sábado, 30 de maio de 2015

Piscicultura: os dragões da China

* Elson Martins

A revista Scientific American Brasil publica, em sua edição de Maio, uma reportagem de seis páginas na qual informa que a China, para dar conta de alimentar 1,4 bilhão de habitantes que consomem 50% mais peixe que o conjunto dos dez maiores países consumidores, age como se fosse dona das águas asiáticas do Oceano Pacífico chegando a gerar desavenças diplomáticas com o Japão e as Ilhas Filipinas. E preocupações ecológicas em outras partes do mundo. A matéria é assinada pelo jornalista cientifico Erik Vance, que vive no México e visitou experiências de piscicultura feitas em mar aberto e nos lagos e rios de água doce, bem como nas milhares de fazendas de criação no país de Mao Tse Tung.

Vance informa que a China é o maior produtor mundial de pescado: em 2012 produziu 57 milhões de toneladas das espécies “selvagens” e das criadas nas fazendas de piscicultura, o que representa um terço do total mundial. O país dispõe de 700 mil navios pesqueiros que percorrem as águas ao redor do globo arrastando “enormes gaiolas pelo leito oceânico e redes do porte de campos de futebol”. Em termos de ameaça ao meio ambiente, supera o Japão e os Estados Unidos e se torna o principal responsável por “esvaziar” cardumes mundiais.

Com algum sentimento de culpa, presume-se, alguns cientistas e empresários chineses tentam reinventar a aquicultura do país incentivando as milhares de fazendas de água doce e realizando experiências com algas, mexilhões e frutos do mar (preferidos dos chineses) em enormes “parques industriais” ou “piscinãos”, em mar aberto. Nessas engenhocas observam que algumas espécies aproveitam e se desenvolvem com excrementos ou efluentes de outras, mas dependem do equilíbrio entre elas para que uma não acabe com a outra. Os cientistas tentam fazer o mesmo com as milhares de fazendas de água doce grandes e pequenas, que fornecem 70% dos pescados do país. O jornalista observa, entretanto, que “o que está fora de questão é que a China continua carente de pescado”.
Diversidade: o acreano Walmir Ribeiro cria 120 mil tartarugas, espécie muito valorizada – Foto: Gleilson Miranda

“Qualquer semelhança”…

Coincidentemente, a reportagem sobre a piscicultura chinesa trata de um assunto que se torna recorrente no Acre. Aqui também o Governo do Estado investe na piscicultura sustentável como forma de gerar emprego e renda, e também para colocar na mesa dos acreanos alimento de boa qualidade tratado industrialmente. A diferença é que os números da China são descomunais, e que os consumidores chineses se interessam mais por pescados limpos e saudáveis para consumo que pela proteção ambiental. Eu disse “diferença”? Talvez uma pesquisa feita aqui mostre resultado parecido!

De qualquer modo, os chineses entram na vida acreana cada vez mais intensamente. Tem a história da exploração do bambu (o Acre possui florestas imensas da espécie) que há algum tempo vem aparecendo na mídia; e nesta semana, a noticia de que a China vai construir a ferrovia transoceânica ligando o Atlântico ao Pacífico passando pelo Acre na rota de Cruzeiro do Sul – Pucalpa (Peru) gerou euforia nos meios econômicos, políticos e sociais. O acreano – que segundo o jornalista Silvio Martinello “é pobre, mas enjoado” – já fala em viajar de Cruzeiro do Sul para o Rio de Janeiro em “trem bala”.

Antes de Cristo

Erik Vance esclarece que a aquicultura chinesa remonta a Fan Li, “filósofo, estrategista e conselheiro do poderoso rei Goujian de Yue, do século 5o. antes de Cristo. Após uma carreira militar de sucesso, Fan Li aposentou-se na cidade de Wuxi, à beira do lago, onde escreveu o primeiro manual de aquicultura do mundo. O livreto com 400 caracteres inclui detalhes como a quantidade de carpas necessária para começar, a melhor época para o crescimento e uma recomendação para incluir tartarugas para afastar o “dragão da inundação”.

As práticas antigas, segundo Vance, funcionaram durante milhares de anos com pequenos lagos que operam ao lado de fazendas terrestres “que mantiveram água limpa e peixes saudáveis”. Mas na década de 80 do século passado a indústria se alastrou e lagoas industriais proliferaram. “Essa mudança, juntamente com o crescimento enorme de outras indústrias, provocou poluição pesada” – diz o jornalista cientifico.

Como se vê, o Acre tem mais a ver com a China do que se pensa. Tem tradição, forte ancestralidade indígena, natureza exuberante e, embora pequeno e pouco desenvolvido, vive desde o começo – com a exploração da borracha – com um pé na modernidade. No fim de século 19 e começo do século 20 o Estado, então uma terra conflitada transformada em território federal vivia de braços dados com o capitalismo internacional, primeiro com os ingleses, depois com os norte-americanos. Essa relação histórica foi muito boa para eles…
Resta saber como será a relação de tradição e modernidade com a China, um país comunista que, surpreendentemente, virou capitalista e espalha, com celeridade e força seus dragões pelo mundo.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Olê, olê, olê, olá!

* Elson Martins
Lula: “Quando comecei a vir ao Acre, nos anos 80, eu fazia reunião com 5 pessoas, mas fazia discurso para um milhão” (Foto: Sérgio Vale)

Oficialmente, tratava-se apenas da realização do 3º Encontro de Piscicultores do Acre. No local (BR-364, a 34 km de Rio Branco) foi construído, recentemente, uma central de produção de alevinos, uma fábrica de ração e um frigorifico para o processamento industrial de peixes com investimento de R$ 80 milhões. Mas a enorme tenda montada para o evento sugeria mais coisa: sob ela tinha um palco, também ancho, que caberia até um desfile de modas.
Logo se viu por quê: o ex-presidente Lula era o convidado principal e, de quebra, tinha o presidente da Bolívia, Evo Morales, que veio acompanhado de quatro ministros da área de produção. O cenário se completava com a presença do governador Tião Viana e do senador Jorge Viana, além do governador do Piauí, Wellington Dias, e mais secretários de estado, políticos estaduais, empresários e algumas lideranças populares. Em volta, cerca de metro e meio abaixo, a plateia estimada em três mil pessoas.
O letreiro do evento, colocado ao fundo parecia conspirar: “Uma nova economia, começa vendendo seu peixe”. Bem que poderia ser: uma “nova politica”…
Era o dia (quinta, 7) e a hora (11h) do grande amigo do Acre Luís Inácio Lula da Silva. Quando ele chegou, a plateia se manifestou ruidosa e festivamente, todos cantando “Lula… Lula” acompanhado do “olê, olá”! – como nas campanhas passadas que o levaram a Presidência da Republica. O ambiente estava virando uma festa acreana. Um grupo gritava em coro: “Lula, guerreiro do povo brasileiro”!
No sul e sudeste, onde vive e esgrima com sua força politica bombardeada, Lula tem falado pra pouca gente. Porque virou saco de pancadas da mídia elitista de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, no Acre, ele é um rei amado. Por isso, e inteligentemente, o cerimonial estabeleceu o tempo de 2 minutos para as falas, mas não fixou tempo pra ele e pro Evo Morales.
O Encontro dos Piscicultores acabou se transformando num acontecimento histórico. Primeiro, porque a “furiosa” (banda) da PM tocou os hinos do Brasil e da Bolívia igualmente aplaudidos. Nada de ressentimentos quanto a guerra de 114 anos atrás na fronteira. Evo Morales postou-se com a mão direita no peito e o punho esquerdo levantado, num gesto revolucionário.
Também porque o Lula, em estado de graça, tratou a todos como amigos de infância, até mesmo o presidente boliviano: “A Bolivia – disse – nunca viveu antes o tempo de paz que vive agora com esse índio cocaleiro (Evo é índio Quexua, o grupo indígena mais numeroso, expressivo e original do seu país)”. Dirigindo-se diretamente ao presidente vizinho, com intimidade, reforçou: “Você é motivo de orgulho para a esquerda brasileira”!
Lula prometeu ajuda a Evo Morales para fazer uma fábrica de processamento do peixe igual a do Acre, na Bolívia. Um assessor boliviano informou, depois, que já estão previstos três frigoríficos – um em Cobija, outro na região do Bene e mais um em Cochabamba, – mas menores, com menos investimento.
Evo Morales falou em espanhol e teve a ajuda de um tradutor (nem precisava). Referiu-se ao Lula como “irmão de alma” da luta em favor da união da América Latina.

Recomeço?

Desfilando na passarela, com o microfone na mão, o ex-presidente brincou com as palavras e renovou esperanças. Com o cabelo meio assanhado, vestindo camisa vermelha semiaberta no peito, falava e cumprimentava (com gestos) amigos ao mesmo tempo. “Tem gente que se incomoda quando a gente coloca a filha de uma empregada doméstica para estudar medicina”- disse, referindo-se aos programas educacionais de seu governo e de Dilma Rousseff que permitiram que estudantes pobres entrassem na faculdade: “Nós, do PT, viemos para mudar a história deste país”!
Por algum tempo, naquela manhã, o Acre desligou-se do outro Brasil que fica mais ao sul e sudeste, ignorou os panelaços e as “demonizações” contra o PT, Lula e Dilma Rousseff. O PT do Acre se salva e todos estavam ali para aplaudir seu benfeitor. Pessoas de todas as idades queriam apertar sua mão. Um grupo de jovens, no final, subiu ao palco e fez, literalmente, uma revoada sobre o ex-presidente.
E ele se despediu com uma mensagem de esperança: “Não se constrói um pais sem sonhos. A mãe pobre que coloca o feijão na panela para alimentar os filhos, coloca também o seu amor”.

A marcha dos derrotados tucanos e seus sabujos

“A função de um jornalista é contar o que está acontecendo nos dias atuais, sem brigar com os fatos, gostando ou não deles, mas para entende-los é preciso recuar no tempo e buscar as raízes das crises cíclicas vividas pela nossa jovem República, como esta de agora. É uma das poucas vantagens de se ficar velho nesta profissão. Naqueles dias de 1964, quando tinha acabado de completar 16 anos, vivíamos o auge da Guerra Fria, com o mundo dividido ao meio entre o capitalismo dos Estados Unidos e o comunismo da União Soviética.
A Guerra Fria acabou junto com a União Soviética, as siglas Ipes, Ibad, UCF e MAF sumiram na poeira, a ditadura morreu de velhice e os militares estão nos quartéis, fora da cena política, cumprindo suas missões constitucionais, não há navios da esquadra americana rondando as costas brasileiras, acabamos de sair da sétima eleição presidencial consecutiva após a redemocratização do país, mas tem gente poderosa, principalmente na burguesia paulista, que ainda vive com o espírito de 1932 e 1964.
Só o que não mudou foram os barões da mídia, que continuam exatamente os mesmos, utilizando os mesmos métodos. Essa gente não esquece, não aprende e não perdoa. Se ontem o inimigo a ser abatido era Getúlio Vargas e, mais tarde, foram os seus herdeiros políticos Jango e Brizola, hoje são Lula e Dilma. Em lugar dos gaúchos, os inimigos são os nordestinos que votam no PT. Para combate-los, os udenistas que levaram Vargas ao suicídio, criaram vários partidos e acabou sobrando só o PSDB”.
(Por Ricardo Kotscho, no seu blog Balaio do Kotscho, de 01/03/2015)

Cresce uma voz na floresta

* Elson Martins

O acreano Alexandre da Silva Maciel em Brasilia, representando a Reserva Extrativista Chico Mendes  (Foto: Acervo do Festival da Juventude Rural)



Quem o viu discursando no Pavilhão do Parque das Cidades, em Brasilia, para mais de uma centena de jovens, com voz firme, do alto de quase 1,90 metro de altura, magro, enroscado numa bandeira e usando óculos fundo de garrafa com mais de 10 graus em cada lente,- poderia pensar que se tratava de algum militante europeu protestando contra o racismo e a violência do capitalismo global no continente. Mas Alexandre da Silva Maciel, 23 anos, nascido no seringal Amapá em Brasileia, morador da colocação Itararé na Reserva Extrativista Chico Mendes estava longe disso.

Na verdade, ele participava do 3º Festival da Juventude Rural (27 a 30 de Abril) e representava os jovens da Resex CM que engloba áreas de sete municípios acreanos somando cerca de 1 milhão de hectares, abrigando mais de 10 mil moradores. O tema de sua intervenção era “Juventude Rural, Participação Social e Organização Sindical”. Conhecido por Xandão, por causa do seu tamanho, Alexandre é um jovem da floresta “feito de boa massa”, como diria um cacique Galibi que conheci no Oiapoque (AP): é inteligente, educado, tem amor à sua terra e ao seu povo, além de pertencer a uma família de bravos. O avô, Gerônimo Maciel, era delegado sindical e participou de “empates” contra o desmatamento (nos anos 1970/980) na companhia de Chico Mendes. O pai, Anacleto Maciel Moreira de Souza, é militante rural desde os 10 anos de idade e se tornou poeta revolucionário.

Xandão sabe de cor os poemas do pai e faz questão de recitá-los. Um deles é “Natureza Humana”:
“A vida humana é importante
Respira o ar puro
Embora esteja no escuro
Embrenhada nos matagais
Junto com os animais
Que percorrem a natureza

Falo com toda certeza
Que nós somos iguais
Porque temos a vida humana,
Os animais e os vegetais”

Como o pai, foi seringueiro, mas num tempo que o Acre já passava por transformações diversificando as atividades econômicas. A colocação em que vive possui oito “estradas de seringa” somando cerca de 800 hectares da floresta acreana, uma riqueza que Xandão percebe como poucos de sua idade. Solteiro, morando com os pais – Anacleto e Francisca Dias da Silva – ele desenvolve muitas tarefas diárias. Colhe castanha, planta arroz, feijão, milho, batata, cana de açúcar; cria galinha caipira e mantem oito cabeças de gado leiteiro; vende produtos na cidade e já calculou que a renda é maior que a obtida com a produção de borracha. Mas as oito “estradas” ainda representam um valor de reserva.

Como militante sindical Xandão não deixa por menos. Aos 21 anos já integrava a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia frequentando eventos importantes. Em 2012 participou do 3o. Congresso Nacional do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (antigo Conselho Nacional dos Seringueiros) no Estado do Amapá. Em 2013 foi ao Congresso do Ministério do Desenvolvimento Agrário em Brasilia, e do 41. Congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Agora em 2015 foi ao Festival da Juventude Rural e participou da “Marcha das Margaridas”.

Xandão faz parte também do Coletivo Quilombo como um dos coordenadores do Movimento Extrativista do Coletivo.
"Mais pela dor, que pelo amor" - O jovem trabalhador e militante rural afirma convicto que seu projeto de vida é a Reserva Extrativista. Mas considera que isso é um sonho ainda distante da realidade. Lamenta que os poderes (as Resex são administradas no país pelo ICMBio – Instituto Chico Mendes da Biodiversidade) ainda não tenham definido alternativas adequadas de sobrevivência na floresta. Os jovens, sobretudo, migram cedo para a cidade, e os que permanecem na Reserva se mostram apáticos, desinteressados nas discussões. Tantos os homens como as mulheres só se movem quando se sentem de alguma forma ameaçados.

Xandão concluiu o segundo grau na Resex, mas faz criticas às regras da educação aplicada na floresta. Existem dois programas – Asas da Florestania e Educação para Jovens e Adultos – que dificultam a formação de turmas (de 10 alunos cada) por exigências de idade. Também faltam politicas públicas que ofereçam alternativas concretas de vida. Ele sugere a adoção de pesquisas como a de plantas medicinais. E se manifesta contra os projetos madeireiros, mesmo manejados, porque entende que a floresta não se renova fácil.

Atualmente, Alexandre pensa em organizar um evento para discutir maneiras de manter os jovens na Reserva. Acredita que eles ficariam se lhes fosse oferecido perspectivas de uma vida melhor em curto ou médio prazo. Segundo ele, a maioria dos jovens desconhece o que os poderes planejam para a vida deles. Por isso só participam de reuniões “quando querem ganhar” ou “não deixar levar”. 

Em tempo: na foto principal, em Brasilia, Alexandre aparece no Pavilhão das Cidades envolvido com a Bandeira do Acre. E assume ares de uma figura messiânica, mas disposta a empreender o diálogo entre tradição e modernidade.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Túmulo sem velas

* Elson Martins

Numa colocação do Seringal Cachoeira, cercada de arame, no ramal que leva à comunidade, está a lápide da mãe de Chico Mendes, e tambem do irmão Raimundo (Foto: Lourenço Chacon)
Em Março de 2007 encontrei em Brasília o José Alves Mendes Neto, o Zuza, irmão mais novo de Chico Mendes com o qual puxei uma longa conversa sobre a vida de sua família no seringal. Eu queria saber como era o jovem Chico antes de se tornar o grande líder dos anos 70/80, assassinado em 1988. Mais que irmão, Zuza se tornara seu companheiro de lutas em defesa da floresta e do extrativismo, e tal qual CM, vivia ameaçado de morte.

Zuza não se fez de rogado para falar com emoção da família marcada pela tragédia. Disse que Chico Mendes, aos 16 anos, tornou-se “pai e mãe” de uma escadinha de irmãos menores; a mãe, Iraci Lopes Mendes, lhe pediu isso ao falecer aos 42 anos em circunstâncias dramáticas.

A tragédia acompanhou a família Mendes o tempo todo. O pai, Francisco, aleijado de uma perna, tinha dificuldade para percorrer as “estradas” de seringa no fabrico da borracha. E sua situação piorou quando, ao cortar um cipó fino com terçado afiado, quase decepou o joelho da outra perna sã. Desde então suspendeu o trabalho na seringa permanecendo, apenas, no cultivo de um pequeno roçado com a ajuda de um dos filhos.

Raimundo, mais novo que Chico Mendes, aos 14 anos era o xodó da mãe e ajudante do pai na agricultura de subsistência. Mas queria mesmo era ser seringueiro. Insistiu tanto, que o pai pediu ao Chico que abrisse para ele uma “estrada” – caminho precário aberto na mata para ligar cerca de 150 árvores, das quais o seringueiro extrai o látex.

Na véspera da estreia da nova atividade, entretanto, o pai deu outra tarefa a Raimundo: era preciso matar um porco para tirar a banha usada como óleo de cozinha, depois levar comida para o grupo de seringueiros que, juntamente com Chico Mendes, se encontrava acampado na mata fazendo a limpeza de outras “estradas”.

Na época, Zuza tinha 7 anos de idade e vivia grudado a Raimundo. Os dois combinaram sair para o primeiro “corte” de madrugada, escondido do pai, a tempo de retornar no meio da manhã, antes da matança do porco. Assim, deixaram o barraco de mansinho, embrenhando-se na mata. Raimundo se vestiu a caráter: bermuda encaronchada, sapatos de seringa, facão na cintura, poronga na cabeça e uma espingarda calibre 12, carregada, atravessada no ombro.

Lá na frente, num descampado conhecido por Taquara, os dois encontraram caído no caminho um tronco imenso. Foi preciso que Raimundo arriasse a espingarda para dar a mão ao pequeno Zuza. Com pouca luz e a emoção de se tornar seringueiro, deixou a arma escorregar sobre o tronco. A arma disparou e atingiu sua cabeça.

“Foi horrível!”- lembra Zuza, que se assustou com o tiro repentino, a fumaça e o corpo de Raimundo caindo sobre si. Quando se refez do susto e procurou sair de baixo do irmão, apalpou sua cabeça e só encontrou miolos e sangue. Correu então aos gritos pela mata, no escuro, mas por sorte cruzou com o grupo de Chico Mendes que se desesperou também. “O que aconteceu? Cadê o Raimundo?” – até que Zuza respondeu: “Raimundo morreu”!

Chico pediu a um dos companheiros que o levasse à casa e voltasse com uma rede para juntar e transportar o cadáver do irmão. Meu Deus! -pensou – dona Iraci não ia suportar tanta dor! Ela que tivera 19 filhos, quatro dos quais mortos ao nascer, estava gravida de três meses do vigésimo. Raimundo era o mais querido. Não ia suportar!

Não suportou. Ao receber o filho morto, ajoelhou-se no terreiro da casa, olhou para o céu e suplicou: “Se existe um espírito, um Deus, peço que me leve com meu filho. Não quero mais viver”. Desde então, passou a morrer um pouco a cada dia. Despedia-se de um e de outro, dava conselhos…Impediu que chamassem a parteira de costume para cuidar dela e não deixou cortar a peça de murim para fazer fraldas pro filho que ia nascer. “Vai estragar a fazenda”! – dizia resoluta.

Chico chorava ao ver a mãe escolhendo a morte. Mas tentaria salva-la. Era tão nova, tão bonita e terna… Ia leva-la para a cidade, numa rede, para atendimento médico. Começou uma peregrinação de colocação em colocação, juntando amigos para carregar a mãe pelo mato (não tinha estrada) até Xapuri. A mãe, entretanto, implorava: “Filho, não se afaste de mim. Preciso lhe dar conselhos antes de partir”. O pai, em pé encostado à parede do quarto, também chorava, aquela e outras dores, mas resignado dizia: “Sua mãe vai morrer mesmo, Chico”.

Chico ainda buscaria socorro numa última colocação, quando a mãe lhe chamou: “Vem cá Chico, me abraça”. Os dois permaneceram abraçados, chorando por longo tempo. Foi quando ela disse: ”Chico, se acalme. Você terá que ser pai e mãe dos irmãos pequenos. Seu pai não pode mais trabalhar. Não deixe que eles passem fome”.

Mesmo transtornado, ele seguiu em prantos em busca de mais carregadores. Quando retornou, dona Iraci tinha morrido. Ele a viu inerte, com sua tez branca, os cabelos loiros e cacheados, sem a voz doce e conselheira que repetia, repetia… Era a imagem da mãe resignada de seringal que, em situação inesperada, emparelha fragilidade e força, ternura e frieza, escuridão e luz.

Assim Chico se fez homem, completamente determinado: aprendeu a ler, pensar e agir. Não somente para criar os irmãos, mas também liderar os “empates”, defender a floresta, criar as reservas extrativistas, garantir a permanência dos seringueiros acreanos em suas colocações, avisar a quem quisesse ouvir que, no Acre, existe uma sociedade diferente, amiga da natureza, desejando o bem do universo.

Túmulo ignorado

Semana passada, no feriado de 21 de Abril, visitei o seringal Cachoeira onde familiares e companheiros de Chico Mendes vivem em paz, usufruindo o legado que o amigo e parente imprescindível deixou. Um deles, o primo Nilson Mendes, que nos acolhia como guia, parou no meio da estrada e apontou:

– Alí depois daquela cerca de arame, nesse descampado, tá vendo um tumulo no meio do mato? É a mãe do Chico! Ela e o filho Raimundo estão enterrados ali!

Meu Deus! Pensei logo na história que o Zuza me contou em Brasília e senti uma profunda tristeza. Os dois, Iraci e Raimundo, merecem uma lápide melhor, com muitas velas acesas, muitas visitas que venerem vidas tão amorosas… Ah! Imagino o poeta Mário de Andrade, ajoelhado, a rezar os versos: “Quero ver si consigo/Não passar na sua vida/numa indiferença enorme”…