quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Resistir é Preciso



O projeto "Resistir é preciso..." tem um canal de vídeos (youtube) com trechos de entrevistas dadas por jornalistas que fizeram parte da imprensa alternativa brasileira entre 1964 e 1979 (este vídeo, por exemplo, mostra um resumo de meu relato sobre o Varadouro). O projeto é uma iniciativa do Instituto Vladimir Herzog e tem como equipe executiva a Clarice Herzog, Ricardo Carvalho, Vladimir Sancchetta e José Luiz Del Roio. Para saber assistir a outros vídeos clique aqui e para saber mais desta importante iniciativa, aqui

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Samaúma

*Elson Martins

Enorme, ela caiu do céu numa tarde quente de verão amazônico imersa numa nuvem de algodão. Eu a vi pousar no meio de um lago cercado de floresta densa. Deslumbrado, acompanhei sua decida suave e então a coloquei na palma da mão, plantando-a, cuidadosamente, num vaso com estrume.
      Eu morava na Chácara do Ipê, condomínio afastado do centro de Rio Branco, numa casa com quintal amplo e piscina, que vendi (1991) a um amigo. Da piscina, observei o floco branco caindo do céu azul.
      A cena era comum nos seringais: identifiquei a sementinha no meio do floco e a retirei para plantar. Depois, voltei ao banho e ao trabalho. Três meses depois, minha mulher me chamou atenção: “A semente nasceu!”.
      A pequena samaúma estava com 30 centímetros de altura, mas já com ares de rainha. Escolhi um lugar no quintal, longe da casa, transplantando a muda para a terra. E a pequena árvore cresceu.
      Ao vender a casa fiz exigência: “Vamos colocar no contrato que é proibido derrubar a samaúma”. A tal clausula nunca existiu de verdade, mas o novo proprietário passou a cuidar da ceiba pentandra (como os cientistas denominam a espécie) com zelo e carinho.
      A árvore cresceu imponente e bela, destacando-se dos velhos ipês que cercam a residência. Tanto que algumas mentes temerosas começaram a assustar o novo proprietário: “Derruba, ela vai acabar com o teu muro... A raiz não resiste a uma tempestade”!


Imagem de uma Samaúma. Foto de Fernando Júnior

      Pode ser, e não vou desejar um mal desse ao amigo. Mas acho que ele pode deixá-la chegar à fase adulta, como um monumento que mostrará, orgulhoso, aos convidados e às crianças. Tem tempo para isso, o que um bom técnico poderá atestar instruindo sobre como preservá-la sem riscos.
      Sei que a samaúma atinge 60 metros de altura, possui um tronco com diâmetro de três metros e meio e uma copa de 22 metros. Suas raízes não penetram o solo a fundo, mas tecem uma malha à cata de húmus com alguns tentáculos de mais de 500 metros, que servem também de alicerce.
    Possuindo fibras delicadas, dos galhos às raízes, chamadas sapupemas, de onde se extrai uma água cristalina boa para beber, a samaúma poderia ser uma árvore sagrada da Amazônia. Ela cresce nas margens dos rios, junto aos lagos ou no coração da mata densa, servindo de bússola para os povos da floresta.
      Na minha infância, sempre tive olhos para essa árvore que voa. Ficava abismado com a semente preta e minúscula (também comestível) à semelhança de um amendoim torradinho. A semente paira sobre a floresta e os rios na sua nave tenra, sabe-se lá quanto tempo. Como se a mãe natureza mandasse espalhar suas rainhas pelas florestas do mundo, plantando-as nos locais mais inacessíveis ao homem.
      Os índios Kaxinauá (Huni Kui) afirmam que a samaúma tem espírito, ou que o espírito vive dentro dela. Apenas os pajés têm o direito de apreciá-la de perto. Os não-índios costumam descansar no seu dorso e imaginar seu voo, certamente, à procura de um lugar fértil na terra e na consciência das pessoas!


P.S. Desengavetei o texto após ter assistido a reportagem (do post anterior) com o Arquilau, amigo que "herdou" a tarefa de preservar a samaúma, e que ao longo dos anos vem transformando espaços de sua casa num museu a céu aberto da história acreana. 



Lembranças de Nossa História

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Mapinguari

* Elson Martins

A figura horripilante do Mapinguari está no imaginário dos povos da floresta. Vira e mexe a gente ouve falar de alguém que em algum ponto remoto da Amazônia se deparou com o bicho. Sua fama chegou até o Japão interessando a Television Broadcasting Sistem (TBS) que mandou uma equipe filmá-lo nas matas do Acre. É claro que não conseguiu: 10 técnicos transportando 40 volumes com uma tonelada de material de filmagem passaram uma semana (em agosto de 1996) procurando o gigante lendário sem ver nem o rastro do animal.
O biólogo norte-americano David Oren, pesquisador do museu paraense Emílio Goëldi, em cujos estudos a TV japonesa se baseou, andou bem perto de dar uma explicação científica dos relatos de seringueiros e índios. Eu o entrevistei em 1996 em Macapá, no Amapá, e ele disse estar convencido de que o Mapinguari é uma preguiça terrestre que viveu há 10 mil anos em várias regiões do planeta e que ainda pode ser encontrada em lugares isolados e impenetráveis da Amazônia.
Já o poeta Amâncio Leite, de Cruzeiro do Sul, em 1930 publicou um poema mostrando o estrupício em que se meteu o seringueiro João Tomé por conta do estrambótico animal. A entrevista completa com o biólogo eu publiquei no jornal “Folha do Amapá”, e em 2003 fiz um resumo dela para a revista “outraspalavras”, editada pela Fundação Cultural Elias Mansour, do Acre. Para a revista eu juntei parte do poema Mapinguari, do ex-seringueiro e poeta acreano Amâncio Leite, que viveu no começo do século passado em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Esta é a versão que decidi incluir no livro:

“As pessoas ficam embriagadas”

Os depoimentos colhidos por David Oren, de seringueiros e índios que já viram ou pensam ter visto o Mapinguari, são quase idênticos na descrição do bicho: “Eles o descrevem como um animal que deixa rastros redondos, é cabeludo, fede muito e quem já o viu uma vez não quer ver de novo”, disse Oren acrescentando: “Muitas pessoas falaram para mim que deram de cara com o diabo. Quando ele fica de pé, cambaleando, torna-se assustador. Uma coisa é você andar no mato e, de repente, a Virgem Maria aparece para você. Outra é o diabo em carne e osso aparecer. As pessoas ficam completamente perturbadas”.
Segundo o pesquisador, uma explicação lendária para o Mapinguari é que ele seria um índio, um pajé que descobriu o segredo da imortalidade, mas o preço que pagou por isso foi se transformar num animal horrível e fedorento. Cerca de 100 pessoas disseram para Oren ter tido contato ou pelo menos ter ouvido o grito do Mapinguari. Outras 60 são testemunhas que viram o animal. Algumas afirmam tê-lo matado, mas não conseguiram chegar perto porque ficaram embriagadas, desnorteadas e intoxicadas com o fedor.

Figura do Mapinguari no Parque Chico Mendes, em Rio Branco, no Acre.

Um seringalista chegou a oferecer uma recompensa para quem matasse o bicho, e um seringueiro entrevistado por Oren afirma que o matou, mas não conseguiu chegar perto para tirar uma amostra de cabelos e unhas para levar para o dono do seringal. Ele tirou a camisa e a envolveu no pescoço, tapando o nariz, mesmo assim ficou embriagado. A sorte dele é que estava acompanhado de um amigo que havia corrido assim que o bicho apareceu. O amigo serviu de guia para abandonar o local depois.

Onde pode ser encontrado

David Oren afirma ter relatos de quase toda Amazônia, sempre com uma coisa em comum: o Mapinguari aparece nos lugares mais longínquos, aonde quase ninguém vai. As histórias são a de um seringueiro abrindo novo caminho (varadouro) mata adentro por uma área onde ninguém andou antes. “Em todas as tribos indígenas que eu conheço, os índios têm muito medo desse animal. Mesmo os Caiapós, que são mais brabos, têm um tipo de zoneamento dentro da reserva deles. Onde o animal aparece, eles não vão. É uma reserva para esse bicho, que consideram perigoso, e não querem encontrar”, disse o biólogo.
Existem evidências da presença do Mapinguari no Acre e no Amapá. Neste estado, que faz limites com o Estado do Pará e a Guiana Francesa, o animal poderia ser encontrado no alto Jarí. A lenda é recorrente entre os castanheiros do rio Iratapuru, afluente do Jarí, que conhecem um relato semelhante ao dos seringueiros do Acre. Três caçadores da região teriam sido contratados há algumas décadas para matar o estranho bicho que vivia assustando madeireiros e castanheiros. Eles prepararam um mutá (local de espera numa árvore) na mata, onde dormiram três noites. Dois caçadores desistiram e o terceiro viveu a terrível experiência na quarta noite. O animal aproximou-se com seu grito apavorante na escuridão da mata, até aparecer no foco da lanterna do caçador. Este disparou a arma num vulto cinzento, monstruoso, e não lembra de mais nada até o dia seguinte, quando acordou do desmaio. Viu sangue e mato quebrado no local e os mesmos rastros redondos. Tomado de pavor, procurou o caminho de volta para nunca mais andar por aquela região.

“Nossa ignorância é mais abrangente...”

David Oren está convencido de que o Mapinguari é uma preguiça terrestre: “Hoje em dia, explica, a gente só conhece as preguiças que vivem em árvores, que são de médio porte e pesam no máximo 5 quilos. Mas até aproximadamente 10 mil anos atrás tinham 8 espécies de preguiça, aqui na Amazônia, que andavam somente no chão. Uma dessas espécies era maior que um elefante”.
Segundo o biólogo, existem fósseis da preguiça gigante no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Na Universidade do Acre, o professor Alceu Ranzi reuniu outros fósseis, e na Universidade de Minas Gerais, o pesquisador Cartelli, com mais de 25 anos de experiência, possui acervo maior ainda. A preguiça terrestre é da família do Tamanduá-bandeira, que fica de dois pés para se defender. “Esse animal (a preguiça terrestre) quando fica de dois pés, cria uma relação entre a cabeça, os braços e as pernas que se assemelha a do ser humano”, argumenta Oren.

David Oren na selva amazônica: busca ao Mapinguari.

Mas o problema para a pesquisa, esclarece o biólogo, é que muitas pessoas que tiveram contato com o bicho imaginam ter visto o diabo e não querem falar. Tem também o fato de grande parte da população não acreditar nos relatos e as pessoas não querem ser ridicularizadas. E mais: de tão terrível, as pessoas não gostam de lembrar a experiência.
David Oren esclarece que a ciência trabalha com o mundo físico e com o que pode ser comprovado cientificamente, entretanto, ele se questiona se esse mundo material que pesquisa é o único mundo que existe: “Tem várias coisas que não podem ser explicadas pela minha ciência”, declarou.  “Nosso conhecimento sobre a Amazônia é uma coisa que fica muito clara para qualquer cientista que anda por aqui. Eu gosto de repetir que nossa ignorância é muito mais abrangente que nosso conhecimento. Estou tentando aumentar um pouco os nossos conhecimentos para a sociedade como um todo refletir sobre a nossa ignorância”, disse Oren.


Mapinguary**

Certo seringueiro, um dia
Chegou correndo da estrada
Na qual, há tempos não ia,
Não trouxe leite que desse
Para melar a bacia!

Chegou cedo, muito cedo;
Antes da hora marcada,
Seu companheiro ainda andava
Lá pela volta da estrada.
Fez assim, só porque dera
Uma carreira danada!

O triste vinha afrontado,
Verde-amarelo e sem fala!
Saltando dentro de casa
Deitou-se em meio da sala.
Seu rifle de doze tiros
Não trazia uma só bala!

Que teria acontecido
Com aquele pobre rapaz!
Teria ele esbarrado
Com o velho satanás?
Talvez, depois saberemos
Quando chegar Zé Thomaz.

Zé Thomaz -- o companheiro
-- Chegou, depois de uma hora.
Quando o viu, gritou de longe:
“Que foi “seringueiro espora?!”
Teria você “encontrado”
Mapinguari ou caipora?

Encontrei mapinguari:
(Respondeu-lhe João Tomé)
Me “atrepei” numa “pupunha”
“Com as alpargartas no pé...”
“Então me conte “direito”
como esse danado é!”

“Ele é maior que um boi
Daqueles do rio da Prata...
Chega “estremecia” a mata...
Fez-me “atrepá” na “pupunha”
Calçando as alpargatas!

“Mas rapaz...será “possível”
Que não deste “ao menos” um tiro?...”
“Ora, eu não dei...dei só doze!
Mas, de que mais me admiro
É “que ele” fez tanta conta
Que não mudou nem de giro!”

“Mas onde foi que encontraste
Tamanha “fera” de fama?...”
“Foi no “cabeço” da volta
Junto à madeira da “cama”
Cá mais atrás, eu vi, “fresco”
O rasto dele na lama...”

“Esse bicho é cabeludo
E todo cheio de escama?”
“Eu lá pude “reparar”
“Pra esse “filho de mulher-dama?”
Que além de ser muito feio
É todo cheio de trama!...

“E o resto dele, como é?
Se parece com o de burro?”
“Parece, mas é maior!
E se tu lhe visse o “esturro!...
Eu penso que aquele figa
Mata as “onça” só de murro.”

“Qué vê, “vamo” quinta-feira
Que é dia que ninguém corta...
Hoje é segunda e é das “arma”
(Santo pra quem tem mãe morta)
Tu vai só vê o “esfolado”
Na baixa da “ponte-torta”...

Eu tava “cuiendo” o leite
Da madeira do “cabeço”
Quando vi um grito longo
“Como” outro não conheço!
Me deu um tremor nas perna
Que quase a terra eu não desço...

Mas, afinal desci sempre
Me assustando de Cupim!
“Rifle com bala na agulha
Mão no cabo do “ispadim”.
Quando eu cheguei debaixo
Ele gritou mesmo assim
Desta vez foi “redobrado”
Gargalejando no fim!

Eu armei o “pau-furado”
Me encostei na “seringueira”
Quando o monstro “pretejou”
Eu pensei que era um bandeira...
Baixei a bala pra cima...
Mas qual, José. Foi “besteira”!

Enquanto o cão coça o olho
Dei dez tiros no danado...
Mas ele, nem mode coisa!
Nem ficou “arrepiado”
Continuou avançando
No meu rumo, me provando
Que tinha o “corpo-fechado”.

“Aí dei-lhe mais dois tiros.
Pronto! O rifle virou pau...
Meus cabelos espencaram
As pernas virou mingau...
Meti a mão na poltrona,
Nem uma bala, sinha dona,
Danou-se seu “Nicolau”

“Aí, eu vi “que morria...”
- A coisa tava amarela! –
Na “madeira” eu não subia
Pois é de sete tigelas
Chorei de ser seringueiro...
“Cacei”os dois “companheiros”
Já tavam no “pé-da-goela!”

Me pus de trás da “madeira”
Me deitei rés com o chão.
“Me peguei” com São Francisco
De todo o meu coração...
{Mas, o lá do Canindé!)
Nisto, o bicho pois-se em pé”
Olha lá o estirão!...”
Tanto é alto “como” é grosso
O renegado “Mapim”
Eu me pegava com os santos
Não da “fé” ele de mim!
Oh! Que aperto...”que agonia...”
Meu...- aquele- não cabia
Nem um talo de capim...!

Ele “arreganhou” as unhas
E me arranhou a “madeira”!
Nisto, eu me ergui e corri
“Pro pé da Tucumanzera;
Nesta, - “calcule você” –
Subi mais depressa que
Largatixa em cajazeira!

Ele só fez “espiar”!
Mas nem ligou-me “importância...”
Se não fosse o São Francisco,
-Adeus “história” adeus dança! –
Quem diabo a coisa contava?...
“Porque nesta hora eu tava”
No “porão”daquela pança!...
  
** Versos do poeta-seringueiro acreano
Amâncio Leite, extraídos de “Os cantares
Seringueiros”, edição de 1930.
 
      

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Os Martins

Outro dia postei no  blog o texto “Bolero no Colégio”, falando de como aprendi a dançar esse ritmo dentro de classe, no Colégio Acreano, em meados dos anos cinquenta. Na história inclui o colega de classe Edilson Martins, que tinha o apelido de Come-Açúcar. Bem humorado, e muito melhor redator que eu, ele enviou um belo comentário, cheio de tiradas Machadianas, e não resisti em publicá-lo (segue no final deste post). Antes, reproduzo uma explicação que dei há alguns anos sobre a semelhança que carregamos no nome, ou seja, Elson Martins e Edilson Martins:

“Ele afirma ser mais novo que eu, mas, no fim dos anos cinqüenta, serviu o Tiro de Guerra antes de mim. O jornalista e produtor de TV Edílson Martins é acreano que nem eu e esteve em Rio Branco em dezembro (2008) para receber anistia política em sessão solene. Fui encontrá-lo, tomamos café no hotel e falamos mal do Altino Machado. “É saudável falar mal dos melhores amigos”! – disse ele que, no dia anterior, tinha tomado café com o Altino e falado mal de mim. Estou publicando a foto porque ainda tem gente pensando que somos irmãos, ou a mesma pessoa. Na verdade, existem mais coincidências: Saímos de Rio Branco para estudar em alguma faculdade em 1958 (ele pro Rio, eu pra Belém), nos tornamos jornalistas, fomos presos pelo regime militar e recebemos o Prêmio Chico Mendes...Só falta eu também ser anistiado e ganhar uma pensão”.


Eu e Edison (direita) na foto batida pelo garçom do hotel

Eis o texto-comentário que recebi do Edilson:

Caríssimo Elson:

Comovente o seu texto. Por gentileza do Carlos Celso, nem só de maledicência ele se alimenta, tive acesso ao resgate de parte de nossas vidas, e talvez, quem sabe, o melhor que ela nos ofereceu. Sem saudosismos. É que naquele mundo dominado pela inocência, sem prejuízo dos desejos mais pecaminosos, mais depravados, vivíamos um mundo muito além da transgressão.

A 2ª Grande Guerra não estava distante, e dela praticamente não tínhamos memória, o getulismo dominava nossos corações, o povo brasileiro ainda era um vira-latas, sem grande autoestima, sem Copa do Mundo, e nós todos mergulhados num mundo mágico, no meio de uma selva isolada, pantagruélica, de que sequer tínhamos consciência,  sem luta de classes aparente, sonhando e desejando as coxas da Marlise, encantados com a arte de ensinar da Florentina, entediados com as aulas de latim do professor Rufino,  e sem jamais imaginar que duas mulheres, de verdade, pudessem brincar de guerrear com suas aranhas.
No centro de tudo isso, o Colégio Acreano, as ruas de Rio Branco, os lamaçais pós-chuvas, as meninas lindas para os nossos olhos caipiras, a loucura do Tom Mix, a veadagem inaugural e evolucionária do Chaguinha, o culto ainda vivo à pessoa do Major Guiomar, o melhor estadista de todos os que pisaram a terra acreana. 

Por arredias, fugazes como um cometa, as calcinhas de nossas colegas de aula, num cruzar de pernas enlouquecedor, num momento de vacilo e imprudência que alguns garantiam ser sincero, inocente, se é que existe inocência na sedução, certamente eram mais cobiçadas que o liberou geral dos anos posteriores.
Mas este registro acima certamente é ridículo, por careta e premiar o passado, e passado não enche a barriga de ninguém. Mas que pareciam ter mais mistério, até porque o mistério é a vitamina do desejo, lá isso parecia!...

Como eram dóceis os nossos sonhos; o meu nem tanto por vender chá de burro, mucunzá, à noite, morrendo de vergonha, e sabendo que essa prática clandestina e criminosa me tirava do páreo de aspirar às alunas mais assediadas, mais deslumbrantes, mas apesar de tudo vivendo um mundo delirante, que o seu texto, preciso, preciso como você, nada piegas, resgatou. E o fez de forma sublime, mermão. (Edilson Martins)

sábado, 7 de setembro de 2013

Papalagui Apressado

* Elson Martins       

Estamos na Semana do Meio Ambiente (2006) e nós, indivíduos chamados civilizados, convencionamos que a data é adequada para se falar sobre a natureza, a ecologia, os homens da floresta, essas coisas...
          
Por isso escolhi o tema Papalagui, título de um livrinho de pouco mais de 100 páginas (Editora Marco Zero) que tem uma dezena de edições em português e, certamente, muito mais em outras línguas. A versão original foi impressa em alemão.
          
Os textos colhidos por Erich Scheurmann são comentários do chefe indígena Tuiávii, dos mares do sul. Scheurmann esclarece que o autor jamais pensou em fazer tal publicação e que vivia com a mulher em sua ilha, desinteressado de contatos com a civilização branca. Esta, num determinado tempo histórico, teria ensinado muita coisa errada a seu povo.
          
A expressão papalagui é traduzida como branco ou estrangeiro, mas significa literalmente “aquele que furou o céu”. Surgiu como explicação ao aparecimento do primeiro missionário europeu que desembarcou em Samoa, num veleiro cujas velas brancas apareceram no horizonte como um buraco que se abriu no céu azul.
          
Livro reúne comentários de chefe indígena
Quando criança, eu gostava muito de ver os filmes rodados no arquipélago de Samoa, geralmente protagonizados por Jeff Chandler, um ator cujos traços fisionômicos se assemelhavam aos dos habitantes da região. O cenário feito de águas limpas, floresta e pessoas sorridentes valiam mais que todo o enredo dos filmes série “c” de Hollywood. Tudo parecia natural e compensador!
           
A descrição que Tuiávii faz sobre como vivem os brancos nas grandes, médias ou pequenas cidades, entretanto, não são nem um pouco honrosas. Ele não entende como nós, os papalagui, conseguimos viver trancados em blocos de cimento se fechando para as coisas singelas (e essenciais) da vida, ou correndo como tolos ou malucos atrás do tempo.
          
O tempo, segundo ele, escapa da gente “tal qual a cobra na mão molhada quando a seguramos com força demais”. Para sua tribo o tempo sobra:

Nunca nos queixamos do tempo; amamo-lo conforme vem, nunca corremos atrás dele, nunca pensamos em ajuntá-lo nem em parti-lo. Nunca o tempo nos falta, nunca nos enfastia. Adiante aquele dentre nós que não tem tempo! Cada um de nós tem tempo em quantidade e nos contentamos com ele... Não precisamos de mais tempo do que temos e, no entanto, temos tempo que chega.  Sabemos que no devido tempo haveremos de chegar ao nosso fim e que o Grande Espírito nos chamará quando for sua vontade, mesmo que não saibamos quantas luas nossas passaram.
          
Neste começo de milênio vemos que o conceito de eficiência em qualquer atividade pressupõe a correria não recomendada por Tuávii. No moderno governo da floresta do PT acreano, por exemplo, os amigos quase nem conversam mais porque precisam cumprir agenda de atividades, e o tempo parece “curto”. Além disso, quem não se enquadra na velocidade exigida vai ficando para trás como lerdo, ineficiente, descartável.
          
Durante a solenidade de abertura da Semana do Meio Ambiente, realizada na Praça Chico Mendes, em Rio Branco, um artista com função no governo chegou perto de mim e desabafou: “Estou meio angustiado porque não consigo trabalhar bem, fora do meu tempo. Eu preciso sentir o que faço e nunca sei quanto tempo isso leva”. Nessa hora, enquanto o governador lia a programação da semana, minha cabeça voltou-se para um trecho do chefe indígena de Samoa:
Devemos livrar o pobre papalagui, tão confuso, da sua loucura! Devemos devolver-lhe o verdadeiro sentido do tempo que perdeu. Vamos despedaçar a sua pequena máquina de contar o tempo e lhe ensinar que, do nascer ao por do sol, o homem tem muito mais tempo do que é capaz de usar.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Parto Impossível

* Elson Martins

Na Vila Icoaracy, nas proximidades de Belém, Estado do Pará, vive um artesão acreano, especialista em entalhe em madeira e na produção de cerâmica marajoara. Trata-se do José Maria Pinho, nascido no Seringal Nova Olinda, no alto Rio Iaco. Ele tem 60 anos (2007) ou quase isso, é casado e possui duas filhas bonitas: uma delas é formada em medicina, a outra é comissária da companhia aérea Tam.

A história do Zé Maria  poderia começar com um espanto: “É um milagre que tenha nascido”!  Sua mãe (minha irmã) Aldery viveu 45 anos no alto rio Iaco, no seringal Nova Olinda, e faleceu em Icoaracy com mais de 80 anos. Na década de quarenta, ela casou  em Sena Madureira com Salomão Pinho, um “arigó” (nordestino que migrava para a Amazônia atraido pela economia da borracha). Alfaiate de profissão, ele costurou calças e blusões de mescla azul para seringueiros, mas, a partir de 1950, passou a viver na cidade (Sena Madureira, depois Rio Branco) vestindo a elite seringalista. Na capital, sua alfaiataria funcionou no segundo distrito, nas proximidades do histórico Hotel Madrid, numa época em que o “fato” (terno) de linho branco ou de casimira Aurora azul impunha-se em todas as solenidades, e até no dia-a-dia das repartições públicas.

Morando com o casal, durante muito tempo eu fui o “cristo” que saindo do cruzamento da avenida Ceará com a rua Marechal Deodoro, junto ao campo do Rio Branco Futebol Clube, no primeiro distrito da cidade, levava seu almoço até a alfaitaria no segundo distrito. Fazia uma longa caminhada a pé, tendo que atravessar o rio Acre de catraia. Muitas vezes, por conta da travessia, o cunhado recebia a comida fria, porque, para sobrar dinheiro para o picolé e sem que ele soubesse, eu aguardava o Jabuti, uma catraia grande e modorrenta que mantida pelo governo fazia a travessia de graça.

Aldery tinha o útero pequeno, e por isso não devia engravidar. Mas só descobriu o risco na primeira gestação, que terminou por abortar. Como não havia, à época, nem preservativos nem campanhas para limitação de filhos, engravidou uma segunda vez. Aí, a familia providenciou para que fosse atendida onde a medicina oferecia mais recursos. A escolha foi Fortaleza, capital cearense aonde chegou de navio, precisando retirar o feto que estava morto no útero.

“A senhora não vai sobreviver a uma terceira gravidez”, advertiu o médico que a atendeu. Mas, imagina se não ia acontecer de novo! E dessa vez ela foi recomendada a um especialista de Goiânia, que confirmou o risco e a desenganou: morreriam mãe e filho durante o parto.

Aflita, mas conformada, Aldery retornou a Sena Madureira decidida a morrer no meio da família. Subiu o rio Iaco e passou a morar num casebre no topo de um morro no seringal Nova Olinda,  a um quilômetro da casa dos pais. Separava-os apenas um descampado com ladeiras e arbustos.

Quando não estava costurando calças de mescla azul para os seringueiros e os parentes, o marido Salomão se enfiava no mato ou montava numa canoa para caçar e pescar. A mulher o aguardava no barracão da família. Ao retornar, ele soprava (apitava) um cartucho seco avisando, ao que Aldery respondia soprando outro cartucho.

Assim, chegou o dia em que Salomão apitou, apitou, sem resposta. Aldery estava sentindo as dores do parto e nossa mãe, Lelé, tinha mandado alguém buscar a parteira Maria Carneiro numa colocação do Centro (nas entranhas da mata onde vivem e trabalham os seringueiros). O comboieiro havia partido na burra chamada Ligeira, com a recomendação para trazê-la na garupa, voando. Enquanto isso, o desespero tomava conta dos irmãos e das comadres, e as crianças foram levadas para longe da casa, para pescar mandi no igarapé ou brincar numa ponta de praia em frente.

Como a parteira demorava chegar, uma outra pessoa pegou o varadouro (caminho aberto na floresta ligando a sede do seringal às colocações dos seringueiros) para ver o que tinha acontecido. Não tardou a descobrir que o  primeiro emissário montava a burra e dona Maria Carneiro, coitada, um “tiquim” de gente vinha a pé com lama no joelho. A situação foi corrigida e a burrinha irrompeu na margem, finalmente, com sua carga preciosa.

A essa altura, uma senhora de nome Palmira, amiga da familia, tentava ajudar recorrendo a métodos supostamente utilizados pelos índios para fazer o parto: amarrou uma toalha molhada em volta da barriga da parturiente,  pedindo a esta que ficasse de cócoras sobre uma caixa de sabão Zebu, de forma que o bebê pudesse ser despejado no caixote.  Palmira acreditava ser útil soltar umas baforadas com cigarro “porronca” em volta da cena insólita.
           
Zé Maria em foto recente (2013), com mais de 60 anos, mora em Coaracy, próximo a Belém (PA).

Ah, pra quê! Quando a miúda Maria Carneiro viu aquilo foi logo esbravejando: “que diabo de marmota é essa”? Desamarrou a toalha, chutou a caixa de sabão para longe e começou novo procedimento deitando a parturiente na cama, examinando-a com sua sabedoria de parteira. O braço do menino estava de fora; ela o empurrou para dentro, em seguida preparou um chá e banho quente com ervas; rezou baixinho, depois tranquilizou a todos com o informe de quem domina o que faz :

 - O menino (seria adivinhação?) vai nascer, mas só daqui a umas seis horas.
 Nem mais nem menos, o Zé Maria nasceu; só que veio ao mundo sem a placenta, ficando roxo e sem chorar o choro da vida. Pelo menos a mãe estava salva, pensou a família, enquanto Maria Carneiro, incrivelmente calma, tentava palmadinha, sopro na boca, pressões no ventre do bebê...Como ultimo recurso, perguntou se existia na casa algum vinho, mesmo aberto e encostado? Com a resposta positiva, pediu que esquentassem um pouco numa xícara, pegou uma colherinha com a bebida e enfiou na garganta da criança que ”esgoelou”, provocando alívio geral. O avô (meu pai) disparou os três tiros de espingarda apara avisar que o seringal tinha mais um homem.

Enquanto os tiros ecoavam na floresta, a curiosa Palmira acompanhou, com total encantamento, Maria Carneiro retirar a placenta de dentro do útero da Aldery, uma tarefa complicada mesmo para um especialista em medicina. E a percebeu reconfortada, por ter colocado em prática, com êxito, suas habilidades.

Só então a pequenina parteira saiu do quarto. De forma acanhada, cumprimentou a todos na cozinha e aceitou um café. Depois, discretamente, escolheu um canto para ficar sozinha. E, discretamente, começou a chorar.