domingo, 16 de março de 2014

Meton

* Elson Martins

Meton e sua alegria: foto tirada por Waldemar Marinho 

Ele foi precoce na boemia. Se enturmou com os mais velhos na pacata Macapá da segunda metade dos anos sessenta e se fez imprescindível. Devia ter uns 16 anos, na época. Era inquieto, divertido e provocador. Revelava-se, também, quando se falava em cultura, um excepcional ator. Ou escritor, ou um bom contador de histórias. Graças a ele, conheci a poesia fascinante do pernambucano Manuel Bandeira. Ficava pasmo ao ouvir aquele moleque tão chegado à putaria, de modo anárquico, recitar o “Berimbau” com tanta ternura, perfeição e graça:

Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: - Si si si si!
- Ui ui ui ui ui! Uiva a iara
Nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.

Isso era a cara, melhor dizer, espírito e corpo do Meton: “A mameluca é uma maluca/Saiu sozinha da maloca/ O boto bate – bite bite.../ Cruz, Canhoto”!
Ele recitava com as pernas, os braços, retorcia a boca, virava os olhos, imagino que o Manuel Bandeira escangotava de rir lá no céu!

Isso valia uma rodada de pinga!

Jamais vi amapaense mais amapaense que ele. Da poesia para o mau humor e o destempero era um passo. Manifestava com a mesma desenvoltura todas as ambiguidades e ambivalências locais. Também conhecia as anedotas e lembrava de cór os personagens e pessoas de todos os tempos, que fizeram e fazem a história lúdica do Amapá. “Bota mais uma”! Ele era crítico impiedoso dos maus políticos, sobretudo dos “estrangeiros” que apareciam por sua terra querida “puxando uma cachorrinha”, depois, pela via da corrupção e do cambalacho, empunhavam garras contra o povo.

Do dinheiro até que ele gostava, mas não para guardar em banco fazendo planos de capitalista babaca. O que tinha ganho era pra beber e comer bem, viajar, comprar novidade eletrônica. Foi na casa dele, há pouco tempo, que vi uma TV Sony de 60 polegadas adornada de uma parafernália de som de última geração. Tinha custado o preço de um carro, a prestações. E como ele gostava de mostrar aos amigos, naquela maravilha de tecnologia, suas preferências em vídeo: Que tal Beatles, ou Maria Betânia, ou jazz clássico?

Ah! Esse ambiente era apropriado para o que tinha de melhor a oferecer: sua performance como chef de cozinha. Pense num tucunaré na manteiga! Numa caldeirada de filhote! Numa gurijuba ao tucupi! Sua mesa era grande, dessas em que se serve banquetes. E com a ajuda da Solange, sua alma gêmea, ele orquestrava o ritual gastronômico fingindo que não se exibia, orgulhoso de sua culinária.

Eu fui, posso afirmar, um privilegiado sujeito que durante mais de quarenta anos privei de sua amizade. Chegamos a ser sócios num bar (a Thenda) montado nos fundos da Galeria Comercial da avenida Getúlio Vargas, nas proximidades do Colégio Amapaense. Um terceiro sócio era o Capi. Isso, lá pelos idos de 1970. Tratava-se de um bar, como diria outra velha amiga minha, para “filosofias e trapaças”. No bom sentido!

Segunda-feira, 11, ao abrir meus e-mails, li um recado do Bené da Comissão da Verdade: “O Meton morreu nesta madrugada. Dormindo”! Meu Deus! La se foi embora mais um pedaço do Amapá que não se quer perder. E meu amigo Meton me prega mais essa: Como morrer dormindo, em paz, sem ensinar aos amigos como se faz?

Bom, imagino que o porteiro do céu o recebeu tal qual a mameluca de um dos poemas do Manuel Bandeira:

- “Entra, Meton, você não precisa pedir licença”!


quinta-feira, 13 de março de 2014

Florestas do meu exílio


*Elson Martins


Li o livro do Capi faz algum tempo e sei que ele aguardava que escrevesse algum comentário, mas eu vinha sentindo dificuldade de desenvolver qualquer texto, por menor e simples que fosse. Talvez por ter vivido muito próximo dos personagens durante boa parte da narrativa, antes e depois do exilio, o que poderia resultar em intromissão indevida. Também não me agradava a ideia de parecer piegas ao tentar fazer avaliação literária. Sou péssimo nisso.

Preciso dizer, entretanto, que gostei muito do livro e o recomendo a todos, principalmente aos jovens que pouco sabem da ditadura militar que infernizou a vida de gerações passadas no Brasil. A história é real, está bem contada e pode servir de exemplo nos dias de hoje: de coragem, desprendimento, ideologia, amor coletivo e, também, amor e confiança extremos entre duas pessoas nascidas nas entranhas da Amazônia.

Ousaria dizer, com algum receio de ser contrariado, que esse amor entre os dois foi o que houve de mais verdadeiro e revolucionário durante toda a saga que eles viveram. Sem esse amor imenso, enriquecido por outros sentimentos humanistas fecundos, particulares e universais, eles não teriam resistido a tanto horror e provação.

Leiam e releiam, portanto, o “Florestas do meu exilio” com esse olhar diferenciado, com mais sentimento e menos conceito, pra ver se não vão se deparar com a história numa dimensão duplicada da vida, com afeto, confiança, sonho, ousadia e desapego material infinitamente ampliados!

Eu fui testemunha privilegiada desse acontecimento. Talvez por ser também da Amazônia, nascido nas brenhas de um Acre isolado e invisível, ao conhecer o casal já estava predestinado a ser cúmplice “para o que desse e viesse”. Acompanhei choros, ciúme, medos, desentendimentos que não passavam de encenação na construção de um elo afetivo indestrutível, com mil matizes de ação  nem sempre clara, nem sempre acolhedora, nem sempre justificável do ponto de vista de quem pensa coletivamente.


Janete e Capi em lançamento do livro

Aí, me dispus a ser parte dessa revolução imprevisível, nervosa, de ida e volta sem fim.

Acho que, de algum modo, nunca me desgarrei dos dois (Capi e Janete), mesmo quando a ditadura espalhava o boato de que tinham sido “eliminados” pelas forças da repressão, para não dar mau exemplo. Nem quando sumiram para atravessar não uma, mas quatro ditaduras da América Latina até ressurgirem de braço com a liberdade no Canadá distante, e na África do fim do mundo.

Eu me orgulho dessa história por ter restado parte dela na minha casa em Belém, após a fuga do Capi da Santa Casa de Misericórdia, onde se encontrava com licença de saúde do Presídio São José, mantido sob forte guarda. Fui algumas vezes à casa da Janete atrás do presídio, uma delas na tal noite (relatada no livro) em que o Capi convenceu, com argumento infalível, um segurança a saírem os dois do hospital, de madrugada, para visita-la e logo retornar. Eu e uns poucos amigos aguardávamos na casa suspeita tomando cuba-libre (rum com cocacola), ouvindo o vinil que Caetano Veloso (também no exilio) tinha gravado na Inglaterra.

Ah! Ninguem estava sossegado. Capi e o policial somente chegariam por volta das 3 horas da madrugada, e quando chegassem, Capi ou Janete levaria um copo de cuba-libre para o segurança, que teria de permanecer na sala, numa rede, sem identificar as visitas. Na cozinha, ouvíamos “A Little More Blue,” “London, London” e uma versão estonteante da música “Asa Branca”, do velho Luiz Gonzaga.

Deu tudo certo. Era apenas um teste para o que aconteceria numa outra noite: a extraordinária fuga do casal com a filhinha Artionka, de oito meses de idade, numa canoa rio acima para a história tão detalhada no livro.O risco na casa da Janete ficou indelével nos que permaneceram no prolongado medo e nojo da ditadura militar.

Na versão reinventada de “Asa Branca”, Caetano canta um refrão em forma de grunhido: nhaung- nhaung- nhaung- nhaung... Tão novo, tão lindo, tão triste, tão ameaçador que nos provocou um riso geral e descontrolado, um mal súbito, um prenúncio de saudade e dor.