinha de fazer sexo sem estar vestido dos pés à cabeça.

Há uma troca, entende? Não dá para pensar em fazê-la deixar de existir. Meu grande pecado foi juntar um monte de Luzinete num livro só. Ainda assim, consegui (os textos começaram com um propósito e o livro construiu outro.)

Você continua pintando?

Que nada! Furaram meus óios! Fiz uma cirurgia que não deu certo. Todo o humor vítreo do meu olho vazou e perdi um tanto de visão. Estou aguardando um momento para operar a outra vista (o estepe). Preciso de uma clínica e de um médico de alta especialização.

Mas minha pintura era medíocre demais, não me faz falta. Escrevo um pouco melhor do que pinto. Meu forte, no entanto, é o fogão!  E minha missão agora é acabar com a formatação do Luzinete e entrar na correção dos novos textos para o novo livro. Também de contos e mais aprimorado.

O que você anda cozinhando no seu fogão?

Comida acreana: feijão com maxixe, couve, quiabo, jerimum e jabá e rabada no tucupi. Também faço uns vatapás e outras comidinhas baianas. E comida síria, minha especialidade maior.

Além do Luzinete você está organizando outro livro? Para quando?

Sim. André estará aqui em casa até o dia 10 de julho para tocarmos o novo empreendimento. Este, ainda sem título, será prefaciado por Henrique Silvestre.

São trinta e poucos contos. Selecionaremos uns 25 ou mais um pouco. É que não parei de produzir.
Durante a estadia dele aqui arrumaremos o Minhas Vidas Alheias que ficou com uns defeitos na formatação. Logo após revisaremos os novos escritos. Em minha opinião, alguns textos são bem melhores do que os que se encontram no Minhas Vidas. Afinal, as mães acham seus filhos bonitos...

Na fé em Deus, este ano, parirei Luzinete e o outro.

(Antes de enviar outra pergunta, recebo de Leila uma nova mensagem: Parece produção em massa, não é? Acontece que tenho motivos de ter pressa. Sei lá até quando me será permitido produzir!)

Como é sua parceria com o André?

Nem sei explicar direito. É uma relação de amor e ódio. De concreto, ele é meu revisor e meu crítico. E cuida do visual do produto final. Escolhe capas, etc e tal.

Nosso momento mais conflituoso é na hora da escolha do nome do livro: É guerra!

O que eu queria, de verdade, era casar com ele. Mas... Ele já é casado.

Você disse, no começo, que o Acre foi seu lar e seu cárcere. E hoje, o que é o Acre pra você?

Sim, o Acre foi meu lar e meu cárcere. Aí nasci. Nasci ao lado do Instituto São José, quando ele nem existia. Bem na entradinha do bairro das meretrizes sem luxo.

Enquanto vovô esteve vivo, tudo ia de vento em “polpa”. Era um lugar, meio que mato, meio que centro da cidade. Cobras, macacos, lagartos, aranhas venenosas, formigas tucandeiras e outros animais sem grande significado de peçonha adoravam perturbar meu sono. E o calor debaixo do mosquiteiro de filó, hein? Tudo mórbido demais! O clima do Acre é mórbido.

Do lado bom, a mesa farta, a vida em família, os teatrinhos e as danças domingueiras para agradar as vistas do velho Ibrahim e da velha Otília. Depois tinha a loja cheia, pequena no tamanho e grande para os meus olhos. Tinha do charque e do querosene à renda francesa e aos sapatos de luxo da época. A vitrine de perfumes da Coty e as caixinhas musicais onde pequenas bailarinas saracoteavam ao som do “Il lago di Como” e “Pour Elise”. E tinha o principal, o elemento humano: os fregueses.

Foi ali, naquele ambiente, que conheci o Mestre Irineu Serra, o filho de escravos Teodorico Francisco do Sacramento, a negra Eugênia e outros pretos velhos de grande valia e bondade. Também, ali, conheci o velho Montenegro, que ainda tem muitos parentes circulando “pelaí”.

Morreu vovô, morreram os seringais, morreu a infância e começou a hora de botar meu bloco na rua. Ao trabalho, pois!

Tenho vontade de contar detalhes. Isso daria um texto de muitas laudas. Contar do meu Acre, do que foi ter sido brasileira por opção daria direito a ser demitida pelo editor chefe do meu jornal. E por justa causa! A prolixidade não é mais meu forte. É que o tempo “ruge”. Poderia escrever um livro, mas, em respeito aos que morreram e à cadeia hereditária que formaram e ainda circula por aí, melhor deixar de lado.

E foi na fase adulta que o Acre virou prisão. Meu desejo era estudar e alçar voo. Voos longos, distante de empregos públicos, de preferência. Embora deva tudo ao Acre e saber que o Acre não me deve nada, essa é pior parte da história de qualquer um que viva nessa dependência. Mamar nas tetas da grande vaca, como pensam alguns (muitos), não alimenta. Ao contrário, adoece.

Um ilustre nome da área trabalhista, depois de ler minha monografia, perguntou-me, em particular, o que estava fazendo no Acre. Dei calado por resposta. Mesmo insatisfeita, sempre soube dos meus vínculos e das razões de estar onde estive e dos porquês de ter debandado. Tudo tem sua hora. Hoje, pode parecer besteira, prefiro crer que minha estrada não foi traçada só por mim.

O mundo diminuiu de tamanho, você sabe disso. As distâncias encurtaram. Estar na Europa, nos Estados Unidos ou nos Emirados Árabes deixou de ser viagem e virou deslocamento. Tudo é “bem ali”!  E “baratim, baratim”! Nem mais desperta tesão. Pelo menos em mim, não!  Basta uma ou duas vezes, no máximo! Já fartei, pois!

O Acre de hoje, para mim, é o único lugar que está longe. Muuuito longe! Embora digam que “longe é um lugar que não existe”.

sábado, 10 de maio de 2014

BR 364: Acreana por excelência

* Elson Martins

No feriadão da Semana Santa, entre 17 e 21 de abril, percorri os 650 km da BR-364 de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, num carro pequeno (um Fiat Siena 1.0), para ver se é verdade o que alguns políticos que desdenham das coisas do Acre dizem da estrada. Não é. Ela pode parecer imperfeita, mas  não oferece riscos, e tem qualidades que a torna fundamental para a sustentabilidade do Estado.
  
Saí na madrugada de quinta-feira, 17, de carona com um casal cruzeirense. Paramos para algumas fotos e para comer uma farofa num restaurante na beira do Rio Gregório. Não demoramos mais que 9 horas na ida, e também na volta. Afirmo com todas as letras que a estrada não é o inferno que alardeiam. Eu até me preveni, induzido pelo agouro, optando por um tênis velho e uma calça esgarçada para empurrar o Fiat, escapar de algum atoleiro, afora os riscos de trombar com veículos pesados que nos jogassem pro meio do mato.

Fui preparado para enfrentar o pior a partir de Sena Madureira. Sabia que de Rio Branco até o município, passando pelo Bujari, os solavancos persistem desde que o trecho foi asfaltado, no inicio dos anos 90. Não importa! Há pelo menos duas décadas, tem sido possível trafegar sem interrupção, e isso vale muito. Quantas vezes, mais atrás, quis visitar minha irmã Altinha, que mora lá com uma reca de filhos e netos, mas teria que escolher a opção avião, já que a estrada passava a maior parte do tempo interrompida. Então, pensava na pista de pouso que tem lá e desistia!

A estrada de 650 km tem mais de 30 pontes sobre
rios e igarapés, quatro acima de 300 m e uma,
sobre o Rio Juruá, de 550 metros. (Foto: Elson Martins)

Nos anos 1970, participei como jornalista da Operação Amizade, que contou com aviões e helicópteros de países da América Latina para sobrevoar o espaço aéreo do Acre, levando serviços médicos aos seringueiros e ribeirinhos em áreas remotas. Embarquei num Bandeirante da FAB, com escala em Sena Madureira, e o piloto era o brigadeiro Protásio de Oliveira, da Aeronáutica, um pioneiro da aviação na Amazônia que calculou mal o pouso e teve que arremeter a aeronave causando arrepios nos passageiros. Imaginem se não fosse um brigadeiro!

Agora, no pequeno Fiat, mantive olhos e ouvidos abertos. Sabia que o fantasma do Rio Madeira obrigara o governo a escancarar o trecho  até Cruzeiro, vulnerável no inverno, para trazer combustível e gás de cozinha comprados em Manaus, o que me pareceu uma baita provocação à temida tabatinga existente entre Manoel Urbano e Feijó. Na verdade, esperava encontrar a estrada em frangalhos, e me aborrecia ter que concordar com políticos boquirrotos que não gostam do Acre e por isso vivem a esculhambar com nossas dificuldades e tradições.

Em 1986, fiz a primeira viagem pela BR, ainda sem asfalto, do jeito que o 7o. BEC (Batalhão de Engenharia e Construção) do Exército a deixou, em 1975. Naquele ano (86), o jovem engenheiro Flaviano Melo, que tinha entrado na politica como prefeito biônico de Rio Branco, nomeado pelo Presidente da República na ditadura militar, se lançou candidato ao Governo do Estado pelo PMDB. Como fez boa gestão na capital, os acreanos (eu inclusive) acreditavam que seria também um bom Governador. Ele, entretanto, conhecia pouco da efervescência política do  Estado, na época,  e tanto quanto outros que o antecederam temia a belicosa “bancada do Juruá” na Assembleia legislativa, numerosa, mas nem sempre edificante.

Já se respirava a volta dos militares aos quarteis e no Acre começavam pesar fatores eleitorais fortes à esquerda: além dos oito sindicatos de trabalhadores rurais fundados pela Contag, e a Igreja de Dom Moacyr Grechi, com mais de mil Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e o Partido dos Trabalhadores (PT)  engatinhando no caminho das urnas. Longe das encrencas locais, porque vivia no Rio de Janeiro, Flaviano, amparado politicamente pelo pai deputado Raimundo Melo (PMDB), considerado “o pai dos pobres”, precisava de luz própria. Por isso, sua equipe de campanha recomendou que enfiasse o pé na BR-364, no rumo do Juruá.

Afinal, como engenheiro da Construtora Mendes Junior que ajudou a construir a ponte Rio-Niterói , o candidato poderia realizar o sonho dos acreanos de asfaltar a estrada. Montou uma caravana com três ônibus novos da Viação Rio Branco, mais três a quatro camionetes F-1000 com tração nas quatro rodas, colocadas à sua disposição, além de alguns veículos menos adequados,, de puxa-sacos de plantão, e seguiu em cortejo embalado pela musiquinha de campanha: “O que o povo quer será”!

Após cinco dias de atoleiro e pernoites mal dormidos, a caravana chegou a Cruzeiro em festa, causando um “frisson” na cidade. Os atropelos da viagem e também o acanhamento do candidato estreante, contudo, não atrapalharam a estratégia eleitoral. Foi eleito governador com votos dos vales do Acre e do Juruá em clima esperançoso. Mas o que o povo queria de verdade – a conclusão da estrada com asfalto - só aconteceria três décadas e meia depois, em 2013, no governo  da Frente Popular. E coube ao governador Tião Viana cortar a fita.


Acreanidade vence os agouros

Famílias oriundas da floresta ocupam a beira da estrada e acenam
aos passantes dando boas vindas (Foto: Elson Martins)

Com a cadernetinha de repórter e esferográfica em punho, passei a fazer anotações. Em Sena Madureira começa o pior trecho, que vai até o rio Caeté, na direção de Manoel Urbano. Em vários pontos tem buracos, afundamento no asfalto e desmoronamento nas laterais, mas nada que prudência e velocidade reduzida não resolvam. E logo aparecem duas belas e sólidas pontes construídas sobre os rios Caetés (175 m)  e Purus (407 m) que animam. Até Cruzeiro, são mais de trinta, das quais são imponentes as que atravessam, além do Purus, os rios Envira (300 m), Tarauacá (300 m) e Juruá (550 m), em concreto armado, com investimento de R$ 245 milhões.

Na sequência vem o trecho mais temido, de Manoel Urbano a Feijó, que até  surpreende: a profunda tabatinga que parecia intransponível deu lugar a toneladas de brita, pedra e cimento importados da Colômbia, restando um leito sólido com pequenos afundamentos pelo tráfego pesado. Sem exagero, dá pra falar em tapete sobre a tabatinga. Outro trecho ruim, só vai aparecer nos 46 km entre Feijó e Tarauacá, que é meio antigo e demanda recapeamento. Daí pra frente a viagem flui cada vez melhor. Ou seja, dos 650 km do percurso, apenas 80, se muito,  vão exigir reparos no próximo verão.

Logo, percebi que a estrada tem importância especial para os acreanos, os “nascidos” e os “de coração”. Pode parecer imperfeita, presumo, para quem não consegue enxergar os traços de acreanidade que existe nela, nem valoriza seu perfil histórico, ambiental e cultural. Ela não se parece, por exemplo, com a BR-317, Rio Branco-Brasileia, porque nas suas margens não tem cerca de arame farpado, nem pastos imensos afastando a floresta, nem mansões coloniais vigiadas por vaqueiros e capangas. Também não se vê o boi tomando o lugar do homem, como tão bem registrou o nosso magistral pintor primitivo, Hélio Melo .

O que se vê na BR-364 é a união dos extremos do Acre, um traço paralelo à Linha Cunha Gomes que faz divisa com Rondônia e Amazonas ao norte; e ao sul, amarra os rios que levam às comunidades das cabeceiras, onde convivem extrativistas e ribeirinhos com grupos indígenas em reservas que, somando com os parques nacionais e áreas protegidas, desenham um corredor ecológico na fronteira internacional com a Bolivia e o Peru. Com a estrada, mesmo imperfeita, os vales do Purus, do Juruá e do Acre podem ser considerados uma coisa só, alimentando a ideia de um futuro com florestania.

Ao longo dos 650 km aparecem sítios e casinhas com excelência acreana: varais estendidos com roupas coloridas, pequenos açudes, bananais, roça de mandioca e cana Caiana, para fazer açúcar mascavo e alfinim. Também se vê muitas crianças e a família inteira na janela, acenando, dando boas vindas. No cruzamento de rios e igarapés, que ganharam pontes reforçadas, nascem as vilas com povos da floresta. Anotei sinais (plaquinhas) dessa cultura desarmada e original privilegiando a simplicidade e o afeto: “Pensão da Tia”, “Aqui tem café com bolo”, “Temos açaí de Feijó”...

Não consegui por a mão, ainda, num projeto detalhado que o governo tem para ocupar e desenvolver a região da rodovia. Sei, entretanto, que a ideia é apostar nos sitiantes tradicionais para plantar cocos, açaí, café e outras espécies, bem como incentivar a criação de peixes, galinhas e suínos. Também prevê hortas e um pouco de gado leiteiro. As famílias assentadas já contam com a propriedade da terra e com a energia do programa Luz para Todos. Falta melhorar o transporte, mantendo ônibus novos em circulação. Os poucos que vi estão sucateados e oferecem riscos que não podem ser atribuídos à estrada.

Na travessia do Rio Gregório, paramos num restaurante da pequena vila que brota no lugar e almoçamos a farofa que levamos, feita com carne de sol. A dona do estabelecimento, sorridente, cedeu os pratos e os talheres, e mandou que uma jovem nos atendesse sem cobrar pelo atendimento. Isso é um gesto generoso, tipicamente, da cultura da floresta.


Uma epopeia

Já se vão mais de 40 anos desde que a BR-364 Rio Branco-Cruzeiro do Sul começou a ser aberta pelo 7o. BEC, do Exercito,  com duas frentes de trabalho: uma partindo de Cruzeiro até o Rio Gregório; outra na direção contrária, saindo de Rio Branco. Carlinhos, o condutor do Fiat em que viajávamos, era do batalhão e participou da primeira equipe de 14 homens que entrou na mata bruta em 1971 para uma permanência de dois meses na frente pioneira. Ele disse que parte dos alimentos era lançada de avião, em paraquedas,  e os militares completavam o rancho com a caça, o peixe e frutos colhidos na floresta. Havia fartura: o soldado Do Vale matou, de uma só vez, 12 pacas.

Em meados dos anos setenta o Batalhão largou a estrada, cabendo ao desestruturado Departamento de Estradas de Rodagem do Acre operar o milagre de manter o que estava feito. Assim se passaram os anos até o início de 2001, quando o então governador Jorge Viana se interessou em avançar com a melhoria dos trechos mais complicados. Conhecendo o histórico da estrada e ouvindo horrores sobre a tabatinga, Viana chegou a pensar em estrada de ferro como alternativa. Mas a ideia não vinga. É forte no Congresso Nacional o lobby que defende o transporte rodoviário.

Ou seja, a alternativa era conseguir recursos de Brasília para finalizar a estrada problema. O ex-governador Orleir Cameli (falecido), antes do Jorge Viana, tentou isso, mas o buraco era mais embaixo. Como dono de construtora, asfaltou alguns trechos, ganhou dinheiro e se aquietou. Jorge foi além porque contou com o mestre e tutor politico Luís Inácio Lula da Silva para abrir o cofre federal. No seu Governo da Floresta, cujo logotipo era uma arvorezinha daquelas que se vê enfeitando cadernos escolares, o Acre ganhou estatura ecológica. Digamos que fez o dever de casa: produziu o ZEE (Zoneamento Econômico Ecológico) e ajudou a formar um corredor de áreas protegidas junto a fronteira internacional com Peru e Bolivia. O Parque Nacional da Serra do Moa, a Reserva Extrativista do Juruá, , as terras indígenas, incluindo a dos Isolados e o Parque Estadual do Chandless, entre outras, passaram a fazer parte desse corredor.

Cada trecho pronto foi uma festa para o governo, parlamentares,
técnicos e moradores da beira da estrada (Foto: Secom)

O ex-governador (hoje senador) saiu com o irmão Tião Viana, atual governador (na época senador) para arrancar recursos do PAC e convencer o DNIT, o órgão gestor das estradas federais,  a enxergar sua responsabilidade nesta ponta ocidental da Amazônia. Coube ao historiador e professor Binho Marques, sucessor de Jorge no governo (2006-2010), com dinheiro em caixa promover a conclusão do trecho acreano. Nunca se viu tanto rebuliço no império da tabatinga: seis empresas construtoras, 1500 máquinas pesadas, 3 mil e quinhentos homens metendo a mão na massa, montanhas de terra, brita, areia, cimento e ferro sendo removidas de um lado para outro, tudo acontecendo sobre a critica insensata dos pregoeiros do Apocalipse.

Binho passou o bastão ao Tião Viana que enfrentou um contingenciamento de verbas em Brasilia, mas o superou, após remover a tabatinga de alguns gabinetes. Nos anos 2011, 2012 e 2013, as seis empresas que tocavam a obra abandonaram os canteiros e coube o Deracre, mais uma vez, garantir sobrevida à BR. O engenheiro Marcus Alexandre, atual prefeito de Rio Branco, então na direção do departamento, com seus funcionários e 100 empresas terceirizadas na execução concluiu a rodovia em 2013.

“Eu fui ao Acre e vi que, realmente, a construção da BR-364 no estado é uma epopeia”- declarou o ministro do Transportes, César Borges, ano passado. Que bom que ele viu!

Riqueza da floresta

A BR-364 entre os extremos do Acre tem no entorno da parte sul um potencial natural ainda pouco conhecido, mas que já se sabe enorme. A estrada é  quase uma linha reta de 520 quilômetros contados a partir de Sena Madureira, ou de 440 quilômetros se contados a partir de Manoel Urbano. No entorno se estende o complexo florestal do Mogno e Liberdade (referencia ao Rio Liberdade), onde se acha a maior concentração de mogno na Amazônia. Da linha em zigue-zague da fronteira com o Peru e a Bolivia descem rios poderosos como Purus, Envira, Tarauacá e Juruá correndo no sentido  transversal, com mistérios e tesouros a serem desvendados.

A informação parte de quem tem a responsabilidade de cuidar desse patrimônio ambiental no Estado: o titular da Secretaria de Indústria e Comércio e do Desenvolvimento Florestal, Edvaldo Magalhães, e seu secretário –adjunto  Fábio Vaz. Os dois trocam experiências enriquecedoras com as comunidades tradicionais que ocupam as margens da rodovia e, na medida do possível, vão adequando a linguagem técnica aos anseios dos sábios da floresta.

Até agora, a estrada tem sido ocupada por ex-seringueiros e ribeirinhos, além dos indígenas cujas aldeias acompanham 20 quilômetros da rodovia nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Isso impõe, de algum modo, um diálogo entre saberes, entre as tecnologias do planejamento governamental e as praticas tradicionais.

Levei algum tempo conversando com os dois na quinta-feira passada. Edivaldo lembrou um encontro que manteve com moradores sobre a formação de vilas ao longo da BR-364 que poderão se transformar em cidades no futuro. Uma senhora de nome Aparecida fez um discurso que ficou gravado e o deixou emocionado:

-Ela disse que queria uma vila com cara de floresta. E essa vila está nascendo na beira do Rio Gregório. Construímos casas de madeira como a comunidade quer, e até o coordenador do projeto foi escolhido entre eles.  A coisa funciona rápido e simples quando são eles que escolhem como fazer.

Segundo o secretário, vários projetos estão em andamento nas cidades de Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, e todos estão relacionados às possibilidades de desenvolvimento sustentável envolvendo famílias extrativistas. Em Feijó, por exemplo, foi criado um projeto de fruticultura com uma despolpadora de frutos e empacotamento de grãos, prevendo o crescimento da produção de açaí. Já foram plantados 2 mil hectares  da espécie. E está previsto em curso, também, a produção de bananas prata, maça e comprida, e 115 moradores desenvolvem a criação de peixe em açudes.

Outro projeto considerado promissor é o manejo comunitário de madeira com 200 famílias já contratadas. O secretário garante que o manejo será feito “do jeito deles”, com serraria portátil e modo tradicional de arrasto. “Vamos legalizar a prática deles, tradicionalmente sustentável”. A atividade será fortalecida, segundo Edvaldo, com polos moveleiros montados em Tarauacá  e Cruzeiro do Sul. Neste município já existem 15 industrias trabalhando.

Considerada capital do Vale do Juruá, Cruzeiro tem uma população com característica empreendedora invejável. Há décadas se ouve falar bem da farinha local, considerada a melhor do país (e quiçá do mundo); do pó de guaraná, do biscoito de goma, dos barcos que eles constroem por lá e do refrigerante de guaraná. Edivaldo, que é cruzeirense, se orgulha de contar a história da “Vó Didi” (falecida há cerca de um mês, com 90 anos), que trouxe do Ceará a receita do biscoito de goma. A mágica é simples: o biscoito só presta se for secado ao sol.

Pois uma fábrica de biscoitos será inaugurada na cidade no próximo dia 10 de maio, com 12 secadores de sol. Várias mulheres que receberam a receita como herança de Vó Didi organizaram a cooperativa Cooperbiscoitos e vão tocar a fábrica construída pelo governo com financiamento ambiental. Outra novidade vem de uma família que constrói barcos em Cruzeiro. Trata-se da “Bajola”, uma voadeira com motor de “rabo” que bate os modelos de metal em velocidade e estabilidade. Certamente, também no preço. Tem mais: Os filhos do senhor Zinho  (falecido), tradicional plantador  e industrial do guaraná, decidiram manter a atividade do pai e acabam de lançar o refrigerante “Cruzeirense”, produzido numa fábrica que em julho  começa a funcionar em escala regional.

Todos esses produtos made in Vale do Juruá, como preveem Edivaldo Magalhaes e Fabio Vaz, poderão sair pela estrada e conquistar mercados com protagonismo e cultura diferenciada. Quem sabe, substituindo gostos, práticas e conceitos bolorentos.   


quinta-feira, 8 de maio de 2014

Quem tem medo de Leila Jalul?

* Por Vássia Silveira

A ideia veio em uma sexta-feira de friagem, em Rio Branco. Eu havia acabado de receber um e-mail de Leila avisando que Luzinete tinha virado livro. Daí ao convite para a entrevista e a resposta positiva da autora, foi um pulo. Mas como entrevistá-la à distância – sem correr o risco de perder sua intensidade ou espontaneidade?

Encontrei a resposta no conta-gotas do remédio à minha frente: era preciso ir devagar, sentir aos poucos as palavras e os silêncios dessa escritora acreana que, aos 64 anos e do alto de seu apartamento em uma cidade baiana, nos brinda com textos cada vez mais inteligentes e ácidos.

Propus-lhe, então, enviar apenas uma pergunta: Quem é Leila Jalul? E foi a partir da resposta dada que eu e Leila fomos construindo, no ciberespaço, a prosa que resultou nesta entrevista.  Uma experiência iniciada no dia 8 de junho e encerrada, quase um mês depois, com um saldo de 69 e-mails, oitenta cigarros e alguns goles de cerveja.


Quem é Leila Jalul?

Esta eu respondo por música: “Sou como um resto de bebida/ Que alguém jogou fora/E agora, farto de mim, me esqueceu/ Eu fui mais uma taça desprezada/ Quis ser tudo e não fui nada/Ninguém é mais triste do que eu”.

Isso me fez pensar em outra composição cantada por Nora Rey: “Se o caminho da rua ainda é a porta/ Se você não me suporta/Eu sei sair por onde entrei”. Nos dois casos, Leila, o que ou quem é esse outro que despreza?

No meu caso, sou eu mesma. Vou te contar uma do Marmo (Antonio Marmo, ex-marido de Leila): Ele estava procurando emprego e bateu na redação de um jornaleco, pior do que esses daí, e foi direto para a sala de entrevista. Entrou uma moça, que se apresentou como psicóloga, com uma página em branco e fez a seguinte pergunta, com recomendação para ser respondida em apenas vinte linhas: Quem sou eu?
Marmo, prepotente como ele só, tasca a resposta, mais ou menos assim: “Você, segundo me foi comunicado, é uma psicóloga do setor de Recursos Humanos e está aqui para entrevistar os que aqui estamos em busca de uma vaga de jornalista. Sua pergunta me deixou perplexo e digo por quê: Como poderia, em apenas cinco minutos de convivência, dizer quem é você? Do que vejo e sinto, você é uma pessoa extremamente séria e disposta a cumprir seu papel de selecionadora dos candidatos aqui presentes. Fisicamente, com todo o respeito, você é uma mulher bonita e bastante simpática...”
E foi por aí... Saiu da sala e desistiu do emprego.

Você teria feito diferente?

Um pouco pior, talvez!

Já que você tocou no nome do Marmo, como foram ou são os amores de Leila?

Você quer dizer dissabores? Os amores não foram. De bom, de ótimo, há um bem querer enorme pelos netos, Hector e Catarina. Tomara que vingue! Tomara que cresça!
(Logo em seguida recebo uma mensagem de Leila: “Ei, pareço amarga, não? Mas é verdade. E em outro e-mail: “Reformulo: só se tem um grande amor. Quando acabou, acabou. Não há mais que falar de amor”)

Por falar em crescer: eu passei parte da infância frequentando sua casa e a imagem que guardei é a de que era um ambiente criativo, revolucionário, inquieto. Era isso mesmo?

Os tempos eram inquietos. Eu tinha hormônios selvagens. Minha casa era o reflexo disso, do tempo e dos hormônios.

Fale um pouco dessa época...

Havia um acre perdido dentro de um país fudido. Um acre sendo vendido aos pedaços para os "paulistas" – como eram tratados os sulistas, de forma generalizada – e uma trinca de jornalistas dispostos a ganhar uma guerra com um estilingue chamado Varadouro. Um estilingue possante, diga-se. E que cumpriu seu papel. Não fiz parte direta do Varadouro, mas fui, em algumas vezes, a braçal que ajudava na encadernação e levava uns lanchinhos para os “cobras grandes”.

Havia medo, principalmente. Depois havia uma universidade em gestação e muitos brutos no comando. E mais medo. Muito medo. Mas havia, também, uns meninos enjoados e valentões que pensavam grande (e pequeno, também).

Junte-se tudo isso num caldeirão e pense nas borbulhas salpicando água quente para todos os lados. E pense que o fogão, na maioria das vezes, era o lá de casa (você, mesmo criança, entendia tudo. A partir das preocupações do seu pai, entendia e bem!).

Leila Jalul, escritora, pintora e inquieta (Foto:arquivo pessoal)

Quem eram esses meninos enjoados e valentões?

A começar pelos “oficiais”, Binho e Marina (Marina Silva, ex-senadora e candidata à presidência do Brasil). Havia o Toinho Alves, o chefe dos Libelúdicos. Não vou lembrar o nome de todos, mas o Toinho é bem representativo. O bastante, eu diria!

Vou te contar uma do Toinho: Quando ele era pequeno, numa noite de Natal, ganhou uma roupa de soldado romano. No outro dia, doido para mostrar o presente, vestiu a roupa e foi fazer inveja aos colegas de rua. Quase morreu de raiva! Os meninos da rua estavam todos vestidos de caubóis, com revólveres de espoleta e dizendo: “Mãos ao alto, não se movam!” Tudo no estilo Roy Rogers (Ator estadunidense de faroeste)!
Mas hoje, reflito que aquela roupa de soldado romano, com a reluzente espada e capacete dourado, foi muito importante para a formação do Toinho. Ele jamais atiraria com balas.

Olhando hoje para o passado, no que resultou aquele caldeirão de água quente?

No que deveria resultar: os verdadeiros combatentes, para usar uma palavra da época, continuam coerentes. E pobres! Outros venderam a alma.

Enquanto movimento, o melhor resultado chegou com o reconhecimento de que a floresta é importante. O mundo conheceu a luta do Chico; os "paulistas" aposentaram os chicotes e os troncos.
Na universidade mudaram os esquemas do CCC e do SNI, apareceram novas lideranças e, por um período, ficou parecida com uma Instituição de Ensino Superior de verdade.

Honestamente, minha análise é tão xucra, que me envergonha. Muitas coisas mudaram, isso é certo. Muitas coisas, no entanto, devem ter piorado. O estado, ao que parece, está à mercê dos grupos religiosos...
Sou bastante livre para dizer o que penso, até por não ter religião. Se não bati continência para os milicos, por que bateria para pastores? Acho que o inferno está cheio de milicos danosos, políticos canastrões e de falsos pastores. E de analistas xucros! (risos)

O Acre (e um tanto do Brasil) não sabe o que deve ser um estado laico. Arrisco dizer que o Brasil está equivocado em questão de fé e de política.

Falando em religião, a Marina Silva, que você citou com uma das pessoas que compunha o grupo de jovens enjoados e valentões, hoje faz parte da Igreja Evangélica. Qual sua leitura a respeito?

Veja, Vássia, eu não tenho nada contra religiões. Tenho contra espertalhões, principalmente das igrejinhas e denominações que proliferam nos fundos de quintais e de vinculações e vertentes duvidosas. Tenho tudo contra os exploradores de pessoas ingênuas.

Religião, perfume, roupas, músicas, escritores, maridos, maridas, são escolhas pessoais. Fiquei realmente espantada quando soube que a Marina havia se tornado evangélica. Talvez por deformação de entendimento de minha parte. Fiquei igualmente pasma quando soube que a Jane Villas Boas também havia se convertido. Demorou um tempo para que o meu tico e o meu teco entendessem as razões.

Nesse mesmo espanto, quase estupor, acompanhei a rendição da Baby Consuelo. A louca encontrou Jesus, não é espantoso?

Só que, com o passar do tempo, a conversão de Marina me soou diferente. Todos nós sabemos que ela é sobrevivente dos metais pesados e das cacetadas de malárias que contraiu na sua vida seringueira. E que a ciência aceita a fé como instrumento de cura. Então é isso aí: por questão de foro íntimo, por necessidade, Marina encontrou Jesus e fez com ele um pacto. E está aí, para quem quiser ver.

A prova dos nove, tanto faz ser Marina ou Dilma Rousseff, é não confundir Estado com opções pessoais. Droga, aborto, casamento gay e outras tantas questões não devem e nem podem ser resolvidas à luz da fé pessoal de quem quer que seja. A droga é. O aborto é.

Você é acreana de onde? Fale um pouco de sua família, sua infância.

Sou acreana de Rio Branco. Filha de Zizinha (Azize) e de Manoelzinho Araújo, dois perdidos numa noite suja. (Referência à peça de Plínio Marcos, encenada em 1966)

Vovô Ibrahim era o manda-chuva e vó Otília uma megera adorável. Fui (in) feliz na medida justa. O acre foi meu lar e meu cárcere.

O bonito e o feio, o certo e o errado, enquanto lição, eu aprendi onde nasci e com quem me criou. E ai de quem achar que não foi!

A referência à peça de Plínio Marcos para retratar seus pais tem algum fundo de verdade? Ou é uma ficção de Leila Jalul?

Não ao pé da letra! Mas tudo a ver. Adoro o Plínio Marcos!

Mamãe era de Umbanda e papai de Quimbanda. As bandas não batiam. Os dois eram filhos de família e se uniram em família. Mas continuaram perdidos numa vida suja.

É uma ficção. Quase! Se houve alguma coisa boa, com certeza, esconderam de mim. Papai era muito sujo! (risos) E muito gente!

Retrato a carvão de Leila, feito por Jorge Rivasplata

E o que isso representou para sua infância? Como era a vida em família, os irmãos, seus medos e sonhos?

Papai era alcoólatra de renomada. Mamãe era triste. Também de renomada.

Papai era jogador e “quengueiro” por vocação... Mamãe era escrava do pai dela.

Não lembro de quase nada do núcleo. Vovô era o grande ditador: ditava normas e cagava regras.

Ao mesmo tempo em que essa parafernália deu medo, também deu desejo de libertação. Fui pai e mãe de meus irmãos mais novos. Ao todo éramos cinco. É que as duas mais velhas não contavam. Papai fugia, voltava e emprenhava mamãe. E nasciam um após outro. Cuidei de todos com certa dose de amor.

Fiquei cansada. Não havia espaço para sonhos. Entrei de sola na vida para alimentar bocas. Não houve retorno. E nem pedi.

De tudo isso sobrou uma constatação: se ninguém morreu de fome, que sejam felizes. Muito felizes. Sempre!
E parece que são.

Não sei avaliar a infância. Nem a adolescência, nem a fase adulta. Estou melhor na velhice. Sozinha e dona de mim.

E como foi em meio a tudo isso, estudar e chegar aonde você chegou?

Foi difícil. Muito difícil...

Aos cinco anos fui para um internato em Sena Madureira. Completei seis anos neste internato e ganhei de presente um copo de leite com Nescau. Mamãe não podia cuidar dos filhos por causa do trabalho escravo na loja de vovô.

Aos 12 anos fui ficar com uma irmã de mamãe que morava em Niterói. Nesta época, vivi terror e preconceito.

Tudo foi lição, entretanto. Aprendi a ser independente: Voltei para o Acre e, com atestado de arrimo de família concedido pelo Dr. Lourival Marques, comecei a trabalhar como aprendiz (de feiticeira).

Tentei estudar num curso noturno e desisti. Só havia contabilidade e eu não tinha habilidade para números e contas a pagar. Só voltei a estudar aos vinte e um anos, já casada e grávida. Fiz um supletivo de vergonha, com aulas presenciais e excelentes professores. Aos vinte e dois entrei no curso de Direito com excelente classificação. No ano seguinte fiz vestibular para o curso de Letras, também com excelente classificação.

Não dei conta de fazer os dois cursos simultaneamente e fiquei só no curso de Direito. Mas não parei por aí. Ainda fiz duas pós-graduações: Administração de Recursos Humanos e Direito do Trabalho. Enquanto estudei, por sorte, fui muito focada e dei conta do recado.

Você falou da loja de seu avô, que loja era e onde ficava?

O comércio do meu avô ficava ali na esquina da Floriano Peixoto com a Ruy Barbosa. Era um comércio de secos e molhados; rendas francesas, calçados, brinquedos, armarinho e tudo em geral. O nome da loja era casa Paraybana, em homenagem à segunda esposa.

Mamãe era peça-chave do comércio.  Vovô não falava português. Ele conseguiu ser mais preguiçoso que eu. Além de preguiçoso era irascível!

Fala um pouco dessa experiência em Niterói... De que forma você viveu o terror e o preconceito?

Em Niterói convivi com a tia, o tio e dois filhos deles. Fui com a obrigação de ajudar nas tarefas domésticas e estudar. Ajudei e estudei. Mas o tratamento era bastante diferenciado entre nós, meninos.

Havia também uma tia da minha mãe. A mulher era uma louca. As filhas da mulher eram loucas. Fui bastante humilhada por causa do meu pai. Qualquer um se achava no direito de cuspir na minha cara.

As histórias de vida são engraçadas. Há pessoas que se vangloriam e ganham pontos com elas. Até porque despertam piedade. Não é meu caso! Lavei panos de bunda, ouvi impropérios, fui sugada na minha juventude. E daí? Contabilizei tudo de bom e de ruim para buscar a liberdade.

Com quantos anos você voltou para Rio Branco?

Antes de completados os 14 anos. Cheguei pouco antes do Natal e já no dia 27 de dezembro comecei a trabalhar.

Nesta época você tinha os livros como companhia?

Sim. Quando saí da casa da tia fui para o internato do colégio onde estudava (Colégio São José, em Niterói). A biblioteca era enorme. Muitos livros do Monteiro Lobato. A coleção Tesouros da Juventude e mais um tanto de títulos bons. Era um colégio de freiras mineiras. Freiras de Manhuaçu e Manhumirim.
Havia ordem e premiação por méritos. Comecei as minhas atividades tomando conta de uma cadela, a Zoraide. Depois passei para a horta. Depois para a cozinha. Terminei minha vida acadêmica na secretaria do colégio.

Este colégio, o São José, das Sacramentinas de Nossa Senhora foi a minha base educacional. Foi nele, também, que iniciei minha vida política (frustrada). Pertencia ao movimento Juventude Estudantil Católica (JEC). Minha professora de inglês, a Maria Helena, era comunista da hora.

Como leitora, que livros marcaram mais a sua vida?

Tudo marcou. Aprendi a ler. Às vezes não entendia o que lia, mas lia. Devorava livros, esta é a verdade.

Ainda em Niterói fiquei sabendo que mamãe estava passando necessidades. Para voltar para o Acre, creia, mamãe vendeu um fogão esmaltado (movido a carvão). Voltei e comecei a trabalhar. Depois de um tempo fiquei sócia do clube do livro. A estas alturas tinha dinheiro para comprá-los.

Li com ansiedade. Com sofreguidão, diria.  Entre muitos, O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), Ulisses (James Joyce). Li Os Miseráveis (Victor Hugo). Li Dante, Tolstóí, Marquês de Sade. Li, li, li. À luz de velas, de lamparina e de candeeiro. Entrei nos livros de bolso. Li Tex, li CorinTellado.

Um dos livros mais marcantes foi a tragédia de Sacco e Vanzetti (
contada por Katherine Anne Porter em livro traduzido no Brasil por Sebastião Uchoa Leite). E Crime e Castigo. Para uma delinquente juvenil, nada melhor. Também adorava os latinos: Vargas Llhosa, (Carlos) Fuentes, (Manuel) Scorza e Gabo (Gabriel Garcia Marques). O Clube do Livro era sortidão! Também fui sócia e limpadora de cadeiras do Cineclube do Carlitinho da Núbia. Período de ouro, diria! (continua...)

N.E. Esta entrevista foi realizada em 2012, originalmente para uma revista acreana que segue sendo gestada. Dada a extensão da conversa, ela será publicada em partes no blog.