Edilson e Elson Martins, em foto recente (Foto: Yasmim Martins)
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Li com interesse, prazer e cumplicidade o novo livro do jornalista, escritor e documentarista acreano Edilson Martins: “A Viagem de Bediai, o Selvagem e O Voo da Borboleta Negra”,- que ele acaba de lançar tendo como tema a Amazônia e o ambiente perturbador da floresta. É o oitavo de sua lavra, e acho que os outros – “Chico Mendes, um povo da floresta”, “Nós, do Araguaia”, “Nossos Índios, Nossos mortos”, “Makaloba” etc. – são mais comportados. Certamente, porque parecem menos com o autor.
Edilson
é um duende que em 1958 partiu de Rio Branco para o Rio de Janeiro numa viagem
sem retorno. Como outros acreanos do seu tempo, partiu para brilhar.
Na
época nós éramos colegas de classe no Colégio Acreano, cursando o ginasial, e chegamos
a produzir juntos (eu como coadjuvante) o jornal estudantil “O Selecionado”, impresso
em papel de embrulho de cor verde. O maior feito da pequena publicação foi entrevistar
o juiz federal Francisco Alves, recém chegado ao Acre, que mandava prender quem
passasse perto dele assobiando. O sujeito mal humorado só nos recebeu quando
atendemos a exigência de comparecer de paletó e gravata. Completava o trio de
entrevistadores o Odacyr Soares, filho de um catraieiro do bairro da Base que
se tornou senador pelo Estado de Rondônia.
Eu e o
Edilson temos a mesma idade, o mesmo sobrenome e a mesma origem de seringal: ele nasceu no Esperança, no baixo Rio Acre, e
eu no Nova Olinda, no alto Rio Iaco. A coincidência se ampliou com o tempo.
Após 18 anos sem nenhum contato (eu também parti), voltamos a nos encontrar em
Rondônia, em 1976, como jornalistas, fazendo a cobertura de um conflito entre
índios Suruis e parceleiros do Incra no Parque Indígena 7 de Setembro. Ele como
repórter especial do Jornal do Brasil; e eu como correspondente do Estadão (O
Estado de S.Paulo) no Acre. Viajamos de Porto Velho para a área indígena num
avião monomotor, na companhia do sertanista Apoena Meireles.
0 encontro
no Parque dos Suruis reatou a amizade e inspirou novas aventuras jornalísticas.
Em 1988, os seringueiros liderados por Chico Mendes enfrentavam uma luta
desigual e perigosa contra o fazendeiro Darli Alves, que queria comprar o
seringal Cachoeira, em Xapuri, para fazer pastos e criar boi. Darli e o filho
Darcy acabaram matando o líder seringueiro. Um pouco antes da tragédia, Edilson
Martins apareceu em Rio Branco para registrar o conflito. Daí surgiu o
documentário “Chico Mendes – um povo da floresta” que lhe rendeu o prêmio
Vladimir Herzog e foi exibido em redes de TV em diversas partes do mundo. Como
diretor da TV Aldeia (Educativa) na época, dei uma mãozinha: cedi câmera,
transporte e pessoal para reforçar sua denuncia contra os invasores da vida acreana.
Em
dezembro do ano passado, Edilson me mandou um exemplar do “Bediai” que somente
agora tive tempo de ler. Percebi que o amigo, que nasceu com o dom de escrever
bem, decidiu fazer nova imersão na floresta, desta vez, tentando exorcizar 40
anos de aprendizado urbano que incorporou à sua alma acreana. Seu livro é uma
instigante viagem através de mundos separados. E sua experiência de jornalista
especializado em temas indígenas, de ousado ambientalista e de leitor
compulsivo de Machado de Assis, bem como dos filósofos gregos da antiguidade e de
leituras mais atuais levam o leitor de arrastão.
Ele se
incorpora nos personagens que criou para falar de uma viagem pelas entranhas amazônicas.
É ao mesmo tempo o índio sábio e invisível, o sertanista cauteloso, o cara-pálida
vindo de um pais distante, o intelectual cheio de não me toques, a pesquisadora
francesa que precisa devassar a vida dos macaquinhos Suim, o mateiro experiente
e sisudo, entre outros, montando um painel de culturas que se submetem ao
desafio de sobreviver no meio do mato, onde tudo se move e ameaça.
Cobras,
onças, arraias, temporais assustadores e chuvas torrenciais, índios
desconfiados à espreita, - compõem o cotidiano do grupo saído da selva de pedra
muito mais violenta e estúpida. O grupo caminha sem rumo e deixa aflorar suas
taras, seu medos, sua fragilidade, o que o Bediai Edilson Martins explora com
texto solto, criativo, poético e anárquico.
Na
viagem de 250 páginas de narração atraente, imprevisível como uma semente de
samauma levada pelo vento, o autor mistura temas densos, da realidade em que
foi gerado com memória que beira o realismo fantástico, com os traumas e estresses
da vida urbana, construindo um painel musical e pictórico da região que muitos,
na atualidade, prefere como mágica e utopia.
Ou seja: não dá pra ler o livro Bediai e sair impune, deixando de lado que a vida continue a ignorar tribos arredias; destruidores de floresta, habilidosos e camuflados biopiratas, intelectuais cínicos etc. Muito menos, ignorar um conflitado duende que se inspira na tradição, mas sugere, atônito e literariamente, que as pessoas precisam de asas para sobreviver em novos mundos possíveis.
capa do livro Bediai
Trechos do Bediai
*Vão ficando claras
nossas misérias. Há mais de um ano, quando nos reunimos, éramos pessoas
civilizadas, educadas, dispondo de um código social que bem ou mal nos
preservava, mantinha nossas máscaras. Uma expedição não é um convescote de
freiras, mas estávamos longe de supor que nossas indignidades e vilanias
chegassem a tal ponto. Os padrões sociais vão abruptamente sendo minados – pelo
dia a dia, pela ausência de tudo. Tudo na selva é nada. E nada na selva é tudo.
*Bediai: Vou contar uma
história! Ninguém sabe. Só eu e minha tribo. Fui escolhido pelo meu povo,
durante os primeiros contatos com vocês, para ser “sertanista” de yara. Vocês
não têm sertanistas de índios? Rondon, os irmãos Villas-Boas, Chico e Apoena
Meireles? Pois bem, eu fui preparado para ser o “sertanista” de branco.
*Há dois dias, pela
ameaça de um temporal, tivemos que abandonar às pressas o pequeno tapiri onde
dormíramos. O local não oferecia segurança, havia árvores de grande porte,
muito velhas, e o melhor era não sermos surpreendidos, já que um temporal na
selva nada perdoa.