terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Índio ou cara-pálida, tanto faz!

* Elson Martins


Edilson e Elson Martins, em foto recente (Foto: Yasmim Martins)


Li com interesse, prazer e cumplicidade o novo livro do jornalista, escritor e documentarista acreano Edilson Martins: “A Viagem de Bediai, o Selvagem e O Voo da Borboleta Negra”,-  
que ele acaba de lançar tendo como tema a Amazônia e o ambiente perturbador da floresta. É o oitavo de sua lavra, e acho que os outros  – “Chico Mendes, um povo da floresta”, “Nós, do Araguaia”, “Nossos Índios, Nossos mortos”, “Makaloba”  etc. – são mais comportados. Certamente, porque parecem menos com o autor.

Edilson é um duende que em 1958 partiu de Rio Branco para o Rio de Janeiro numa viagem sem retorno. Como outros acreanos do seu tempo, partiu para brilhar.

Na época nós éramos colegas de classe no Colégio Acreano, cursando o ginasial, e chegamos a produzir juntos (eu como coadjuvante) o jornal estudantil “O Selecionado”, impresso em papel de embrulho de cor verde. O maior feito da pequena publicação foi entrevistar o juiz federal Francisco Alves, recém chegado ao Acre, que mandava prender quem passasse perto dele assobiando. O sujeito mal humorado só nos recebeu quando atendemos a exigência de comparecer de paletó e gravata. Completava o trio de entrevistadores o Odacyr Soares, filho de um catraieiro do bairro da Base que se tornou senador pelo Estado de Rondônia.

Eu e o Edilson temos a mesma idade, o mesmo sobrenome e a mesma origem de seringal:  ele nasceu no Esperança, no baixo Rio Acre, e eu no Nova Olinda, no alto Rio Iaco. A coincidência se ampliou com o tempo. Após 18 anos sem nenhum contato (eu também parti), voltamos a nos encontrar em Rondônia, em 1976, como jornalistas, fazendo a cobertura de um conflito entre índios Suruis e parceleiros do Incra no Parque Indígena 7 de Setembro. Ele como repórter especial do Jornal do Brasil; e eu como correspondente do Estadão (O Estado de S.Paulo) no Acre. Viajamos de Porto Velho para a área indígena num avião monomotor, na companhia do sertanista Apoena Meireles.

0 encontro no Parque dos Suruis reatou a amizade e inspirou novas aventuras jornalísticas. Em 1988, os seringueiros liderados por Chico Mendes enfrentavam uma luta desigual e perigosa contra o fazendeiro Darli Alves, que queria comprar o seringal Cachoeira, em Xapuri, para fazer pastos e criar boi. Darli e o filho Darcy acabaram matando o líder seringueiro. Um pouco antes da tragédia, Edilson Martins apareceu em Rio Branco para registrar o conflito. Daí surgiu o documentário “Chico Mendes – um povo da floresta” que lhe rendeu o prêmio Vladimir Herzog e foi exibido em redes de TV em diversas partes do mundo. Como diretor da TV Aldeia (Educativa) na época, dei uma mãozinha: cedi câmera, transporte e pessoal para reforçar sua denuncia contra os invasores da vida acreana.

Em dezembro do ano passado, Edilson me mandou um exemplar do “Bediai” que somente agora tive tempo de ler. Percebi que o amigo, que nasceu com o dom de escrever bem, decidiu fazer nova imersão na floresta, desta vez, tentando exorcizar 40 anos de aprendizado urbano que incorporou à sua alma acreana. Seu livro é uma instigante viagem através de mundos separados. E sua experiência de jornalista especializado em temas indígenas, de ousado ambientalista e de leitor compulsivo de Machado de Assis, bem como dos filósofos gregos da antiguidade e de leituras mais atuais levam o leitor de arrastão.

Ele se incorpora nos personagens que criou para falar de uma viagem pelas entranhas amazônicas. É ao mesmo tempo o índio sábio e invisível, o sertanista cauteloso, o cara-pálida vindo de um pais distante, o intelectual cheio de não me toques, a pesquisadora francesa que precisa devassar a vida dos macaquinhos Suim, o mateiro experiente e sisudo, entre outros, montando um painel de culturas que se submetem ao desafio de sobreviver no meio do mato, onde tudo se move e ameaça.

Cobras, onças, arraias, temporais assustadores e chuvas torrenciais, índios desconfiados à espreita, - compõem o cotidiano do grupo saído da selva de pedra muito mais violenta e estúpida. O grupo caminha sem rumo e deixa aflorar suas taras, seu medos, sua fragilidade, o que o Bediai Edilson Martins explora com texto solto, criativo, poético e anárquico.

Na viagem de 250 páginas de narração atraente, imprevisível como uma semente de samauma levada pelo vento, o autor mistura temas densos, da realidade em que foi gerado com memória que beira o realismo fantástico, com os traumas e estresses da vida urbana, construindo um painel musical e pictórico da região que muitos, na atualidade, prefere como mágica e utopia.

Ou seja: não dá pra ler o livro Bediai e sair impune, deixando de lado que a vida continue a ignorar tribos arredias; destruidores de floresta, habilidosos e camuflados biopiratas, intelectuais cínicos etc. Muito menos, ignorar um conflitado duende que se inspira na tradição, mas sugere, atônito e literariamente, que as pessoas precisam de asas para sobreviver em novos mundos possíveis. 


capa do livro Bediai

Trechos do Bediai

*Vão ficando claras nossas misérias. Há mais de um ano, quando nos reunimos, éramos pessoas civilizadas, educadas, dispondo de um código social que bem ou mal nos preservava, mantinha nossas máscaras. Uma expedição não é um convescote de freiras, mas estávamos longe de supor que nossas indignidades e vilanias chegassem a tal ponto. Os padrões sociais vão abruptamente sendo minados – pelo dia a dia, pela ausência de tudo. Tudo na selva é nada. E nada na selva é tudo.

*Bediai: Vou contar uma história! Ninguém sabe. Só eu e minha tribo. Fui escolhido pelo meu povo, durante os primeiros contatos com vocês, para ser “sertanista” de yara. Vocês não têm sertanistas de índios? Rondon, os irmãos Villas-Boas, Chico e Apoena Meireles? Pois bem, eu fui preparado para ser o “sertanista” de branco.

*Há dois dias, pela ameaça de um temporal, tivemos que abandonar às pressas o pequeno tapiri onde dormíramos. O local não oferecia segurança, havia árvores de grande porte, muito velhas, e o melhor era não sermos surpreendidos, já que um temporal na selva nada perdoa. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A foto e seu autor

Foto: Tião Fonseca


Esta foto da seringueira Marina Silva liderando um “empate” na Fazendo Bordon em Xapuri, no Acre, no inicio dos anos oitenta, tem sido largamente utilizada em jornais, revistas, livros e sites diversos. Também tem aparecido em vídeos e documentários que tratam da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente, sobretudo, nas duas últimas eleições (2010 e 2014) como candidata a Presidente da República.

Raramente, porém, se deu o crédito ao fotógrafo. Por isso, e para corrigir a injustiça, decidi apresenta-lo: trata-se do baiano Sebastião Fonseca, ou Tião Fonseca, que na época do “empate” visitava o Acre e se ofereceu para colaborar com o efêmero tabloide Repiquete, que eu e outros jornalistas, após a experiência do Varadouro, tentávamos viabilizar como empresa jornalística. Tião pegou a pauta e foi a Xapuri onde obteve o revolucionário registro. 


Tião Fonseca (foto: Yasmim Martins)

Ano passado ele voltou ao Acre para um trabalho em vídeo numa aldeia indígena no alto Rio Tarauacá, e aproveitamos para comemorar com uma taça de vinho o feito do passado. Melhor seria que, daqui para frente, as pessoas que vierem a utilizar a extraordinária foto da Marina não esqueçam de acrescentar o nome de quem a produziu. E, até, pagar pelo direito autoral! (EM)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Ciência e tecnologia sem arrogância!

* Elson Martins

Com seu qualificado e ousado Jornal Pessoal, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, que mora em Belém, vive alertando que para desenvolver a Amazônia com sustentabilidade é preciso aplicar ciência e tecnologia em alta escala, através de politicas públicas decentes. Um aliado dele, com a visão de quem conhece e quer o bem do povo da região é o cientista Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia, de Manaus, para quem a ciência encontra meio caminho andado nos nossos caboclos do mato ou da beira dos rios. Até recomendo aos amazônidas nascidos e de coração, principalmente aos jovens que estão saindo das faculdades de jornalismo, que acompanhem de perto o trabalho desses dois.

Lúcio Flávio mantém seu bravo jornalzinho em circulação nas bancas de Belém há 27 anos e já produziu mais de 12 livros que reúnem o que há de mais confiável sobre as patadas históricas cometidas contra a Amazônia. Por conta disso, tornou-se um jornalista premiado, nacional e internacionalmente, embora ameaçado pela conservadora, ambiciosa e truculenta elite paraense. Eu diria que também pela elite do outro Brasil, que fica mais ao Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

No livro “Guerra Amazônica”, volume 1, publicado em novembro de 2005, Lúcio Flávio reproduz entrevista que deu a um grupo de pesquisadores de Belém que lhe pergunta: “como avalia a ciência produzida na Amazônia?”

Ele responde que os cientistas não deveriam produzir apenas ciência, mas como “colonos-cientistas” poderiam ser assentados em projetos de colonização para demonstrar na prática as propostas que desenvolvem na universidade:

“Se esse colono-cientista estuda arroz, vai plantar arroz. Vai ensinar como é que se faz, fazendo. Vamos pegar o cara e coloca-lo no campo (e não no campus) com bolsa de pesquisa, uma estrutura mínima. Se a gente não colocar a formação antes da transformação, a Amazônia estará liquidada. Sei que serão necessários muitos milhões de reais no começo.”

Para o jornalista, que também é sociólogo, esse investimento deveria ser concebido como “vanguarda”:

“Vamos pegar a meninada da USP, da UFRJ, da UFPA (também da UFAC) etc. – com uma boa bolsa e vamos para o campo aprender. Os orientadores também devem ir ao campo com boas condições e bons salários (…) É como se estivéssemos em Israel. A nossa guerra é a guerra da ciência. Guerra da ciência não é ficar fazendo o seu trabalhozinho acadêmico. É fazer a difusão da ciência lá no campo, enquanto se faz ciência de vanguarda nos laboratórios, nos gabinetes, nas bases de observação”.

Lúcio Flávio Pinto (foto: Elson Martins) e Ennio Candotti (foto: divulgação)

Segundo Lúcio Flávio Pinto, os colonos não cientistas iam aprender e também ensinar. Ele acrescenta que o doutor tem que deixar a postura arrogante de ficar repetindo: eu sei, eu vou ditar. “Se você sabe, você faz”.

Já o diretor do Musa de Manaus, Ennio Candotti, num texto recente, indaga se os ribeirinhos que habitam as margens dos rios e igarapés da Amazônia “são parte do problema ou da solução da questão da defesa, da produção de conhecimentos científicos de botânica e zoologia, da conservação ambiental e do desenvolvimento econômico e social da região”:

“Se a resposta for que são parte da solução, uma vez que é dever do Estado estar presente em todo o território nacional, eles são muito importantes para monitorar o movimento de pessoas e animais e o trânsito das mercadorias pelos rios, apoiar como guias e conhecedores da floresta a coleta de material para pesquisa (sementes, resinas e amostras de fauna e flora) e colaborar nas diferentes etapas na construção dos conhecimentos no campo e nos laboratórios dos centros de ciência e tecnologia”.

Ora, lembra Candotti, todos sabemos que foram os ribeirinhos dos rios e igarapés das florestas do Vietnam que, oferecendo decisivo apoio ao exército vietnamita derrotaram, em 1972, o poderoso exército de ocupação dos Estados Unidos. Ou seja, os caboquinhos da Foz do Amazonas não seriam, também, determinantes em programas de defesa de nossa região?

Em tempos de paz, os gringos já se rendem à sabedoria que as elites brasileiras teimam em ignorar: os navios de grande porte que chegam com cargas ou passageiros lá do mundo desenvolvido, por exemplo, para navegar nas águas do portentoso Rio Amazonas, precisam contratar, pagando boa quantia em dólares, a um dos “práticos” que vive em Macapá ou Belém, sabendo (sabe-se lá como!), enxergar a profundeza das águas barrentas a partir do movimento delas na superfície. E não contratem, pra ver!

* Texto  publicado originalmente na Coluna Voz das Selvas (2013) e republicado em 13 de fevereiro de 2015, na coluna Almanacre (Jornal Página 20). 

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Miragina tradição de família


* Elson Martins
José Luiz, empresário acreano de olho na florestania (Foto: Elson Martins)


Há 48 anos, esta empresa acreana por excelência tece sua sustentabilidade no mercado regional de alimentos. Seus produtos aparecem cada vez mais nos supermercados e mercearias de Rio Branco, com qualidade e estilo. Os mais recentes são os biscoitos, o óleo e as amêndoas (desidratadas, inteiras ou fatiadas, com e sem sal) de Castanha do Brasil. E as embalagens, escolhidas no capricho, seguem a linha da florestania. Em 2015 vão aparecer mais novidades: além da farinha de castanha, pronta para temperar pratos, bolos e mingaus, serão lançados a farinha flocada de mandioca, os diversos tipos de feijão de Cruzeiro do Sul e óleos da floresta (como o Murmurú) explorados no Vale do Juruá. A farinha flocada vem sendo produzida em Tarauacá e começa a ser vendida em Rio Branco.


O grupo familiar Miragina mantém três empresas: a Fábrica de Biscoitos, a Panificadora Rosamélia e a Olam – Óleos da Amazônia. O carro chefe é a Fábrica de Biscoitos dirigida por José Luiz Felício, 54, formado em Administração de Empresas e em Ciências Contábeis. Do seu escritório localizado no bairro do Aviário, região central da cidade, ele comanda a distribuição de 17 produtos abastecendo todo o Acre e parte de Rondônia. Também está de olho no mercado nacional. A produção de biscoitos (ou bolacha) é de 180 toneladas ao mês. A Panificadora Rosa Amélia, que fica em frente à fábrica, no Aviário, é administrada pelo irmão mais velho, Abraão Assis Felicio. A irmã Sara, recém-falecida, também fazia parte da sociedade.

A Olam (Óleos da Amazônia) é a parte mais envolvida com a pesquisa de produtos da floresta. Há mais de uma década o grupo investe na produção do óleo (azeite) da Castanha do Brasil e acompanha com interesse a trajetória vertiginosa do açaí. Cauteloso, Zé Luiz evita dar detalhes sobre o que anda pesquisando no Vale do Juruá. Admite apenas que o óleo de Murmuru, que já mereceu uma fábrica de sabonetes em Cruzeiro do Sul, está na pauta. O açaí, certamente, pode aparecer na versão em pó.


Essa história bem sucedida começa em 1892, quando o jovem casal libanês Felício e Sara Abraão, seus avós, decidiu pegar um navio para viver a aventura da borracha na Amazônia. Desde então, nome e sobrenome se repetem e se espalham pelo Pará, Amazonas e Acre. A gênese da Miragina foi o transporte de trigo importado dos Estados Unidos para abastecer o Acre e a Bolívia. Coube aos avós libaneses montar uma frota de lanchas modernas para manter o negócio.

Em 1912, já começavam a se fixar em Xapuri e Brasileia. E de lá para cá, filhos e netos se encarregaram de manter a tradição empreendedora da família, centralizada na capital.


A empresa dos Felício Abraão tem traços culturais que a distingue. Zé Luiz explica: “Nós temos uma forte preocupação social, mantemos a tradição de contribuir com entidades filantrópicas como Educandário Santa Margarida; fazemos doações às famílias atingidas pelas enchentes; também atendemos pedidos de desportistas e equipes estudantis que se deslocam para participar de seminários ou outro evento; e temos sempre pão e biscoito para quem tem fome”. Sua mãe, Miriam, ensinava que “é importante dar ajuda sem dizer a quem”, e isso vem sendo cumprido à risca.

Segurança e tradição



  Fátima, 44 anos de bom desempenho na Miragina (Foto: Elson Martins)

Maria de Fátima Marcelino Brasil, 59, nasceu no seringal Liberdade, no Rio Liberdade, em Cruzeiro do Sul, na parte mais ocidental do Acre. É filha de seringueiros. Ela trabalha há 44 anos na Miragina, ainda era menor de idade quando começou na empresa, em 1972, “fazendo de tudo no escritório”. Hoje é encarregada de Recursos Humanos. Outros quarenta dos 137 funcionários estão há décadas por lá e não querem sair.

Aposentada há 12 anos, “dona Fátima”, como todos a tratam, permanece na ativa e não muda sua rotina. Se tornou membro da família, dá palpites, foi confidente e companheira de viagem de dona Sara em visitas a São Paulo e Rio de Janeiro. É pessoa de extrema confiança da casa. Uma espécie de “governanta”.

Na verdade, a Miragina recebe bem seus visitantes. Logo à entrada da fábrica, tem uma mesa grande com café, leite e biscoitos variados. Ali ocorre todo começo de conversa, cercado da simpatia do patrão e empregados. Percebe-se um “ethos” amazônico no ambiente.