terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Xapuri dá nome e inspira revista em Goiás

* Elson Marins

Zezé Weiss - Foto: Facebook


Aqui no Acre pouca gente viu, mas circula em Brasília e outras cidades do país, desde o fim do ano passado, a revista “Xapuri Socioambiental”, cujo n.13 circulou em novembro. É uma publicação de muito bom gosto, colorida, que explora temas diversos em reportagens muito bem escritas, com fotos lindas e diagramação impecável! Ainda se dá ao luxo de usar papel reciclado.

Quando a vi, fiquei impactado e quis logo saber: quem, em Xapuri, está editando uma revista tão bonita?

Por isso fui direto ao expediente. E me deparei com o nome da Zezé Weiss, que puxa outros bem conhecidos e qualificados jornalistas, escritores e pesquisadores. Lá estava o Jaime Sautchuk, cujos textos aprecio desde o tempo da imprensa alternativa nos jornais Opinião e Movimento. Ele brilhou também na grande imprensa: em O Globo, Estadão, Folha de S.Paulo e Veja. E escreveu livros. E fez vídeos bonitos, até ganhou o prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos com “Balbina, Destruição e Morte”

Colaboradores de peso como Joseph Weiss (engenheiro,PhD) Leonardo Boff (teólogo, filósofo, escritor), Lúcia Resende (mestra em Educação), Jacy Afonso (dirigente nacional da CUT), Eduardo de Deus (acreano, pesquisador) e mais gente especial vai se chegando para colaborar com a revista dando o seu tom. No Conselho Editorial encontramos o nosso ex-governador Binho Marques e mais uma dezena de jornalistas, escritores e militantes

A Zezé Weiss, que aparece como produtora e editora-chefe, é uma velha conhecida dos acreanos. Foi ela quem produziu o livro-album Vozes da Floresta, em 2008, montando histórias e perfis de pessoas que protagonizaram entre os anos 1970 e 1990 os movimentos socioambientais que projetaram Chico Mendes para o mundo. Zezé conheceu Chico Mendes e se envolveu com sua luta em defesa dos povos da floresta.

É ela quem explica de onde vem a inspiração da revista Xapuri, “made in” Formosa, no Estado de Goiás, onde vive: “Nossa inspiração vem do exemplo de nossas populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas e quilombolas que, desde o “princípio das coisas”, sempre fizeram e ainda hoje fazem o ‘que tem de ser feito’ para viver uma vida inteligente, saudável, feliz e sustentável.”

Explica também o que seu qualificado grupo faz:

“De tudo, fazemos um pouco, e sempre com muito carinho. Em comunicação: mídia eletrônica, jornais, revistas, livros, planos de mídia, planos de marketing. Em projetos: planejamento, projetos técnicos, projetos sociais, captação de recursos, gestão, execução, acompanhamento e prestação de contas. Em especial, prestamos consultoria técnica a entidades e governos na captação de recursos junto ao governo federal”.

Entrevero - A revista Xapuri ainda não se espalhou pelo Acre, que a inspirou, porque sua editora-chefe foi acometida de um câncer e teve que permanecer mais tempo em Formosa (Goiás) se submetendo a tratamento rigoroso. Mas a revista continuou crescendo com a ajuda de vários “anjos”, como ele mesma diz. Zezé está vencendo também a doença, com tempo para alimentar sua página no Facebook. Eis um dos recados que colocou recentemente:

“SALVE! A partir de 16 de novembro, você paga 95 reais por 12 edições que circulam mensalmente. Contamos com sua parceria para fazer uma revista cada vez mais linda, mais alto astral e mais cheia de bons conteúdos. Vem com a gente! www.xapuri.info/assine”.

Para fazer justiça, preciso dizer que a revista Xapuri, embora junte renomados especialistas em suas edições não é uma publicação para acadêmicos, ou melhor, para entendidos, que de tão especial vire uma “chatice”. Nada disso. A revista é faceira, tem a cara do Brasil, da Amazônia e se parece também com o Acre na sua singeleza. Por exemplo: na edição n.4, de fevereiro, a publicitária Amanda Lima ocupa duas páginas para ensinar a receita de “Requeijão caseiro – delícia da Roça”.

Aqui e ali o leitor se depara com uma encantadora história de vida de personagens que vivem pelos sertões brasileiros, ou nos confins da Amazônia. Ou se surpreende com uma tradição indígena, ou com um poema da Cora Coralina, ou com experiência de educação ambiental que podia ser desenvolvida em seu bairro, em sua comunidade. Também puxa a orelha de prefeitos que não enxergam que cuidar das calçadas nas grandes e pequenas cidades é uma questão prioritária.


Aproveite! Assine Xapuri!

Capas de revista Xapuri Socioambiental produzidas em 2015 – Foto: Reprodução

Prováveis consequências do aquecimento global para o Brasil

(Trecho de uma matéria assinada por Joseph S. Weiss* na edição de Novembro da atraente revista de Zezé Weiss):

Caso o mundo não consiga limitar o aquecimento a 2 graus centigrados com relação a meados do século 19, como se prevê com a COP-21, o Brasil sofrerá várias consequências. Algumas delas:

Amazônia – até 60% da floresta pode virar cerrado a partir de 2050.

Nordeste – aumentará a tendência à desertificação. O calor aumentará a evaporação, os solos serão mais secos, prejudicando a agricultura familiar e a irrigação.

Sul – o clima muito mais quente tornará inviável a produção de grãos. Haverá chuvas e ventos fortes, porém infrequentes.

Centro-Oeste – as chuvas serão mais concentradas, entremeadas de vários veranicos. A erosão prejudicará a agricultura. Assim mesmo, a produção deslocará do Sul pata essa região.

Sudeste – Na Bacia do Prata, que corresponde a 1/6 do Brasil e onde vive a maior parte dos brasileiros, haverá muito menos água para beber e para gerar energia.

Cidades – serão mais quentes, prejudicando os bairros pobres, sujeitos a mais inundações, enchentes e desmoronamentos. Haverá mais doenças, como dengue e malária.

*Engenheiro Agrônomo Ph.D – diretor da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica.

A luta de Lula no Acre

* Elson Martins



Em dezembro de 1988, Lula discursa junto ao caixão de Chico Mendes, no velório dentro da igreja de Xapuri



Em toda a história deste País, nenhum chefe politico e Presidente da República visitou e fez tanto pelo Acre quanto Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores. Hoje, na condição de ex-Presidente “demonizado” pelas elites do Sul e Sudeste, com utilização em larga escala das redes sociais via Internet, ele chega a Rio Branco pela 25ª vez e na segunda-feira, 30*, segue cedinho a Brasileia, na Fronteira com a Bolívia, para participar do I Encontro das Cadeias Produtivas Sustentáveis. Na ocasião vai inaugurar o Frigorífico Dom Porquito, inserido na parceria governo- empresa-comunidade que inova com atividades produtivas sustentáveis em áreas abertas da região do Alto Acre.

Lula começou sua amizade com os acreanos em fins dos anos 70, quando era líder metalúrgico na região do ABC paulista. De lá para cá, nunca deixou de participar dos acontecimentos sindicais e políticos que promoveram mudanças fundamentais no Acre. Em julho de 1980, participou em Brasileia do protesto pelo assassinato do presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais Wilson Pinheiro, a mando de fazendeiros. Ao discursar de um palanque improvisado na carroceria de um caminhão, em frente ao sindicato, declarou: “Está na hora da onça beber água!”

O recado foi entendido pelos companheiros de Wilson que ao retornarem para suas colocações de seringa, toparam no caminho com o capataz da Fazenda Nova Promissão, Nilo Sérgio, principal suspeito do crime, e meteram bala nele. A Policia Militar prendeu e torturou mais de 40 seringueiros, enquanto Lula e outras lideranças como Chico Mendes e o delegado regional da Contag, João Maia, eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional do regime militar.

No dia 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes foi morto em condições semelhantes pelo peão Darcy Alves a mando do pai fazendeiro Darli. Desta vez, Lula, na condição de deputado federal (PT) fez longo e polêmico discurso ao lado do caixão do líder seringueiro durante o velório na igreja de São Sebastião em Xapuri. Como diretor da TV Aldeia na época, encaminhei a gravação em fita Umatic (ver na foto).

Nas eleições de 1990 para o Governo do Estado, o candidato Edmundo Pinto, do PDS (partido antecessor do DEM), ganhou do estreante Jorge Viana (PT) no segundo turno. Preocupado com o destino que seria dado à fita na nova administração, favorável aos fazendeiros, tomei o cuidado de fazer cópia e levar comigo para o Amapá onde vivi 13 anos como assessor do governador João Alberto Capiberibe (1995-2002) e editor do jornal Folha do Amapá. De volta ao Acre, em 2003, consegui fazer cópia digital dessa e de outras 33 fitas que passei para o acervo da Biblioteca da Floresta e para a TV em 2008.

Em 2010, portanto 22 anos depois daquele acontecimento trágico, transcrevi e publiquei no Almanacre o discurso ontológico que marca a relação do atual ex-Presidente como amigo e parceiro dos acreanos desde aqueles tempos tristes. Vale a pena ler de novo.

Discurso corajoso (1988):

O Chico termina numa entrevista que ele deu ao jornal do Brasil dizendo o seguinte: “Eu quero ficar vivo para ajudar a salvar a Amazônia, eu não quero morrer, porque esse negócio de ato público depois da morte, esse negócio de grandes enterros acaba no dia seguinte”. Esse era o pensamento do velho Chico, há tempo, pois ele participou junto comigo do ato de solidariedade ao companheiro Wilson Pinheiro, morto em Brasiléia dentro do sindicato em 21 de julho de 1980, e falou isso (…).

Chico conseguiu juntar a bandeira do direito ao trabalho, do direito à vida dos trabalhadores desse Estado e dessa região com uma luta pela defesa do meio ambiente. Por quê? Porque preservar o meio ambiente para os trabalhadores que moram na região amazônica, preservar as árvores, preservar as castanheiras, preservar as seringueiras é, na verdade, preservar o direito do feijão e do arroz de cada criança dessa região. Porque o gado traz riqueza pro dono do gado, mas não traz sequer carne para os companheiros que trabalham aqui. E o que o companheiro Chico queria? Ele queria pura e simplesmente que deixassem a mata, que era instrumento de sobrevivência de milhares e milhares de trabalhadores, em paz; que fossem plantar gado noutro lugar, criar gado noutro lugar, mas deixassem aqui a mata, as seringueiras, as castanheiras, pros trabalhadores sobreviverem.

Na TV Globo o doutor Romeu Thuma, a quem o Chico enviou várias cartas, dizia o quê? Que a culpa do que está acontecendo aqui é da Polícia Militar… Mas nós precisamos dizer que a culpa não é apenas da polícia militar, a culpa é de todos eles juntos: é da polícia federal, é da polícia militar, da justiça brasileira, da Presidência da República (José Sarney- PMDB), porque, quando eles inventam que vêm aqui desarmar o povo, quem que eles desarmam? Eles pegam a espingardinha de caçar preá do trabalhador e deixam os fazendeiros com metralhadoras, calibre 12.

O companheiro Chico não ganhou as eleições (Chico foi candidato a deputado estadual em 1982 e a prefeito de Xapuri em 1985) e alguns imaginavam que a partir daí fosse desanimar. Qual não foi a surpresa dele: ao invés de desanimar, a luta do companheiro Chico ganhou outra dimensão; ele começou a ser reconhecido por organismos internacionais, pelo Banco Mundial, pelo BID, pelo movimento ecológico do mundo inteiro; começou a ser reconhecido, a ganhar prêmio, a viajar e a contar no mundo o que acontecia aqui; e começou inclusive a dar palpite, opinião sobre empréstimos que empresas estrangeiras ou bancos estatais iam fazer aqui, e por isso aumentou o ódio dos grandes proprietários contra o companheiro Chico. Aumentou o ódio a ponto de culminar com a morte dele no dia 22.

O quê que essas pessoas imaginam? Será que essas pessoas são tão burras que imaginam que matando Chico Mendes, mataram a luta do Chico Mendes? Será que eles não percebem (aplausos), será que esses ricos não têm exemplo na história, será que eles não percebem que esse mesmos grupos de ricos mandaram matar Jesus Cristo há dois mil anos atrás? E o povo não esqueceu as ideias de Jesus Cristo. Será que esses mesmos não estão lembrados que foram eles que mandaram matar Tiradentes, esquartejar e colocar sua carne pendurada nos postes, para que o povo nunca mais se lembrasse quem era Tiradentes? 30 anos depois o Brasil conquistou sua independência.

Eu queria dizer pra vocês uma coisa bem simples, pra cada um de vocês guardar na cabeça. Vocês conheciam bem o caboclo Chico, vocês sabiam bem o que Chico queria, vocês sabiam o que Chico dizia, vocês sabiam o que o Chico pensava. Pois bem, o que o companheiro Chico, que deve estar no céu nesse instante, espera de cada um? Ele espera que aumente a coragem e a disposição de luta de cada companheiro. Ele dizia sempre: no dia em que eu morrer meus companheiros vão se dobrar, cada um vai valer por 10 e a luta vai continuar. E é isso que tem que acontecer (aplausos). Porque se agora houver por parte dos trabalhadores e de todos nós, medo e preocupação, o quê que vai acontecer? Eles vão ficar rindo da vida e vão matar mais. O quê que nós deveremos esperar? Em primeiro lugar, nós achamos que o povo brasileiro quer justiça, e que a polícia prenda esses assassinos do companheiro Chico.

Se é verdade que esses dois sujeitos (Darli e Alvarino Alves) tinham 30 mil hectares aqui; se é verdade que eles eram bandidos em Minas e no Paraná e já vieram fugidos; se é verdade que aqui eles ficaram contratando grileiros e já mataram mais de um trabalhador, e se é verdade que essa propriedade deles pode até ser grilada… O quê que deveria acontecer como atitude nobre do governo? O governo deveria desapropriar essa terra e dar para os trabalhadores rurais cultivarem, ao invés de deixá-las ficar nas mãos de bandidos e grileiros; porque, se o governo fizesse isso e cada fazendeiro que manda matar alguém perdesse sua terra, na verdade essas pessoas iriam ter medo de continuar matando trabalhador rural (…).

Nós precisamos dizer em alto e bom som: o governo precisa começar a investigar cada crime colocando policiais sérios pra fazer isso, porque nós sabemos que tem muitos policiais que são capachos de fazendeiros (aplausos) na cidade. É preciso que haja seriedade e vocês sabem, companheiros, pra terminar, que cada um de nós, tanto nós de São Paulo, como companheiros do Acre, de Rondônia, que chegaram aqui agora, sabemos que temos um compromisso sério: é não deixar a coisa agora esfriar, é não deixar, sabe, o que eles querem, que o povo esqueça o companheiro Chico Mendes. Agora é que nós temos que mostrar pra eles que nós vamos fazer a luta do companheiro Chico Mendes ser conhecida nesse país. Agora que vamos arrumar solidariedade, não apenas pra dar sobrevivência para a companheira do Chico e de seus filhos, mas arrumar solidariedade pra dar ajuda concreta à luta dos trabalhadores que defendem a Amazônia, a luta dos trabalhadores que defendem o seringal, a luta dos trabalhadores que defendem a manutenção das castanheiras e a luta dos trabalhadores que brigam por reforma agrária.

A classe dominante tá ficando com medo, porque ela sabe que a classe trabalhadora tá amadurecendo; ela sabe que a classe trabalhadora tá tomando consciência, ela sabe que aqui hoje tá PV, PT, daqui a pouco chegam companheiros do PMDB, daqui a pouco chegam do PDT, sei lá, o movimento sindical… Ela sabe que tá crescendo a solidariedade e começa a ficar com medo.

Eu acho que é um compromisso dos partidos políticos progressistas, do movimento sindical, da CUT, da CGT, que a gente precisa transformar cada palavra do Chico numa profissão de fé por esse país aí afora. Daqui a pouco eles vão perceber que o que Chico falava aqui e era ouvido apenas pelos companheiros do sindicato dele vai ser discutido lá no agreste de Pernambuco, lá na Bahia, na favela de São Paulo (…). Nós deveremos eleger o Chico, hoje, o símbolo da descrença desse governo, deveremos eleger o companheiro Chico hoje como o mártir da classe trabalhadora camponesa desse país, porque o que ele fez foi dedicar 44 anos da sua vida à luta pela liberdade dos trabalhadores.

A morte do Chico não foi o fim, ela foi o início da libertação da classe trabalhadora brasileira.

*Texto publicado originalmente na coluna do Jornal Página 20, em 28 de novembro de 2015.

Amazônia tem “oceano subterrâneo”

Elton Alisson

O Acre inteiro tem um mar de água doce por baixo (conforme mapa publicado pela Fapesp)
A Amazônia possui uma reserva de água subterrânea com volume estimado em mais de 160 trilhões de metros cúbicos, estimou Francisco de Assis Matos de Abreu, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), durante a 66ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que terminou no dia 27 de julho de 2014, no campus da Universidade Federal do Acre (UFAC), em Rio Branco.

O volume é 3,5 vezes maior do que o do Aquífero Guarani – depósito de água doce subterrânea que abrange os territórios do Uruguai, da Argentina, do Paraguai e principalmente do Brasil, com 1,2 milhão de quilômetros quadrados (km2) de extensão.

“A reserva subterrânea representa mais de 80% do total da água da Amazônia. A água dos rios amazônicos, por exemplo, representa somente 8% do sistema hidrológico do bioma e as águas atmosféricas têm, mais ou menos, esse mesmo percentual de participação”, disse Abreu durante o evento.

O conhecimento sobre esse “oceano subterrâneo”, contudo, ainda é muito escasso e precisa ser aprimorado tanto para avaliar a possibilidade de uso para abastecimento humano como para preservá-lo em razão de sua importância para o equilíbrio do ciclo hidrográfico regional.

De acordo com Abreu, as pesquisas sobre o Aquífero Amazônia foram iniciadas há apenas 10 anos, quando ele e outros pesquisadores da UFPA e da Universidade Federal do Ceará (UFC) realizaram um estudo sobre o Aquífero Alter do Chão, no distrito de Santarém (PA).

O estudo indicou que o aquífero, situado em meio ao cenário de uma das mais belas praias fluviais do país, teria um depósito de água doce subterrânea com volume estimado em 86,4 trilhões de metros cúbicos.

“Ficamos muito assustados com os resultados do estudo e resolvemos aprofundá-lo. Para a nossa surpresa, descobrimos que o Aquífero Alter do Chão integra um sistema hidrogeológico que abrange as bacias sedimentares do Acre, Solimões, Amazonas e Marajó. De forma conjunta, essas quatro bacias possuem, aproximadamente, uma superfície de 1,3 milhão de quilômetros quadrados”, disse Abreu.

Denominado pelo pesquisador e colaboradores Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), o sistema hidrogeológico começou a ser formado a partir do período Cretáceo, há cerca de 135 milhões de anos.

Em razão de processos geológicos ocorridos nesse período foi depositada, nas quatro bacias sedimentares, uma extensa cobertura sedimentar, com espessuras da ordem de milhares de metros, explicou Abreu.

“O Saga é um sistema hidrogeológico transfronteiriço, uma vez que abrange outros países da América do Sul. Mas o Brasil detém 67% do sistema”, disse.

Uma das limitações à utilização da água disponível no reservatório, contudo, é a precariedade do conhecimento sobre a sua qualidade, apontou o pesquisador. “Queremos obter informações sobre a qualidade da água encontrada no reservatório para identificar se é apropriada para o consumo.”

“Estimamos que o volume de água do Saga a ser usado em médio prazo para abastecimento humano, industrial ou para irrigação agrícola será muito pequeno em razão do tamanho da reserva e da profundidade dos poços construídos hoje na região, que não passam de 500 metros e têm vazão elevada, de 100 a 500 metros cúbicos por hora”, disse.

Como esse reservatório subterrâneo representa 80% da água do ciclo hidrológico da Amazônia, é preciso olhá-lo como uma reserva estratégica para o país, segundo Abreu.

“A Amazônia transfere, na interação entre a floresta e os recursos hídricos, associada ao movimento de rotação da Terra, cerca de 8 trilhões de metros cúbicos de água anualmente para outras regiões do Brasil. Essa água, que não é utilizada pela população que vive aqui na região, representa um serviço ambiental colossal prestado pelo bioma ao país, uma vez que sustenta o agronegócio brasileiro e o regime de chuvas responsável pelo enchimento dos reservatórios produtores de hidroeletricidade nas regiões Sul e Sudeste do país”, avaliou.

Vulnerabilidades - De acordo com Ingo Daniel Wahnfried, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), um dos principais obstáculos para estudar o Aquífero Amazônia é a complexidade do sistema.

Como o reservatório é composto por grandes rios, com camadas sedimentares de diferentes profundidades, é difícil definir, por exemplo, dados de fluxo da água subterrânea para todo sistema hidrogeológico amazônico.

“Há alguns estudos em andamento, mas é preciso muito mais. É necessário avaliarmos, por exemplo, qual a vulnerabilidade do Aquífero Amazônia à contaminação”, disse Wahnfried, que realizou doutorado direto com Bolsa da FAPESP.

Diferentemente do Aquífero Guarani, acessível apenas por suas bordas – uma vez que há uma camada de basalto com dois quilômetros de extensão sobre o reservatório de água –, as áreas do Aquífero Amazônia são permanentemente livres.

Em áreas de floresta, essa exposição do aquífero não representa um risco. Já em áreas urbanas, como nas capitais dos estados amazônicos, isso pode representar um problema sério. “Ainda não sabemos o nível de vulnerabilidade do sistema aquífero da Amazônia em cidades como Manaus”, disse Wahnfried.

Segundo o pesquisador, tal como a água superficial (dos rios), a água subterrânea é amplamente distribuída e disponível na Amazônia. No Amazonas, 71% dos 62 municípios utilizam água subterrânea (mas não do aquífero) como a principal fonte de abastecimento público, apesar de o estado ser banhado pelos rios Negro, Solimões e Amazonas.

Já dos 22 municípios do Estado do Acre, quatro são totalmente abastecidos com água subterrânea. “Apesar de esses municípios estarem no meio da Amazônia, eles não usam as águas dos rios da região em seus sistemas públicos de abastecimento”, avaliou Wahnfried.

Algumas das razões para o uso expressivo de água subterrânea na Amazônia são o acesso fácil e a boa qualidade desse tipo de água, que apresenta menor risco de contaminação do que a água superficial.

Além disso, o nível de água dos rios na Amazônia varia muito durante o ano. Há cidades na região que, em períodos de chuva, ficam a poucos metros de um rio. Já em períodos de estiagem, o nível do rio baixa 15 metros e a distância dele para a cidade passa a ser de 200 metros, exemplificou.
*Graduado em jornalismo pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), com extensão em jornalismo impresso pela Universidade de Navarra, da Espanha, e em jornalismo econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) – Agência FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

sábado, 7 de novembro de 2015

Leila Jalul e sua dor risonha

Ela se mudou do Acre para a Bahia faz seis anos. Partiu no exato momento em que se insurgia como escritora com estilo, boa memória e muitíssima irreverência. Primeiro, produziu o livro de poesias Coisas de Mulher (1995). E somente uma década depois descobriu que os textos curtos, reunidos em Suindara (2007) e Das Cobras, Meu Veneno (2010) - atendiam melhor a veia criativa do seu escrachado humor. Na Bahia, mas com pés, mãos e cabeça no Acre, abriu as comportas nos contos: Minhas Vidas  Alheias (2011), Luzinete (2012) e agora Memórias Andantes.

É fácil perceber que Leila Jalul que escreve (mais compõe) textos tão agitados quanto harmoniosos, carregados de histórias e afetos é mais de uma pessoa: são várias Leilas. De vez em quando, uma delas prega uma peça nos leitores ao encobrir, parcialmente, uma autora triste e desapontada. Aquela que se proclama venenosa. Um veneno, contudo, que salva o amor fecundo e coletivo, incomparavelmente melhor que o amor pessoal e exclusivo.

Tanto faz! Nossa escritora recolhe no cotidiano e carrega no colo, aqui ou lá, as misérias e contradições de uma vida cada vez mais intangível. Entretanto, é fácil localizar nos faces, blogs e sites de hoje, o que podemos identificar como dor risonha e iluminada.

(Elson Martins)
 

Mea Culpa - Pessoas amigas, quem pensar que eu mereço glórias, elogios, essas coisas que todos gostam, tirem o cavalinho da chuva. Sou (?) merecedora de muitos castigos, isso sim.

Para me livrar da fome dos meus parasitas, confesso, quando meninota, cometi muitas safadezas. Para me divertir, cometi abusos.

O terreno da minha casa era do lado do Colégio São José. Vizinha das freirinhas bacanas e boazinhas que, sabedoras dos meus dotes artísticos, sempre me convidavam para fazer teatro. Nunca estudei no colégio e, por razões de foro íntimo, nunca dei muita bola pra padres e freiras. Até uma certa raiva deles eu tinha.

Coisas de gente ruim de gênio.

Gostava de me embrenhar nas capoeiras ao fundo do colégio. As noivinhas de Jesus criavam umas galinhas gordas, caipironas e botadeiras de ovos galados de primeira qualidade.

Meu trabalho era simples. Ficava escutando o cocoricó e, de forma certeira, descobria onde eram os ninhos. Tinha até um mapa onde marcava com uma cruzinha onde estavam os ovos do dia e os que aguardavam a chegada dos pintos. Aqui vale um esclarecimento: sempre deixava o indez.

Acho que fui a pessoa que mais comeu mujangué nesta vida. Até que, um dia, olhando de longe, descobri onde as freiras estendiam suas roupas. Isso aguçou a minha curiosidade, digo, meus instintos mais primitivos. Nada mais de pedir ovos 'emprestados'. Eu precisava, custasse o que custasse, fazer com que algumas peças desaparecessem do varal. Meu objetivo era um só: deixar as freiras sem calcinhas e sem um chapeuzinho que amarravam para esconder a cabeça. Somente isso. A farra pela farra. A maldade pela maldade. A safadeza pela safadeza.

Passada essa fase, bolei outra maneira de desvendar os mistérios das pobres irmãs. Precisava saber o que tinha debaixo daqueles véus negros. Teriam cabelos? Seriam carecas, como diziam as más línguas? Quem era loura? Quem tinha cabelo pixaim?

Um dia, durante uma campana, fui flagrada circulando pelo jardim proibido. A freirinha me conhecia e era uma das minhas melhores amigas.
De forma muito especial ela me chamou em particular e, sem sermões, fez questão de me levar para conhecer o interior do 'claustro'. E me revelou tudo que eu queria saber. As freiras tinham cabelos. Cortados rente, mas tinham. Usavam camisolas de cambraia branca, todas do mesmo modelo e, como todos os mortais, iam ao banheiro e gostavam de bolos e comidas boas.

Aproveitei a oportunidade do afeto e contei a ela que, naquele exato dia, havia levado uma surra de ripão que quase me decepou as pernas finas.

Choramos juntas.

Leila na Primeira Comunhão (arquivo pessoal)

Palmatória ou chicote -
Quando muito pequena, sete anos, mais ou menos isso, estudei com Dona Eutália, mulher do Seu Sabino. Ela morava perto da Rádio Difusora Acreana e fez da sua sala de visitas uma sala de aulas particulares. Seu método era o da palmatória para os mais burrinhos (que nem eu) e do chicote para os seus filhos. Dos meninos não consigo lembrar os nomes. Das meninas, sim. Elas se chamavam Sônia e Norma.

Pois bem, Sônia namorava escondido com o Libério, irmão do Nabor, um espécime de beleza rara. Olhos verdes e cabelos louros. Um charme! 
Um dia, na hora da tabuada, lá se vem a Sônia apavorada depois de um encontro atrás da igreja. Lembro como hoje, era a 'tomada' da multiplicação dos 9. Eu não sabia de nada e errei o quanto era 9 x 7. Na justa hora que Sônia chegou do namorico, Dona Eutália me pediu a palmatória e lhe entreguei o chicote. Quem apanhou? A Sônia, claro!

De outra feita, já aluna do exame de admissão, a professora era a Dona Wolitz França Maia, esposa do Seu Licênio e mãe da Bebezinha, do Cheiroso e do Marquinho. Na aula de geografia, vésperas de prova, Marquinho chorava sem parar e a professora chamava por seu esposo, a quem tratava por Filhinho. Este, um pouquinho cheio da pinga, dormia a sono solto numa rede atada na varanda. E a professora me diz: Leilinha, pega uma pedra, um cabo de vassoura seja lá o que for que é já que acordo o Filhinho.

Olhei para a varanda e vi um cacho de enormes cocos verdes. Tirei um e gentilmente entreguei nas mãos da minha professora querida.

Marrapaiz, como se fosse uma bola de boliche, ela mandou ver, atingindo a cabeça do Filhinho que, assustado, acordou e foi tomar de conta do Marquinho chorão.


Leila, hoje morando na Bahia (arquivo pessoal)

Alô, alô, Mãe - Ei, dona minha mãe! Deves estar bem por onde estás. Espero assim. Há oito anos, pensava eu, estavas fazendo de conta que não queria mais viver. E era verdade! Belém, a cidade que tanto amavas, estava se preparando para as comemorações do Círio de Nazaré. Eu falava contigo e te fingias de surda.

Em 2012, no dia das mães (e das madrastas), escrevi pra ti. Primeiro passei um perrengue danado pra juntar teus filhos e fazer com que cada um pudesse fazer um bilhetinho pra te mandar. Égua! Que sufoco!

Ainda assim o rola-papo rolou.

Decidi antecipar-me e dar notícias agora, sem nada pedir a nenhum deles. Tu sabes que cada filho é diferente do outro. Como são diferentes os dedos da mão. Cada um, em particular, te dirá da saudade a seu modo, sem qualquer tipo de pressão.

Hoje, particularmente, não é nada em homenagem a nada. É dor de perda, apenas. Partiste há oito anos. Se te escrevo agora é só para ganhar tempo, não mais confiar nos Correios e não querer desperdiçar lágrimas. Não mereces que chore por ti se o meu riso é o que sempre te importou e ainda importa. Gostavas das minhas histriônicas gargalhadas. Não negues! Não te finjas de surda!

Anota aí sobre teus filhos, do ponto de vista do meu pequeno modo de ver:

Latif está na sua santa fé. Distribuindo hóstias e ajudas espirituais e materiais a quem precisa. Latif é motivo do teu orgulho cristão. Não é qualquer uma que tem filha ministra. E a tua o é. Da Eucaristia! Se fosse de Estado, vixe! Sei que luta para estar de pé e com saúde.

Léa, a ‘segundona’, já nem se lembra das mesuras do Pe. Quevedo. Só dança e viaja. Só viaja e dança!

Lígia é fruta rara. Viaja, viaja, viaja e viaja. Vez por outra, quando lhe sobre um tempinho, vem me ver. Arrisco dizer que, se emagrecer, vai melhorar muito. Ela e seu Joãozinho se cuidam um do outro.

Manoel, o teu ‘Manezinho’, é irmão ingrato. Nunca veio dizer um oi pra sua irmã idosa e capengante. Culpa da Ritinha!

Por fim, Azize, teu filho ‘mais pequeno’, o Chico, cuida da missão do Santo Daime. Já esteve aqui e me trouxe lembranças comestíveis do Acre, inclusive pupunhas. Disse que voltará. Assim espero.

Uma novidade que tenho pra te contar. Criaram um tal Faceboock e arrumei um montão de outros irmãos. Lembras dos Sepetibas? O Alberto Moreno, filho do outro Alberto e da Holda, virou mano. Lembras do João de Almeida, da Rua da Palha e vizinho da tua costureira Corina? O filho dele também virou mano. A Célia Pedrina continua mana. A Vássia, da Jalva e do Elson, é alma-irmã. A Rose do Mozarino e da Lurdes é mana. A Núbia do Zé Nogueira, a Valdiva do Zé Fontenele e suas meninas Kátia Castro e Regyna Santos são manas de fé e irmãs camaradas.

Mulher de Deus, pode até faltar pão na padaria. Irmãos não me faltam!

Pra terminar, preciso lembrar que a música do Mau, mau, cantada pelo Moacyr Franco, de quem e que tanto gostavas, não é tão verdadeira quanto achavas que era. O mundo não é mau, Zizinha. Maus, verdadeiramente maus, somos os que não sabemos apreciar as belezas de Deus expostas na vitrine da vida. Maus são os homens que fazem guerras. Maus são os que não respeitam as minorias e as rejeitam. Maus, verdadeiramente maus, somos os que não sabemos amar de amor bonito e misericordioso os nossos semelhantes.

Te amo, Zizinha! Que a Virgem de Nazaré esteja contigo. Ela é o teu Lírio mimoso, do mais suave perfume.

(Leila Jalul)



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Escritor atormentado

* Elson Martins



Nascido em Xapuri, Genésio perdeu o pai cedo e foi criado pela mãe Marina e o padrasto numa antiga colocação de seringa. Aos 7 anos, foi levado pela mãe para a Fazenda Paraná, da família Alves, para fazer companhia à irmã Natália que havia fugido de casa para viver com Oloci, outro filho de Darli e gerente da propriedade. O cunhado passou a ser seu principal instrutor: aos 10 anos, exigiu dele a perigosa incumbência de montar e amansar um potro bravo, que o jogou no chão e desferiu violento coice na barriga. Ao completar 11 anos, o menino ganhou de presente um revólver e uma caixa de balas. Aos 13, já frequentava as boates de Xapuri na companhia dos irmãos “mineirinho”, matadores de aluguel contratados como peões.
Genésio tornou-se amigo e confidente de Darcy, quem disparou o tiro de espingarda calibre 20 no peito de Chico Mendes na noite de 21 de Dezembro de 1988, e ficou sabendo dos crimes cometidos na fazenda. Também testemunhou encontros de Darli Alves com fazendeiros que tramavam a morte de Chico Mendes. Todas essas histórias são narradas com detalhes no livro. A certa altura da narrativa, dá pra perceber que Genésio estava sendo treinado para também se tornar um matador de aluguel. Ele conhecia pouco o Chico Mendes, sobre quem diz que sempre admirou, mas sabia muito sobre a vida dos assassinos. O que ele não sabia era que nessa história assumiria o papel de principal testemunha, e que sua própria vida seguiria trajetória atormentada.
De fato, no dia seguinte à morte de Chico Mendes, Genésio foi detidoo pelos policiais encarregados de identificar e prender os suspeitos, permanecendo numa cela da delegacia de policia de Xapuri à disposição dos investigadores. Pressionado, sobretudo, pelo tenente H.Neto, da Policia Militar do Acre, e pelo delegado Nilson Oliveira, com a concordância de sua mãe Marina disse tudo que sabia. O depoimento à policia o deixou vulnerável diante da família Alves, embora pouca gente da segurança parecesse atenta ao detalhe.
     Genésio, aos 40, faz “mea culpa” e 
desabafa em livro (foto: Elson Martins)

Em maio de 1989, ao visitar o Acre com uma pauta do Jornal do Brasil para escrever sobre os conflitos na Amazônia, o jornalista e escritor Zuenir Ventura – que acabou ganhando o Prêmio Esso com uma série de reportagens sobre o caso Chico Mendes – encontrou Genésio vagando perigosamente entre a delegacia e o quartel da PM em Xapuri. No livro “Minhas Histórias dos Outros”, que escreveu em 2005, incluiu o capitulo “A Saga de uma Testemunha”, sobre Genésio, na qual admite que cometeu uma transgressão contra a lei básica do jornalismo: a de que “ao reportar os acontecimentos, não se deve interferir neles”.
Como não interferir! Percebendo que o menino corria riscos de morte, Zuenir Ventura, que foi visita-lo na delegacia de Xapuri, após consultar o juiz Adair Longuini decidiu “sequestra-lo” e o trouxe de avião para Rio Branco, deixando-o sob a responsabilidade do então comandante da PM, cel. Roberto Ferreira, no quartel da corporação. Apos alguns dias, o próprio comandante avisou ao jornalista que também ali Genésio vivia ameaçado, por isso o transferiu para o quartel do Exército (4o. BESF). Zuenir acabou levando-o para seu apartamento em Ipanema, no Rio, até conseguir com a ajuda do bispo D. Moacyr Grechi um bom colégio religioso na zona rural de Goiás. A partir daí Genésio passou a viver choques culturais e existenciais, e com a ajuda de seu tutor frequentou novos colégios em Minas e no rio Grande do Sul, sempre aprontando. Acabou se enfiando na bebida, precisando de tratamento em clinicas de recuperação no Recife e em Rondônia.
Quando já entrara na fase adulta, em Porto Alegre, vivendo entre marginais, recebeu de Zuenir uma boa notícia: os produtores do filme “Amazônia em Chamas” haviam concordado em pagar algo em torno de 60 mil reais de direitos pelo uso do personagem no filme. O dinheiro ficou depositado numa conta conjunta na Caixa Econômica e só podia ser retirado com duas assinaturas, a sua e a de Zuenir. Genésio pôde então movimentar o dinheiro, mas o fez de forma descontrolada, posando de rico diante das moçoilas e dos companheiros de farra que conheceu em Marabá, no Pará. Na segunda parte do livro ele conta como foi essa fase de sua vida, intensa, amorosa e fracassada. Após desbaratar os 60 mil reais recebidos da Warner Bros, entregou os pontos e voltou para sua origem acreana.
Em 2004, sem saber por onde ele andava, Zuenir, eu e Júlia Feitoza empreendemos uma busca pela BR-317, no trecho Rio Branco – Brasileia, parando e perguntando a pessoas que o conheciam ao longo do estrada. Fomos encontrá-lo entre um grupo que fazia trabalho de recuperação de uma igreja nas proximidades de Xapuri. Estava gordo e se sentiu envergonhado por encontrar-se embriagado. Mas ficou feliz ao rever o amigo e tutor, a quem informou que estava escrevendo um livro com sua própria história. “Faça isso, Genésio!”- incentivou Zuenir, recomendando que entregasse os originais a mim, para que os remetesse para seu endereço no Rio à medida que fosse concluindo os capítulos. Surpreendentemente, poucos dias depois Júlia Feitoza recebeu o calhamaço de 365 páginas escrito com esferográfica em papel almaço, na frente e no verso.

O livro do Genésio não é um primor de literatura, mas nem precisava ser, porque o que atrai nele é a sua própria história, incomum, e o modo como é narrada, com transparência, verdade e fragilidade que chocam. Mesmo com estudos interrompidos na 6a. série do Ensino Fundamental, Genésio escreve com incrível força, dando pistas confiáveis sobre o imaginário dos povos da floresta amazônica. É, no mínimo, um caso a ser estudado por psicólogos e sociólogos, e ajudado (quem dera!), por ambientalistas de verdade. Afinal, ele continua procurando um lugar ao sol com os riscos de sempre.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Com cupim e com afeto

*Elson Martins

Em Maio passei maus momentos no Hospital Santa Juliana, de Rio Branco, internado numa enfermaria com broncopneumonia. Fiquei pendurado num frasco de soro durante uma semana, durante a qual foram injetados antibióticos e outros remédios numa veia do braço direito. Apesar do atendimento médico correto, ao receber alta saí cambaleando, sem força e sem apetite; e demorei mais de 15 dias para me sentir vivo novamente.
A ressurreição completa só aconteceu com a ajuda de um lambedor de “cupim vivo”, receita acreana contra pneumonia que eu desconhecia. Do cupim, o que sabia até então é que destrói livros, fotografias e filmes de celulose com assustadora eficácia (ler box abaixo). Há três décadas, pelo menos, sofro com seus ataques ao acervo que cultivo desde 1975 sobre os conflitos socioambientais do Acre.
Por um acaso feliz, no local onde trabalho (Secom) tem uma jovem jornalista que se preocupou com minha saúde. E por outro acaso, também feliz, ela tem uma avó que me ofereceu o lambedor milagroso. Elas se tornaram minhas amigas salvadoras.
Márcia, a neta, tem 22 anos; a vó, Maria de Nazaré Moreira Nunes, Bia para os íntimos, tem 64. Em comum, possuem olhos asiáticos, são afáveis e valorizam as tradições provindas da floresta. Domingo passado nos encontramos num almoço patrocinado pela Andrea Zílio, secretária de comunicação, e mantivemos uma conversa sobre cupins. Bia não se fez de rogada para ensinar a preparar o lambedor:
-É simples: basta ferver por meia hora, com água, um bom pedaço da casa do cupim com os insetos dentro, vivos. Em seguida, coar a mistura em pano leve (murim); e no líquido coado, adicionar meio quilo de açúcar voltando a ferver até o ponto de mel grosso. Pronto: toma-se três colheres das pequenas (de chá) ao dia.
Bia descende de família tradicional de Sena Madureira, município onde nasceu e permaneceu até os 18 anos. O pai, Raimundo Moreira Cavalcante, morou em vários seringais dos rios Caetés e Iaco; já a mãe, cujo nome Porcina lembra personagem de novela, admirava as habilidades do marido e repassava aos filhos parte do seu conhecimento. “Meu pai gostava muito do mato, conhecia tudo quanto era planta e raízes; foi seringalista, mateiro e curandeiro” – informa Bia.
Ao se transferir para Rio Branco, Bia fez curso de enfermagem e passou a trabalhar na Fundação Hospitalar do Estado, onde ficou 30 anos como auxiliar de operações cirúrgicas até se aposentar.
Na relação entre Marcia e a avó transparece a existência de algo excepcional na história dessa família: a diferença de quase meio século na idade das duas, por exemplo, não as impediu de olhar na mesma direção com solidariedade e afeto. Bia, aliás, vê a neta como “um presente que Deus me deu” !
Dúvida – Bia não explicou, mas presumo que na segunda fervura do lambedor colocou alguma pitada do cupim vivo! Digo isso porque percebi, de um dia para o outro, no copo de plástico com a porção recebida, a presença de alguns bichinhos se arrastando pelas paredes internas. Claro que fiquei intrigado: como sobreviveram a tanta fervura? Não sei, mas isso me convenceu de que os cupins possuem alguma propriedade resistente e medicamentosa.
Ao vê-los misturados ao mel, num esperneio sobrenatural, apelei para a abstração para não repugná-los. Primeiro, porque o risco maior era a pneumonia. Mas tinha também algum sentimento de vingança: afinal, eles não estavam comendo meu acervo? Pois agora eu…
Brincadeira à parte, o que vale mesmo é valorizar os remédios advindos de uma vivencia secular na floresta. No caso, um produto da tradição acreana que precisa ser explicado pela ciência. Nos dias atuais, 80% da população do mundo utiliza produtos que se originam de plantas medicinais como tratamento e prevenção de doenças. Cerca de 25.000 espécies são usadas por tribos indígenas e comunidades amazônicas. Mas a ciência conhece menos de 1%, ainda, da riqueza que existe na natureza.
Meu pai, como o pai da Bia viveu meio século nas matas do rio Iaco, e também conhecia lambedores e unguentos com os quais socorria os filhos na hora das doenças graves do seringal. Lembro que em noite de lua cheia ele colocava no quintal, ainda cedo, uma bacia de gomos de cana Caiana descascados, e nos acordava à meia-noite para chupá-los. Era remédio contra a Coqueluche. Na cozinha, junto ao pote de água de beber, tinha um copo de osso aproveitado do gogó do Capelão (o maior macaco da Amazônia) pra gente usar sem cerimônia contra a tosse de um modo geral.
Valeu, Bia e Marcia! Estou alardeando a história do lambedor na esperança de que mais pessoas se sintam estimuladas a falar de suas ricas experiências de vida nas entranhas da floresta.

Realeza protegida

Os isópteros (cupins), conforme li num site de produtos inseticidas, se organizam numa sociedade de castas onde cada integrante possui uma função no ataque a propriedade e aos bens, sejam móveis ou imóveis. Eles se multiplicam em colônias a partir de um casal com um rei e uma rainha, cujas únicas funções são acasalar e produzir ovos. A rainha (bem protegida) vive de 25 a 50 anos.
Com uma vida tão longa (para um inseto), podendo botar milhares de ovos ao ano, imaginem quanto essa família real vai crescer tendo cupins-operários para cuidar dela! Após saírem dos ovos, em duas semanas, os bebes-cupins assumem posição nas castas, desenvolvem órgãos sexuais e asas, e a um sinal da natureza deixam a colônia para iniciar novos focos de ataque.

Respeitem nosso gentílico!

*Elson Martins

“Não somos um povo perdido, sem chão, mas uma gente heroica que escolheu sua pátria, assim como seu gentílico. Então, sejamos altaneiros em defesa do nome que designa às pessoas nascidas sob o brilho do sol, da lua e das estrelas que ornamentam o céu do Acre”!
A afirmação lapidar está no artigo da professora e doutora em Língua Portuguesa Luísa Galvão Lessa Karlberg, e foi publicado no jornal A Gazeta de 24 de junho passado. Alguém precisava ter escrito isso, e que bom que foi ela, porque seu currículo e certidão de nascimento (nasceu nas cabeceiras do Igarapé Humaitá, afluente do rio Murú, distante 8 dias de barco da cidade de Tarauacá) bastam. O currículo é mais que suficiente para desbancar os filólogos que posam de sabidos, mas elegem Tiriricas e hipopótamos para nos representar no Congresso Nacional.
No Novo Acordo Ortográfico que os “sabidos” propuseram em 2009 ficou dito e escrito que nós, nascidos no Acre, não somos acreanos, mas acrianos com “i” no lugar do “e”. E desde então um bando de tolos e tolas se apressam em cumprir a nova regra ortográfica ainda em discussão. Vejam o que diz a muruense recém-eleita presidente da Academia Acreana de Letras:
“Um gentílico não se muda por força de Acordo, Decreto, Lei. Um gentílico pertence à população do lugar, é nome sagrado que se guarda como tesouro raro, que dá voz ao adjetivar um povo”.
Do alto de um currículo invejável, Luísa Lessa lembra autores consagrados que ditaram rumos seguros para o trilhar de um idioma. Um deles é Charles Bally, para quem uma palavra torna-se usual em duas oportunidade principais: 1) quando designa algo indissoluvelmente ligado à vida de um grupo linguístico; e 2) quando se dá a qualquer membro do grupo linguístico a impressão de que isso não se diz assim, isso deve ser dito assim, isso sempre foi e será dito assim. E mesmo que tais assertivas contradigam a expectativa de constante evolução da linguagem, elas se constituem em realidade absoluta, sem a qual seria impossível descrever um estado de língua.
Bom, nossa linguista ensina que no caso acreano é fundamental olhar dois lados: o histórico e o linguístico. “O histórico assegura a manutenção de acreano, pela consagração do uso da forma ao longo de 188 anos. Do lado linguístico, deve-se considerar que o próprio Acordo está repleto de concessões ou exceções que permitem dupla grafia, palavras com acento agudo ou circunflexo, palavras com consoantes mudas, entre as muitas quebras de unidade entre o cânone europeu e o brasileiro”.
Como não sou versado em letras, muito menos em acordos ortográficos, desde 2009 venho adotando regrinhas intuitivas e básicas para perceber o que está por trás da mudança imposta ao nosso gentílico. Primeiro, considero que quem aceita escrever acreano com “i” é um desalmado, um desavergonhado que não se importa de abaixar as calças para quem se diverte ao colonizar os fracos.
A doutora Luísa Lessa dá uma enorme lição a esses fracos: fala como cientista do nosso idioma e, ao mesmo tempo, como acreana dos igarapés, dos grotões e dos cipoais, como aqueles que nos anos 1970 e 1980, chamados de sub-letrados, se organizaram para defender o Acre, suas florestas e seu povo transformando o estado numa referencia global de sustentabilidade. De outra maneira, mas com o mesmo efeito do artigo, eles disseram não aos agressores que queriam derrubar e queimar as florestas, a história, a cultura e nossas tradições mais caras.
É a doutora Luísa Galvão Lessa Karlberg quem afirma: “Acreano é o gentílico amazônico do Acre. E nesse sentido, nenhum Acordo é mais imperioso que os costumes, a história, a tradição do lugar”.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Não índios ameaçam reserva Apurinã

*Elson Martins

Aldeias Apurinã de Boca do Acre, no vizinho Estado do Amazonas, mesmo demarcadas pela Funai estão sendo invadidas por fazendeiros e madeireiros da região. Na reserva do Km 45 da BR-317, de 32 mil hectares, onde vivem 19 famílias com 200 pessoas, a derrubada da floresta para vender madeira e abrir pastos para o gado virou rotina, e conta com a cumplicidade crescente de indígenas. A estratégia dos invasores é casar com mulheres indígenas e passar a morar na aldeia introduzindo novos hábitos e preferencias culturais. Na margem esquerda do Rio Acre, no fundo da reserva, os madeireiros avançam ameaçando destruir os “barreiros” de caça. O Estatuto do Índio vem sendo descumprido o tempo todo, mas a Funai não liga!

Quem faz a denúncia é Manuel Apurinã, de 67 anos, uma velha liderança do Km 45 (BR-317) que veio a Rio Branco com a mulher, Raimunda Cruz, a tratamento de saúde, mas também procura por alguma autoridade que possa ajudar a salvar seu povo. O casal tem 11 filhos e 50 netos, e sobrevive a uma longa história de luta contra os não índios. Nos anos 70 sofreu ataques violentos do grileiro João Sorbile, o ”cabeça branca”, que com a ajuda de policiais e jagunços vindos de Manaus queimou seu barraco, fuzilou animais de criação e obrigou a família a fugir pela mata com os filhos pequenos, doentes de sarampo.

Manoel Apurinã e Raimunda Cruz temem pela perda da identidade indígena na Reserva Apurinã – Fotos: Elson Martins

Grilagem e esperteza


A agonia dos apurinã da BR-317 começou em 1972, quando o aventureiro Sorbile chegou a região dizendo ter comprado parte do seringal Aripuanã tradicionalmente ocupado pelos indígenas. Com a ajuda do cartório e da Prefeitura de Boca do Acre, o grileiro esticou 5 mil ha que dizia ter comprado, até 300 mil ha, invadindo terras indígenas do Km 45. Ele formou um latifúndio que retalhou em pequenas parcelas e vendeu a pequenos colonos do leste e do sul do país. Quando estes chegaram, com suas famílias, trataram de ocupar a terra entrando em conflito com os apurinã.

Na época, o lider José Miranda Apurinã explicou como o grileiro Sorbile agia:


“Ele chegou por estas terras com três mudas de roupa, 60 mil cruzeiros (cerca de 6 mil reais hoje) e uma camionete C-10 emprestada ou roubada. Só sei que o dono veio buscar o veículo. Ele chegou prometendo construir 40 casas com assoalho de tabuas, cobertas de zinco, tudo feito carreirinha como na cidade pra nós morar. Daí ele foi agradando o pessoal com um quilinho de açúcar, um pouco de café…acabou construindo a casa dele do lado. Então começou a abrir caminho para dentro da mata e cresceu o bicho lá, querendo ser dono de tudo” (declaração feita ao jornal Varadouro, edição de dezembro de 1981).

Na outra ponta, um dos colonos recém-chegados do Paraná, Plinio Bertoldo, já contrariado com o que viu, declarou: “Eu já vi essa estrada de Boca do Acre a Rio Branco asfaltada (na verdade não tinha asfalto, mas muita lama), em fotografia, na cidade de Cascavel onde eu morava. Nós viemos do Paraná por causa da propaganda que faziam lá e por incentivo do governo. Nós tínhamos 6 alqueires, aqui temos 150. Compramos essa terra do Danilo Nogueira Farias, sócio do João Sorbile (Varadouro)”.

Na medida em que os colonos como Bertoldo iam chegando, os apurinã eram forçados a abandonar o local onde viviam para ceder aos recém-chegados. Quando tentavam resistir, como Manoel e José Miranda, eram reprimidos com violência por “cabeça branca” e seus jagunços. Numa nova manobra, Sorbile desmanchou as 40 casas e ofereceu 10 alqueires para cada um dos indígenas, que não aceitaram a proposta.

A partir daí, Sorbile apostou na briga entre colonos e indígenas jogando uns contra os outros, ao mesmo tempo em que intensificava a violência contra os verdadeiros donos da terra. Foi aí que estes se juntaram e decidiram agir com base no Estatuto do Índio. E como o Estado do Amazonas representava ameaça, eles procuraram e encontraram apoio nos antropólogos, na imprensa, no governo e na sociedade do vizinho Acre que, na época, começava a discutir a União dos Povos da Floresta, eliminando antigas desavenças entre extrativistas brancos e indígenas.

Sorbile, que no fim dos anos 1970 tinha construído uma serraria dentro da reserva do Km 45, teve sua estrutura sequestrada pela Polícia Federal e acabou “capando o gato” de volta para suas origens, naturalmente, com bastante dinheiro em sua conta bancária. No Acre, a galera da resistência montou a peça “A grilagem do cabeça” no Teatro de Arena do Sesc e saiu exibindo o trabalho pelos bairros, parece que até fora do Estado. “Cabeça Branca” foi o apelido que os apurinã colocaram em Sorbile porque ele tinha cabelos e barba brancos, parecendo um albino.

Infelizmente, “o tempo dos direitos” que beneficiou a maioria dos grupos indígenas do Acre não chegou de forma completa aos apurinã. Eles tiveram suas terras demarcadas, receberam apoio para a produção, saúde e educação, mas a autonomia indígena continuou ameaçada, como advertem Manoel e Raimunda. Nem os não índios extrativistas da região de Boca o Acre estão livres das armadilhas montadas por fazendeiros e madeireiros em conluio com o poder local.
E agora?

Num documento que apresentou à C.R.Alto Purus – Funai, cujo recebimento aparece carimbado com data de 30 de abril de 2014, Manuel Apurinã afirma em português claro: “Estamos enfrentando sérios problemas com os brancos vindos de outros lugares e de assentamentos do Incra para se alojar dentro da nossa terra”.

Manuel envia denuncias à Funai desde 2012, mas nenhuma providência aparece. Num documento de 18 de Março daquele ano ele afirma: “Aqui tem uma família (indígena) que já vendeu terra duas vezes, e quem compra cria gado de fazendeiro dentro da reserva. O nome do comprador é Francisco Souza de Amorim”. Num outro documento, de 18 de Junho, cinco signatários indígenas denunciam que “Francisco está trazendo a família dele para dentro da terra indígena” ; e o acusam de estar “arrendando nossa terra para fazendeiros da região”.

Em documento mais recente, Manuel Apurinã esclarece que parceleiros do Incra vendem seu lote no assentamento e se introduzem na aldeia levando maus procedimentos para seu povo. Tem exemplos de drogado e até criminoso na terra indígena.

Boca do Acre possui quatro reservas Apurinã , três das quais ficam próximas à BR-317: a comunidade do Km 124, a do Km 137, e a do Km 45. Na parte do fundo elas fazem limite com o Rio Acre.

Colega de classe


Na época do conflito entre fazendeiros e apurinã acompanhei algumas vezes o representante da Funai no Acre, Porfirio de Carvalho, em visitas à Boca do Acre, e por orientação dele eu me hospedava no hotel Rosa do Acre com o nome de Orlando Villas-Boas, para não levantar suspeitas. Numa dessas vezes, alertado por um fazendeiro vereador (Adão Nunes), o juiz Francisco de Lima Neto mandou me prender por estar fotografando pelas ruas da cidade. Dois policiais me levaram até uma delegacia e arrancaram o filme que registrava cenas para ilustrar matéria que eu encaminharia para o jornal O Estado de S. Paulo, do qual era correspondente. Depois me levaram para uma sala próxima a do juiz, com um policial na porta. Só fui libertado no fim da tarde, após avisar que tinha sido colega de classe do magistrado.

Bom, o juiz tinha sido meu colega de classe no Colégio Acreano, nos anos cinquenta, e me pediu mil desculpas pelo constrangimento. Fez questão que eu o acompanhasse até sua casa e me ofereceu almoço (quase janta), mostrando álbuns da família, após o que providenciou transporte para me levar de volta a Rio Branco. Infelizmente, não pude evitar que o colega aparecesse na matéria sobre o conflito de Boca do Acre como suspeito de ajudar fazendeiros e grileiros a infernizar a vida de indígenas e posseiros.

sábado, 30 de maio de 2015

Piscicultura: os dragões da China

* Elson Martins

A revista Scientific American Brasil publica, em sua edição de Maio, uma reportagem de seis páginas na qual informa que a China, para dar conta de alimentar 1,4 bilhão de habitantes que consomem 50% mais peixe que o conjunto dos dez maiores países consumidores, age como se fosse dona das águas asiáticas do Oceano Pacífico chegando a gerar desavenças diplomáticas com o Japão e as Ilhas Filipinas. E preocupações ecológicas em outras partes do mundo. A matéria é assinada pelo jornalista cientifico Erik Vance, que vive no México e visitou experiências de piscicultura feitas em mar aberto e nos lagos e rios de água doce, bem como nas milhares de fazendas de criação no país de Mao Tse Tung.

Vance informa que a China é o maior produtor mundial de pescado: em 2012 produziu 57 milhões de toneladas das espécies “selvagens” e das criadas nas fazendas de piscicultura, o que representa um terço do total mundial. O país dispõe de 700 mil navios pesqueiros que percorrem as águas ao redor do globo arrastando “enormes gaiolas pelo leito oceânico e redes do porte de campos de futebol”. Em termos de ameaça ao meio ambiente, supera o Japão e os Estados Unidos e se torna o principal responsável por “esvaziar” cardumes mundiais.

Com algum sentimento de culpa, presume-se, alguns cientistas e empresários chineses tentam reinventar a aquicultura do país incentivando as milhares de fazendas de água doce e realizando experiências com algas, mexilhões e frutos do mar (preferidos dos chineses) em enormes “parques industriais” ou “piscinãos”, em mar aberto. Nessas engenhocas observam que algumas espécies aproveitam e se desenvolvem com excrementos ou efluentes de outras, mas dependem do equilíbrio entre elas para que uma não acabe com a outra. Os cientistas tentam fazer o mesmo com as milhares de fazendas de água doce grandes e pequenas, que fornecem 70% dos pescados do país. O jornalista observa, entretanto, que “o que está fora de questão é que a China continua carente de pescado”.
Diversidade: o acreano Walmir Ribeiro cria 120 mil tartarugas, espécie muito valorizada – Foto: Gleilson Miranda

“Qualquer semelhança”…

Coincidentemente, a reportagem sobre a piscicultura chinesa trata de um assunto que se torna recorrente no Acre. Aqui também o Governo do Estado investe na piscicultura sustentável como forma de gerar emprego e renda, e também para colocar na mesa dos acreanos alimento de boa qualidade tratado industrialmente. A diferença é que os números da China são descomunais, e que os consumidores chineses se interessam mais por pescados limpos e saudáveis para consumo que pela proteção ambiental. Eu disse “diferença”? Talvez uma pesquisa feita aqui mostre resultado parecido!

De qualquer modo, os chineses entram na vida acreana cada vez mais intensamente. Tem a história da exploração do bambu (o Acre possui florestas imensas da espécie) que há algum tempo vem aparecendo na mídia; e nesta semana, a noticia de que a China vai construir a ferrovia transoceânica ligando o Atlântico ao Pacífico passando pelo Acre na rota de Cruzeiro do Sul – Pucalpa (Peru) gerou euforia nos meios econômicos, políticos e sociais. O acreano – que segundo o jornalista Silvio Martinello “é pobre, mas enjoado” – já fala em viajar de Cruzeiro do Sul para o Rio de Janeiro em “trem bala”.

Antes de Cristo

Erik Vance esclarece que a aquicultura chinesa remonta a Fan Li, “filósofo, estrategista e conselheiro do poderoso rei Goujian de Yue, do século 5o. antes de Cristo. Após uma carreira militar de sucesso, Fan Li aposentou-se na cidade de Wuxi, à beira do lago, onde escreveu o primeiro manual de aquicultura do mundo. O livreto com 400 caracteres inclui detalhes como a quantidade de carpas necessária para começar, a melhor época para o crescimento e uma recomendação para incluir tartarugas para afastar o “dragão da inundação”.

As práticas antigas, segundo Vance, funcionaram durante milhares de anos com pequenos lagos que operam ao lado de fazendas terrestres “que mantiveram água limpa e peixes saudáveis”. Mas na década de 80 do século passado a indústria se alastrou e lagoas industriais proliferaram. “Essa mudança, juntamente com o crescimento enorme de outras indústrias, provocou poluição pesada” – diz o jornalista cientifico.

Como se vê, o Acre tem mais a ver com a China do que se pensa. Tem tradição, forte ancestralidade indígena, natureza exuberante e, embora pequeno e pouco desenvolvido, vive desde o começo – com a exploração da borracha – com um pé na modernidade. No fim de século 19 e começo do século 20 o Estado, então uma terra conflitada transformada em território federal vivia de braços dados com o capitalismo internacional, primeiro com os ingleses, depois com os norte-americanos. Essa relação histórica foi muito boa para eles…
Resta saber como será a relação de tradição e modernidade com a China, um país comunista que, surpreendentemente, virou capitalista e espalha, com celeridade e força seus dragões pelo mundo.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Olê, olê, olê, olá!

* Elson Martins
Lula: “Quando comecei a vir ao Acre, nos anos 80, eu fazia reunião com 5 pessoas, mas fazia discurso para um milhão” (Foto: Sérgio Vale)

Oficialmente, tratava-se apenas da realização do 3º Encontro de Piscicultores do Acre. No local (BR-364, a 34 km de Rio Branco) foi construído, recentemente, uma central de produção de alevinos, uma fábrica de ração e um frigorifico para o processamento industrial de peixes com investimento de R$ 80 milhões. Mas a enorme tenda montada para o evento sugeria mais coisa: sob ela tinha um palco, também ancho, que caberia até um desfile de modas.
Logo se viu por quê: o ex-presidente Lula era o convidado principal e, de quebra, tinha o presidente da Bolívia, Evo Morales, que veio acompanhado de quatro ministros da área de produção. O cenário se completava com a presença do governador Tião Viana e do senador Jorge Viana, além do governador do Piauí, Wellington Dias, e mais secretários de estado, políticos estaduais, empresários e algumas lideranças populares. Em volta, cerca de metro e meio abaixo, a plateia estimada em três mil pessoas.
O letreiro do evento, colocado ao fundo parecia conspirar: “Uma nova economia, começa vendendo seu peixe”. Bem que poderia ser: uma “nova politica”…
Era o dia (quinta, 7) e a hora (11h) do grande amigo do Acre Luís Inácio Lula da Silva. Quando ele chegou, a plateia se manifestou ruidosa e festivamente, todos cantando “Lula… Lula” acompanhado do “olê, olá”! – como nas campanhas passadas que o levaram a Presidência da Republica. O ambiente estava virando uma festa acreana. Um grupo gritava em coro: “Lula, guerreiro do povo brasileiro”!
No sul e sudeste, onde vive e esgrima com sua força politica bombardeada, Lula tem falado pra pouca gente. Porque virou saco de pancadas da mídia elitista de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, no Acre, ele é um rei amado. Por isso, e inteligentemente, o cerimonial estabeleceu o tempo de 2 minutos para as falas, mas não fixou tempo pra ele e pro Evo Morales.
O Encontro dos Piscicultores acabou se transformando num acontecimento histórico. Primeiro, porque a “furiosa” (banda) da PM tocou os hinos do Brasil e da Bolívia igualmente aplaudidos. Nada de ressentimentos quanto a guerra de 114 anos atrás na fronteira. Evo Morales postou-se com a mão direita no peito e o punho esquerdo levantado, num gesto revolucionário.
Também porque o Lula, em estado de graça, tratou a todos como amigos de infância, até mesmo o presidente boliviano: “A Bolivia – disse – nunca viveu antes o tempo de paz que vive agora com esse índio cocaleiro (Evo é índio Quexua, o grupo indígena mais numeroso, expressivo e original do seu país)”. Dirigindo-se diretamente ao presidente vizinho, com intimidade, reforçou: “Você é motivo de orgulho para a esquerda brasileira”!
Lula prometeu ajuda a Evo Morales para fazer uma fábrica de processamento do peixe igual a do Acre, na Bolívia. Um assessor boliviano informou, depois, que já estão previstos três frigoríficos – um em Cobija, outro na região do Bene e mais um em Cochabamba, – mas menores, com menos investimento.
Evo Morales falou em espanhol e teve a ajuda de um tradutor (nem precisava). Referiu-se ao Lula como “irmão de alma” da luta em favor da união da América Latina.

Recomeço?

Desfilando na passarela, com o microfone na mão, o ex-presidente brincou com as palavras e renovou esperanças. Com o cabelo meio assanhado, vestindo camisa vermelha semiaberta no peito, falava e cumprimentava (com gestos) amigos ao mesmo tempo. “Tem gente que se incomoda quando a gente coloca a filha de uma empregada doméstica para estudar medicina”- disse, referindo-se aos programas educacionais de seu governo e de Dilma Rousseff que permitiram que estudantes pobres entrassem na faculdade: “Nós, do PT, viemos para mudar a história deste país”!
Por algum tempo, naquela manhã, o Acre desligou-se do outro Brasil que fica mais ao sul e sudeste, ignorou os panelaços e as “demonizações” contra o PT, Lula e Dilma Rousseff. O PT do Acre se salva e todos estavam ali para aplaudir seu benfeitor. Pessoas de todas as idades queriam apertar sua mão. Um grupo de jovens, no final, subiu ao palco e fez, literalmente, uma revoada sobre o ex-presidente.
E ele se despediu com uma mensagem de esperança: “Não se constrói um pais sem sonhos. A mãe pobre que coloca o feijão na panela para alimentar os filhos, coloca também o seu amor”.

A marcha dos derrotados tucanos e seus sabujos

“A função de um jornalista é contar o que está acontecendo nos dias atuais, sem brigar com os fatos, gostando ou não deles, mas para entende-los é preciso recuar no tempo e buscar as raízes das crises cíclicas vividas pela nossa jovem República, como esta de agora. É uma das poucas vantagens de se ficar velho nesta profissão. Naqueles dias de 1964, quando tinha acabado de completar 16 anos, vivíamos o auge da Guerra Fria, com o mundo dividido ao meio entre o capitalismo dos Estados Unidos e o comunismo da União Soviética.
A Guerra Fria acabou junto com a União Soviética, as siglas Ipes, Ibad, UCF e MAF sumiram na poeira, a ditadura morreu de velhice e os militares estão nos quartéis, fora da cena política, cumprindo suas missões constitucionais, não há navios da esquadra americana rondando as costas brasileiras, acabamos de sair da sétima eleição presidencial consecutiva após a redemocratização do país, mas tem gente poderosa, principalmente na burguesia paulista, que ainda vive com o espírito de 1932 e 1964.
Só o que não mudou foram os barões da mídia, que continuam exatamente os mesmos, utilizando os mesmos métodos. Essa gente não esquece, não aprende e não perdoa. Se ontem o inimigo a ser abatido era Getúlio Vargas e, mais tarde, foram os seus herdeiros políticos Jango e Brizola, hoje são Lula e Dilma. Em lugar dos gaúchos, os inimigos são os nordestinos que votam no PT. Para combate-los, os udenistas que levaram Vargas ao suicídio, criaram vários partidos e acabou sobrando só o PSDB”.
(Por Ricardo Kotscho, no seu blog Balaio do Kotscho, de 01/03/2015)