domingo, 3 de julho de 2011

A surra no general

José Maria Rabêlo, aos 82 anos

Em janeiro de 1963 eu aportei em Belo Horizonte me aventurando na vida. Em poucos dias e muita sorte, consegui um bico de redator na Rádio Inconfidência, do Governo de Minas, passando a escrever notas para o programa “O Domingo é Notícia”. Garantia, assim, a mensalidade da pensão no bairro Floresta.

Na emissora, consultando jornais e conhecendo jornalistas, fiquei sabendo da existência do José Maria Rabêlo, editor do jornal Binômio, que dois anos antes (1961) tinha encarado e surrado um general-de-brigada dentro da redação. Ouvi que após a refrega ele sumira, e também que tinha sido morto por militares no interior do Estado. Seu nome ficou na minha memória como primeiro grande herói da imprensa alternativa.

Terça-feira passada, 28 de junho, tive a oportunidade de vê-lo em carne e osso em São Paulo, no lançamento de 12 DVDs sobre a imprensa alternativa, um projeto da Fundação Vladimir Herzog nominado “Resistir é Preciso”. Aos 82 anos, o histórico jornalista me pareceu inteiro e combativo, fazendo jús à fama que tem.

Convidado pela Fundação, eu estava hospedado no Hotel Adress, na zona sul da cidade, juntamente com alguns baluartes da impresa alternativa. Naquela manhã, acabara de tomar café no 16º andar em companhia da viúva de Antônio Callado, Ana Arruda Callado, doutora em comunicação, e da cineasta Tetê  Moraes. Aguardávamos o elevador para descer para o 3º andar, quando a porta se abriu e um senhor alto e elegante, ladeado de sua mulher, saiu sorridente, cumprimentando minhas acompanhantes.

Já no elevador, perguntei a Ana Callado quem era ele: “Você não conhece o Zé Maria Rabêlo?”, – respondeu, indagando.

Voltei incontinente ao salão do café. Muito simpático, carinhoso com a esposa Thereza, que, segundo me disse, foi heróica ao acompanhá-lo no exílio político com sete filhos pequenos, o lendário jornalista não se fez de rogado para me contar sobre seu jornal, o Binômio, e sobre a surra que aplicara no general-de-brigada João Punaro Bley, que o agredira ao contestar uma reportagem que o apontaava  como nazista e antidemocrata.
Elson Martins, José Maria Rabêlo, Thereza Rabêlo e Tetê Moraes

Óleo de Rícino - O Binômio foi fundado em 1952 e logo ficou conhecido como “o jornal que virou Minas de cabeça para baixo”. O nome era uma referência ao plano de Juscelino Kubistchek, então governador, que não passava de um marketing populista. Humor e irreverência, com boa dose de coragem, projetaram o jornal, que logo bateu os concorrentes em vendagem. Mas os poderosos da época o perseguiram e, durante o golpe militar de 1964, fecharam-no.

A reportagem polêmica foi publicada em 1961. Naquele ano, o presidente Jânio Quadros tinha renunciado e os militares se opuseram à posse do vice João Goulart, o Jango, que acabou assumindo, mas em regime parlamentarista. Os militares golpistas ficaram indóceis.

Nomeado para o comando da DI-4 (Divisão de Infantaria), que reunia todas as forças federais em Belo Horizonte um deles, o general João Punaro Bley,  destacava-se como inimigo dos comunistas e da imprensa. Ficara conhecido na crise da renúncia de Jânio Quadros por deter sindicalistas e estudantes, estabelecer censura aos meios de comunicação, cercar a Assembleia Legislativa de Minas e ameaçar de prisão os deputados que defendiam a posse de Jango.

Diante dessa situação, o Binômio pautou a reportagem especial para levantar o perfil reacionário do militar. Descobriu que cometera muitas atrocidades no estado do Espírito Santo, onde, durante a Segunda Guerra Mundial, instituiu um campo de concentração nazista. As atrocidades foram tantas que recebeu o apelido de “Óleo de Rícino”.

A reportagem sobre o general foi escrita pelo repórter político José Nilo Tavares, que, por motivos óbvios, não a assinou. Foi publicada na contracapa do jornal no dia 18 de dezembro de 1961, com o título em caixa alta, pegando oito colunas:  QUEM É, AFINAL, ESSE GENERAL PUNARO BLEY? De quebra, trazia o subtítulo: “Democrata hoje, fascista ontem”.

“Quem escreveu essa merda?” - Rabêlo não interrompia o café para narrar a refrega com o general. Duas ou três vezes levantou da mesa para apanhar mais leite e pão-de-queijo para ele e sua Thereza, fazendo comentários do tipo: “Engraçado! Os paulistas estão comendo mais pão-de-queijo que os mineiros, e os mineiros estão comendo muita pizza, que é mais um hábito de São Paulo!”.

A reportagem foi um furor, ampliando o interesse dos leitores pelo Binômio, que já vendia 25 mil exemplares na época. Três dias depois (21), Rabêlo recebeu telefonema de Punaro querendo ter uma conversa com ele no jornal.  Apareceu por volta das 11 horas, e a  secretária  o anunciou assim: “Tem um senhor fardado, muito nervoso, dizendo que quer falar com você”.

Com ar maroto, Rabêlo conta: “Deixei-o esperando sozinho, algum tempo, o que era uma tática, depois mandei que entrasse na minha sala e tranquei a porta por dentro. Mas o general foi direto: “Eu não vim para conversar” – disse de cara. Tinha uma espécie de bastão metálico numa mão e um exemplar do Binômio na outra. “Quem escreveu essa merda contra mim? - perguntou furioso. “Isso não é merda, é uma reportagem muito bem fundamentada”- respondi. “E eu sou responsável por tudo que sai no jornal.”

Num ímpeto, o general o segurou pelo colarinho e disse: “Então você é um ‘fila’ da puta”. Era um alemaozão enorme, mesmo assim, Rabêlo não se acovardou:

“Eu achei que aquilo foi um desaforo e fui em cima dele. Rolamos pelo chão… E tinha uma outra porta pela qual o pessoal do jornal entrou e me tirou de cima dele. O general ficou com um hematoma no olho esquerdo, um corte no lábio superior e a farda toda rasgada. Foi assim que ele saiu da refrega”.

Enquanto os dois brigavam, a polícia apareceu e autuou os dois por “rixa em ambiente público”. Isso deixou Punaro Bley ainda mais furioso. Duas horas após,  veio a desforra:  200 soldados do Exército e da Aeronáutica, comandados por três coronéis, quebraram tudo na sede do Binômio.

José Maria Rabelo foi avisado por amigos do prédio onde ficava a redação, no centro de Belo Horizonte, e escapou. Refugiou-se em São Paulo e foi acolhido pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas, Evaldo Dantas, que dias depois o acompanhou de volta a BH para retomar a direção do Binômio. O jornou voltou a circular, com a ousadia de sempre, até ser fechado durante a ditadura militar em 1964.

Desta vez, José Maria Rabêlo teve tempo de programar um almoço com os amigos e comemorar seu sumiço que durou 16 anos. Passou pela Bolívia, Chile, Canadá e França. Um irmão dele  conseguiu esconder e preservar  as coleções de 12 anos de existência do Binômio, em outro endereço, longe da redação. As coleções somam mais de 800 números, das edições que circulavam em BH e Juiz de Fora.

De volta ao Brasil desde 1983, Rabêlo foi diretor do alternativo “Pasquim” e também diretor do Banco do Estado do Rio de Janeiro, no governo Brizola. Hoje dá palestras em escolas de comunicação,  onde “a meninada morre de rir” das histórias que conta. Para o legendário editor do Binômio, “tem uma revolução em marcha na Internet, mas é a juventude que está nisso, porque os velhos não sabem mexer em compudador”.