terça-feira, 24 de maio de 2011

O Repórter Edilson

Edilson Martins vai mostrar Amazônia menos folclórica em documentário

Aos 72 anos de idade, descontadas as rugas e algumas queixas que a vida impõe aos humanos que chegam a tanto, o jornalista Edilson Martins, acreano que migrou para o Rio de Janeiro há meio século absorvendo o estilo carioca de vida, mantém o ímpeto dos mais jovens  e continua produzindo boas reportagens para jornais e TVs do país. A mais recente é um documentário para televisão que será exibido em cinco capítulos em rede nacional pela TV Brasil.

Nos anos 1950, quando era aluno do Colégio Acreano em Rio Branco, ele deixou sua marca produzindo o jornalzinho estudantil “O Selecionado” na companhia do Odacir Soares (que também virou jornalista e depois senador por Rondônia) e deste que vos escreve, por acaso, jornalista também.  Os três fizeram uma entrevista histórica (em 1958) com um juiz federal maluco que mandava prender quem passasse por perto dele assoviando.

O juiz se chamava Francisco Alves ou coisa parecida, tinha vindo do Rio e chegou ao cúmulo de achacar um advogado e professor durante a realização de um júri, porque ele entrou no fórum vestido com um paletó cor laranja, que contrastava com uma calça de casimira azul. Aos gritos, expulsou-o do recinto chamando-o de caneta Parker. O fato atraiu a revista O Cruzeiro, de circulação nacional, que deu uma esculhambação no magistrado provocando sua transferência de volta à cidade maravilhosa. O que, presumo, era o que ele mais queria.

A redação do jornalzinho “O Selecionado” era improvisada no Palácio Rio Branco, após o expediente, por paternalismo do então governador Coronel Fontenele de Castro que, provavelmente, não o lia. Pois se o lesse, não concordaria com sua irreverência e não permitiria que também fosse impresso na gráfica do governo, ainda que em papel de embrulho doado pelo comércio local. O trio produzia também um programa na Rádio Difusora intitulado Voz das Selvas.

Nos anos 1960, cada um pegou rumo para cursar faculdade. Após 17 anos, eu que tinha pego a trilha Belém-Macapá- Belo Horizonte estava de volta ao Acre como repórter regional de O Estado de São Paulo,  e fui cobrir um conflito indígena no Parque 7 de Setembro,  em Rondônia,  onde os índios Surui estavam sendo ameaçados por agricultores atraídos pelos projetos de colonização do Incra.  Ao pegar um aviãozinho da Funai em Porto Velho, sob a chefia do indigenista Apoena Meirelles, dei de cara com o Edilson Martins, representando o Jornal do Brasil.

Vivemos alguns dias de muita tensão entre os Suruis e aproveitamos para reatar o contato perdido. Na ocasião, Edilson propôs que a gente afinasse o sobrenome para que os leitores pensassem que somos irmãos, o que de algum modo aconteceu e ainda acontece.  Explico: o nome completo dele é Edilson Rodrigues Martins, o meu Elson Martins da Silveira. Com os cortes no sobrenome ficou Edilson Martins e Elson Martins, ambos jornalistas e  acreanos, da mesma idade, contemporâneos no Colégio Acreano e colegas de classe, mas sem nenhum parentesco.

A mudança levou ao partilhamento de elogios e críticas, até algumas inimizades, mas sobretudo, a uma parceria jornalística. Em 1988, quando eu respondia pela direção da TV Aldeia, a televisão educativa do Acre, emprestei equipamento e equipe para que ele viabilizasse o documentário que fez em Xapuri sobre os empates liderados por Chico Mendes. O resultado foi um bom documentário divulgado em rede nacional.

Na fim da tarde em que Chico Mendes  foi morto (22 de dezembro de 1988), eu telefonei para a redação do Jornal do Brasil e, por incrível coincidência, quem estava na redação, fora de hora, era ele, que dias antes  fizera a última grande entrevista com o líder seringueiro e não conseguia convencer os editores do JB a publicá-la. Graças à minha informação o JB deu a notícia da morte no dia seguinte, sozinho, publicando depois a entrevista completa.

Edilson Martins esteve em Rio Branco desde quarta-feira passada, retornando ao Rio nesta segunda-feira, para fechar um novo documentário para televisão: AmazôniAdentro,  que vai ao ar no fim deste mês em rede nacional pela TV Brasil. Na noite de sexta, 21, ele reuniu um grupo de pessoas para mostrar alguns capítulos, que mostra uma Amazônia menos folclórica e mais real, ameaçada como nunca.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Agradáveis imprevistos no Juruá

Nosso barco ancorado em Valparaíso, no rio Juruá

Na quarta-feira, 20 de abril, aproveitei uma das promoções da empresa aérea Gol e viajei com parte da família (Irizete e Yasmim) para passar a Semana Santa em Cruzeiro do Sul. Seguindo orientação do amigo Pedro Negreiro, que já foi prefeito do município, fiz reserva no Nosso Hotel. Ele explicou: “É um hotelzinho pequeno e barato, bem simples, oferece internet, o quarto é limpo, o café da manhã é bom”. Comprovamos tudo isso. Paguei  90 reais de diária pela família.

Ainda bem, pois a outra opção, que alias fica em frente ao Nosso Hotel, na mesma rua, era o Swamy. Como fazia tempo que eu não ia a Cruzeiro (desde 2006), imaginava que o Swamy era só um pouquinho melhor e mais caro. Estava por fora: é um espigão de 10 andares e no térreo tem um baita restaurante, de luxo, que não tem igual em Rio Branco. Não é para o bico de qualquer um.

Fui conhecer o restaurante e pedi uma moqueca de filhote e vinho seco para acompanhamento. Fiquei aliviado ao saber que o vinho pode ser servido em doses, não precisa o cliente comprar a garrafa. Durante a janta, vi um senhor de meia idade, baixo, moreno, com uma mascara higiênica sobre o nariz e a boca, conversando com funcionários do hotel. Era o dono.

Seu Arlindo Queiroz explicou que teve problema com os dentes, por isso a máscara. Não parece rico, mas progrediu financeiramente como dono de uma ótica. Somente há três anos entrou no ramo de hotelaria. Entrou , presumo, para ficar, pois o investimento com empréstimo do Basa é grande. O seu Swamy  opera com diárias que oscilam entre 200 e 300 reais.

Perguntei ao recepcionista do hotelzinho em que eu estava,  se o hotelzão do seu Arlindo lotava.  “Marrapaz!” – respondeu – isso nem no verão. É muito caro!”. Concluo, então, que seu Arlindo age como cruzeirense da gema, com a ousadia de quem não gosta de ”tiquim”. Trocando uma palavrinha com ele, ouvi que aposta nas mudanças que virão com a conclusão da estrada (BR-364) até o final de 2011.

Mas o Swamy não é nada, comparado com outro projeto de hotelaria e turismo em construção na cidade. Não tive tempo de ir ver, mas, quem viu, me informou que é coisa de cinema e que os proprietários são religiosos. O empreendimento se chamaria Vila Betânia. Fiquei curioso.

Que mudanças?

Quando ouço falar em “mudanças”, neste lado da Amazônia, sinto arrepios. Será, indago a mim mesmo, que Cruzeiro do Sul vai virar uma Rio Branco do Juruá? Faz sentido. Aqui no  Vale do Acre, perdemos mais que ganhamos nessa “viração”. Ganhamos carne, supermercados, pontes, uma enxurrada de carros novos, alguns prédios grandes e muita, muitíssima violência. E o que perdemos?

Do ponto de vista da acreanidade, perdemos terras, os melhores empregos, as melhores casas, o horário, alguns pratos típicos, algum tipo de música, enfim, perdemos paz e cultura. E quem duvida perde a vida. Ou seja: Cruzeiro do Sul tem muito a perder, se o progresso que chegar pela estrada e atravessar sua magnífica ponte sobre o rio Juruá, não tiver coração para enxergar suas belezas naturais e humanas.

Sem programa
Com uma vida inteira de repórter no lombo, estou acostumado à improvisação e à imprevisibilidade amazônicas. Por isso, cheguei à Cruzeiro, na quarta, sem um roteiro sobre o que fazer até domingo. Ainda em Rio Branco, pensei em alugar um barco e visitar a localidade do Crôa, que só conheço por fotos e vídeos. Mas pintou outra idéia: o Bertuca, membro de tradicional família cruzeirense, comprara um barco grande e programou uma ida ao seringal Valparaiso, oito horas Juruá acima. Um casal amigo nosso, Alíce/Carlinhos, nos convenceu a embarcar com eles.

Mesa de pôquer divertia a turma no barco do Bertuca

Saímos de Rio Branco com um pé atrás, quanto a isso. Mas, no bonito e funcional aeroporto de Cruzeiro, melhor que o da capital, encontramos o Bertuca convincente como nunca. Ele dava notícias de que na boca do rio ou igarapé Valparaiso, as matrinchãs (peixe saboroso da região) brincavam de pira. Devíamos sair na quinta feira bem cedo, na sua baleeira (lancha), que permite armar 26 redes ao longo dos 30 metros de comprimento (por 4 de largura) da embarcação, cujo motor é um Mercedes  de 114 cavalos de força (HP).

Ainda na noite de quarta, porem, surgiu o primeiro imprevisto: Yasmim, 11 anos, que viajara meio molezinha, passou a sentir febre alta (39 graus) e dor nas pernas. Tomou um comprimido de Dipirona, mas amanheceu com a mesma febre. A essa altura – passava das 8 horas da manhã de quinta - já tínhamos desistido da viagem. Fomos ao novo hospital do município e em curto tempo Yasmim foi atendida. A médica disse que era uma virose, passou medicação e não contraindicou a viagem. Partimos às 10 horas, com três de traso. 

A natureza compensa

Pu, pu, pu...Começamos a subir o rio. Passamos por baixo da majestosa ponte que cruzeirense nenhum desmerece. Na parte da frente do barco, foi montada uma mesa de baralho. A 1 real a ficha, rolaram Pôquer, Pife-pafe e 31. A bordo tinha 22 pessoas, entre crianças e adultos. Todos admiravam a pujança do rio que começava vazar, saindo da alagação que desalojara famílias em Cruzeiro. É incrível a movimentação de barcos e canoas motorizadas pra cima e pra baixo, o transporte definitivo de uma raça forte. Mulheres conduzem suas crianças em pequeníssimas canoas,  a remo, com o rio lambendo o beiço da embarcação. E parecem tão serenas!

Pu,pu,pu...8 horas, o dia acabou e a situação ficou, literalmente, preta. O gerador não funcionava, a navegação seguia sob a luz parca das estrelas, e não mais que de repente, o motorzão de 114 HP pifou. Ai, os embarcadiços começaram a dar palpites. Lima e Rui, irmãos do Bertuca, o filho Tiago, que é médico, os operadores de máquina e leme que, entretanto, não conheciam aquele trecho, todos  divergiam sobre em qual barranco encostar para consertar a máquina. Estávamos a um estirão da boca do Valparaiso, mas nem a Alice, que nasceu na região, sabia identificar o local.

Bom, os anjos ajudaram e a gente chegou lá, para satisfação das carapanãs. Felizmente, com a experiência de quem viveu no Amapá, indicamos a todos o óleo de andiroba como repelente. Funcionou contra os carapanãs, e melhor ainda contra os piuns que nos atacaram no dia seguinte.

Ah, o dia seguinte! Os ribeirinhos que passavam davam conta de que não existia peixe nenhum em Valparaiso. Sendo assim, ia faltar comida. Foi então que dona Marisa, outra irmã do Bertuca por parte de pai, deu seu jeito na cozinha realizando o milagre dos pães com algumas piabas. Dois enormes isopôres com gelo, sem finalidade, foram doados ao pescador da região, seu Marmoud, que conseguiu as piabas.

A essa altura, com os piuns sob controle, quem precisou tomar banho ou ir ao banheiro recorreu à escola municipal de Valparaiso, Alfredo Said, que se encontrava  vazia no feriado. E aos poucos, a criançada abriu caminho para o banho na água fria do igarapé.

Final feliz
Quando todos se preparavam para a descida, o Juruá ofereceu uma cena que comoveu a todos. Vários barcos pequenos começaram a chegar transportando crianças para uma reunião da Pastoral, na escola. Eram mais de 100, e vinham todas com um colete salva-vidas vermelho, parecendo um belo bando de guarás (pássaro). Apinharam o barranco verde com sua alegria e curiosidade.

Finalmente, às12h40, zarpamos de volta, com a certeza de que, na descida, levaríamos menos tempo para chegar a Cruzeiro do Sul. O motorzão ainda ameaçou falhar, duas ou três vezes, mas às 17 horas, passamos de volta sob a ponte. E Bertuca fez a pergunta obvia:

- Valeu o passeio, apesar dos mosquitos e da fome?

Claro que valeu, respondemos em coro. Eu, convencido de que sem esses imprevistos, muito da graça da viagem teria se perdido. Não acredito que o previsível tenha o mesmo encanto do imprevisível, acrescentei cá com os meus botões.

Bertuca riu à larga com essa cumplicidade amazônica.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Outraspalavras




Daniel de Andrade


Em outubro de 2001 a revista Outraspalavras, editada pela Fundação Cultural Elias Mansour do Governo do Acre, me escolheu como entrevistado do mês . A revista que circulou de  outubro de 1999 a dezembro de 2002 com 18 edições e tiragem de 15 mil exemplares tinha como editora Vássia Silveira,  minha filha, que reuniu como entrevistadores Antônio Alves, Aníbal Diniz, Simony D´Avila e Elizângela Pontes, além dela mesma. Na conversa, eu abri o coração. Ao republicar a entrevista, neste momento, o faço consciente de que não mudei minha maneira de pensar e agir. 

Sabemos que você nasceu num seringal do rio Iaco, em Sena Madureira (AC), de uma família seringalista e que teve 11 irmãos.Você era o mais novo?

Depois de mim, só tinha um.Quando nasci, peguei sarampo e fiquei muito doente. Minha mãe dizia que cheguei a morrer: Colocaram vela acesa na minha mão e aí ela me entregou a Nossa Senhora da Conceição, após o que revivi (risos). A Santa é minha madrinha de crisma. Mas cresci franzino e moleirão, enquanto meus irmãos eram todos fortes - desde cedo caçavam, pescavam e trabalhavam na roça. O mais novo, Arialdo, dava de lambuja! Meu pai levava a gente ao roçado e colocava um terçado 128 na mão de cada um. Eu achava o terçadão pesado, mas o irmão, parece que só para me fazer raiva pegava o seu e pá, pá, pá!... Já eu, para cortar alguma coisa tinha que ficar de cócoras (risos). Aquilo me criava uma frustração e tanto. E todos cobravam isso de mim, o que talvez me empurrou para as letras. Devo ter pensado: preciso ser macho de outra maneira! (risos) Minha mãe era uma pessoa sensível e tinha uma relação muito forte comigo, parecia querer compensar o que os outros  irmãos diziam. Ou seja: que eu era moleirão, cabeção, zambeta, um bocado de apelidos que me colocavam. Mas minha mãe me protegia, me orientava para aprender a ler.

Você aprendeu a ler como?

Eu aprendi a ler com ela e com minhas irmãs. Depois estudei no colégio das religiosas em Sena Madrueira e vim para Rio Branco.Entrei no Grupo Escolar 7 de Setembro (que funcionava no Colégio Acreano) sabendo ler e escrever.

Quando você começou a fazer jornalismo?
 
Poderia dizer que foi no Colégio Acreano em 1957. O Edilson Martins (que se tornou escritor e jornalista) e o Odacir Soares (também jornalista mas que se tornou político em Rondônia) montaram o jornalzinho O Selecionado e me ofereci para participar da equipe. Vi o jornal circulando, impresso em papel verde de embrulho...As historinhas, os aniversários, as notinhas sobre os professores, tudo me interessou! Eu procurei os dois dizendo que queria ajudar e eles pediram que eu escrevesse alguma coisa. Escrevi um texto, piegas, sobre o filho do então professor Geraldo Mesquita, o José Henrique, que tinha ido para Fortaleza e estava brilhando nos estudos. O texto foi publicado e fiquei inflado. Mas não tinha segurança para continuar escrevendo, procurava ajudar buscando refrigerante, saindo atrás de papel...Eu queria participar de algum modo.

O que mais você lembra dessa fase?

Nós estávamos sem lugar e sem máquina para redigir, então procuramos o Governador na época – o Coronel Fontenele de Castro - que nos autorizou usar seu gabinete depois do expediente. Ocupamos sua sala no Palácio Rio Branco, vendo de cima o obelisco e nos sentimos donos da praça...Uma outra história foi a de um juiz federal que chegou a Rio Branco, um maluco que mandava prender quem passasse por ele assobiando. Era proibido assobiar na cidade (risos). Ele também se invocava contra certos trajes. Implicou com um professor nosso, de Química, que fazia parte de um jurado e compareceu ao Fórum vestindo um paletó bege com uma calça azul. O juiz mandou que ele se retirasse dizendo que não queria ninguém ali vestido de caneta Parker (risos). Aí decidimos entrevistar o juiz para O Selecionado. De cara, ele disse que não nos receberia se não estivéssemos de paletó e gravata. Conseguimos o traje e fomos entrevistá-lo no Hotel Chuí, onde hoje é a Prefeitura. O sujeito esculhambou com a estudantada! Disse que aqui no Acre não tinha estudante, tinha um bando de vagabundos fumando pela rua (risos). Eu não lembro qual foi o desfecho da entrevista, só sei que depois o juiz virou galhofa. Quando passava em frente ao prédio da Escola Normal Lourenço Filho, hoje CERB, as alunas (eram quase todas mulheres) assobiavam de uma vez: ‘fiu..fiu...fiu...’(risos).  O interessante é que os três – Edílson, Odacir e eu, acabamos nos tornando jornalistas profissionais.

Então, de certa forma, isso foi uma influência?

É, acho que foi. Mas existiram outras. Quando me transferi para Macapá, em 1959, encontrei lá um jornal chamado O Castelo que era do grêmio estudantil do Colégio Amapaense. O grêmio acabara de eleger nova diretoria  e  ninguém entendia de jornal. Quando o pessoal soube da minha experiência no Acre me chamou para ser diretor.. Depois de O Castelo eu fui tomando gosto e veio A Voz Católica, um semanário da Prelazia  onde  passei a me entrosar com um grupo de intelectuais, poetas, começando a fazer crônicas.Em 1963 fui para Belo Horizonte, entrei na escola de Cinema e comecei a escrever sobre cinema. Eu queria ser crítico de Cinema escrevendo para jornal.

Mas apesar do Cinema, você acabou tendo que fazer jornalismo também em Belo Horizonte...

Em Belo Horizonte eu comecei estudando Cinema e Belas Artes. Fazia Cinema à noite, na Universidade Católica, e  Belas Artes pela manhã na Escola Guignard.  Mas, para  sobreviver, produzia notícias em duas emissoras de rádio (Inconfidência e Tiradentes). Na Inconfidência eu redigia notícias para o programa O Domingo é Notícia, em troca de um pequeno cachê. E na rádio Tiradentes escrevia uma parte do programa O Seu Repórter Esso que tinha três versões: às 7 da manhã, ao meio-dia e à noite. Eu fazia a parte de polícia e tinha que ir para a emissora às três horas da  madrugada para telefonar aos plantões de polícia, gravar, tirar do gravador e fazer o texto. Passei um tempão fazendo isso, vivia disso. Foi na Tiradentes que conheci o Tito Guimarães, um estudante de direito que tinha participado da guerrilha de Caparaó. Ele fora preso mas conseguiu fugir e trabalhava como redator achando  que o melhor lugar que tinha para se esconder era ali (risos).  Foi quem me orientou muito sobre leituras, sobre Marx (Karl), ele tinha uma biblioteca fantástica. Bom, aí nós ficávamos sonhando em fazer jornalismo na Amazônia. Eu falava pra ele do Acre e do Amapá, a gente planejava montar um jornal na Amazônia! Foi então que aconteceu, em 1968, aquela grande passeata de protesto pela morte do estudante Edson Luis, assassinado no Rio de Janeiro pelos militares. Houve uma grande mobilização em Belo Horizonte e o Tito carregou no noticiário daquele dia sugerindo ao povo que se armasse e fosse para as ruas protestar contra os militares. Depois disso começamos a planejar a viagem para o norte.

E  vocês vieram mesmo fazer jornal na Amazônia?

Na época eu me sentia um Che Guevara, tinha  27 anos e queria fazer revolução! Nós viemos decididos a participar de uma guerrilha no Pará planejada pelo Marighela (Carlos) . O Capi (João Alberto Capiberibe, ex- governador e ex-senador do Amapá a partir de1995) que tinha contato com o chefe guerrilheiro passou em Belo Horizonte em 1969 e nos arrebanhou. Nós viemos para um “aparelho” em Belém onde já nos aguardavam outros militantes. Meus bens eram um violão que um amigo me deu em BH achando que eu tinha sensibilidade para fazer música, uma japona bonita que comprara em Minas após muitos anos de poupança, e uma valise pequena. Em Belém, naquele clima de apreensão, a gente esperando a hora de ir pra guerrilha, eu anunciei que ia a  Macapá me despedir da namorada e da família, ao que todos reagiram: “O revolucionário tem que esquecer família e namorada!”. E eu: “Ah, não! Eu quero fazer revolução para melhorar esse negócio, não é pra esquecer não!(risos)”. Colocaram a coisa em discussão e disseram: “Se você for, será excluído”. Eu fui e  recebi o recado que tinha sido expropriado do meu violão e da minha japona. Fiquei procurando me arrumar em Macapá e dois meses depois, chegou o Tito Guimarães dizendo que também tinha desertado. Contou que estava em São José do Capim onde devia começar um levante – os pequenos produtores estavam dispostos a pegar em armas – e então pediu cem burros para começar a guerrilha, mas o pessoal da coordenação negou. Ele ficou puto e foi para Macapá. Aí nós fomos morar no colégio dos padres, na gráfica do Colégio Diocesano. Tinha uma salinha lá, perto do jornal, eu fiquei como diretor do jornal e o Tito como diretor da rádio dos padres, a Rádio Educadora. Algum tempo depois mataram o Marighela, em São Paulo. Nós registramos o fato em A Voz Católica numa nota pequena mas na primeira página: ‘Morreu um grande brasileiro. Assassinado’. Naqueles tempos, isso era uma perigosa provocação. A polícia federal começou a nos seguir. Foi quando o Tito, que era um estrategista de ações militares, planejou seqüestrar um avião da Varig para nos levar para Cuba. Conseguimos requisitar um revolver do padre Caetano Maiello e o Tito arranjou um vidrinho de penicilina com um liquido branco. Ele orientou: “Tu vais ficar na parte de atrás do avião apontando o revólver (sem balas) e eu vou ficar com o vidrinho dizendo que é nitroglicerina e que vou explodir o avião”. Ficou tudo certinho, tiramos as passagens...Mas, ao me despedir da namorada, ela chamou atenção para algo que eu não tinha imaginado: “Tu vais para Cuba, e a tua família? O Tito não tem família aqui, mas a tua família toda vai apanhar muito, tua mãe, teu pai, teus irmãos, a polícia federal vai bater neles. !”.  Eu voltei ao Colégio Diocesano decidido: “Olha, eu não vou não. A minha namorada tem razão...”. Aí o Tito insistiu: “Rapaz, lá em Cuba tu vais arranjar 300 namoradas”. O problema era a família, argumentei, então o Tito também desistiu do seqüestro e foi para Belém sozinho. Ele ficou na Casa do Estudante do Amapá e lá a Polícia Federal o prendeu, no dia seguinte. Prenderam o Tito e mandaram  me prender em Macapá. O recado que veio de Belém é que eu era um elemento muito perigoso, que tinha participado da Guerrilha de Caparaó... Recomendaram aos agentes que fossem preparados porque eu poderia reagir (risos). Eles pediram a ajuda de um jornalista para me prender. Eu peguei minha rede e fui. No dia seguinte me embarcaram para Belém. Passei uma semana sendo interrogado, sob ameaças, mas não me bateram. O Tito passou sete anos num presídio no Rio Grande do Sul... Eu fui solto  por influência de amigos do Amapá e de um diretor da Sudam (Superintendência da Amazônia) que era meu amigo desde os tempos de BH. Só que, ao voltar para Macapá, eu era um proscrito.

E como foi essa volta, depois da prisão?

Foi muito difícil. Eu fiquei em dificuldade de sobrevivência mesmo. Ninguém me arrumava emprego.

Você já era casado?
Não, não...Casei depois, em marco de 1971. Eu havia conquistado uma nova namorada - que se tornou minha mulher -  através do rádio. Ela ouvia o programa Alguma Coisa antes que Anoiteça, que produzimos na rádio Educadora e ficou fascinada. Queria me conhecer, mandou recado.

Como é que era o recado?

Ela disse que queria ler uns livros, pediu emprestado o Fundamentos de Filosofia, do Politzer  (baseado no qual fazíamos o programa). Como eu falei pra vocês, eu era uma referência revolucionária. Recebi informação de Belém que estavam procurando um lugar para fazer treinamento de guerrilha. E eu conhecia em Macapá um cara que era do PCB que tinha fazenda nas ilhas próximas. O Capi ainda não tinha sido preso,  fomos juntos conferir o local: eu, o Capi, a Janete (esposa do Capi) e convidamos a Jalva. Ela ficou entusiasmada com a aventura. Viajar com guerrilheiros, né? (risos). Quando voltamos de lá já estávamos namorando.

Isso foi em que ano?

 Em 1971.

Depois disso você veio para o Acre?
 
Depois disso vivi a experiência como químico em Belém. No meu último estágio em Belo Horizonte ganhei uma bolsa da Sudam para fazer um curso de tecnólogo em Química Industrial . Fiz o curso e depois da prisão, quando o jornalismo se fechou para mim,  fui convidado para ir trabalhar na Companhia de Leite Pasteurizado do Pará, a Coleipa, do amigo de Belo Horizonte (o João Moreira, diretor de Incentivos Fiscais da Sudam). Lá, passei três anos, mas a atividade me violentava: cheguei a sofrer uma distonia neuro-vegetativa. Isso foi em 1974. Eu tinha  pesadelos me afogando em tanques de leite. Resolvi largar a Coleipa para viver de artesanato. Passei um ano em Belém fazendo entalhe em madeira. Mas o mercado estava saturado... voltei  para Macapá com um casal de filhos e passei a fazer bicos na imprensa local. A situação estava bem crítica  quando o jornalista Lúcio Flávio Pinto, de Belém, me indicou  para  correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”.

Foi quando você veio para o Acre?

Eu vim para o Acre em outubro de 1975 com um casal de filhos: a Vássia e o Tissiano.

Você já sabia como estava o clima aqui?

Eu não tinha idéia de como era o conflito, mas o meu envolvimento foi imediato. Só que minha formação era muito teórica e quando comecei a entrar nos seringais, ouvir os relatos das pessoas atingidas, nas periferias, eu vi que a minha teoria tinha pouca valia. Eu ficava impressionado de ver como eles colocavam com tanta clareza a situação e de que maneira se preparavam para reagir. Eu aprendi muito. Eu tenho consciência de que nesse momento voltou para mim toda a origem de seringal. As pessoas ameaçadas pareciam ser, de alguma forma minha família, meus irmãos.Eu sempre ia fundo na denúncia dos posseiros, dos seringueiros. Ouvia o outro lado, mas relatava a situação com muito realismo, com envolvimento mesmo.

O texto do povo nas páginas do jornal


Você chegou e dois anos depois teve a experiência de montar o Varadouro, num momento muito forte da história do Acre...
Quando eu cheguei, em 75, os conflitos existiam mas os jornais não noticiavam. Só existia o jornal O Rio Branco, da rede dos Diários Associados que publicava a versão dos fazendeiros e dos policiais. E tinha alguma coisa noticiada pela Igreja, através do boletim Nós Irmãos. Mas não havia a divulgação na grande imprensa, acho que essa coisa aconteceu quando eu cheguei aqui, porque o meu dia a dia era cobrir os conflitos. E o bispo D. Moacir Grechi, que editava o Nós Irmãos, percebia isso e estava querendo montar um jornal fora da Igreja...Então começamos aquelas discussões intermináveis...Depois chegaram o Sílvio Martinelo e o Antônio Marmo, dois jornalistas ligados a Igreja que vieram para ajudar a formar a equipe. Resolvemos sair das discussões e tirar o jornal de qualquer jeito. Nós já tínhamos contato com o Abrain Fahrat, com o Luiz  Carvalho, o Alberto Furtado... Pegamos um dinheiro emprestado com o Dom Moacyr.

A Igreja financiou os seis primeiros números...

Sim, Dom Moacyr  emprestou o dinheiro que garantia as seis primeiras edições.

E vocês pagaram o empréstimo?
Não, não, não deu para devolver não. A gente tinha muita dificuldade e olha que ninguém tinha salário no Varadouro – até hoje eu fico argumentando isso com meus repórteres lá no Amapá (risos). A minha experiência de fazer bom jornalismo sem salário... O único salário no Varadouro era do Suede Chaves (hoje advogado), porque ele tinha uma ninhada de menino para criar... O Varadouro era assim uma obra coletiva, resultado de um trabalho conjunto, de muitas pessoas, uma ação política. Era um outro momento no Acre, havia muita solidariedade entre as entidades:  a universidade, a Igreja, a Contag, todas essas entidades e as pessoas chegavam para ajudar sem exigir nada. Era incrível, e isso era um pouco do espírito da imprensa alternativa no país todo, porque vinha da própria resistência ao regime militar que era uma ameaça para todos. As pessoas se solidarizavam para enfrentar a ameaça comum.

Se você fosse sintetizar a experiência do Varadouro em uma frase, um sentimento, qual seria?

Eu acho que é o sentimento de acreanidade. Acho que o Varadouro  foi um jornal que não rebuscou a linguagem, foi um instrumento colocado para ouvir e denunciar o relato de quem estava ameaçado. E as pessoas que faziam o Varadouro se doíam com aquilo e pegavam a denúncia na forma como ela brotava das pessoas. Diziam assim: ‘eu não sou capaz de fazer melhor que isso’. A maneira como eles se expressavam já tinha toda a carga de gravidade, de denúncia, de emoção. E a gente respeitou isso.

Publicaram o texto do povo...

Publicamos  o texto do povo, da maneira rica de expressar de quem está vivendo o drama, a dificuldade.

Por que você acha que a palavra que define esse sentimento é acreanidade?

A palavra acreanidade, eu gostei muito quando ela surgiu, talvez até eu a tenha inventado, mas acho que a ouvi em algum lugar; talvez o Mário Lima (acreano, professor da Unicamp) a tenha escrito num de seus textos acadêmicos... Entendi acreanidade como algo que estava desaparecendo, mas que estava ligado ao passado de sobrevivência de um Estado distante, difícil, com uma economia que não tinha mais valor de exportação. Então como é que esse povo sobreviveu? Sobreviveu porque era simples, solidário, porque tinha valores que representavam alguma forma de satisfação, de alegria e ao mesmo tempo de resistência. Um povo que dividia o que tinha com os vizinhos... Pra vocês terem uma idéia:  Quando saímos do seringal e viemos morar em Rio Branco, na década de 50, a minha família tinha sido seringalista mas vivia de um arrendamento que só durava até o meio do ano. O meu pai conseguiu a pensão de veterano da Revolução Acreana que custava a sair...Se não fosse a solidariedade dos vizinhos, a gente passava fome. A gente jantava pão com manteiga e café. E algumas vezes isso vinha da dona Albertina, uma vizinha casada com o sargento Horácio, da Guarda Territorial. O sargento tinha um suprimento do quartel que ela dividia algumas vezes com a gente. Vimos muito disso nos anos 70 entre as famílias que eram expulsas dos seringais e se amontoavam nos bairros João Eduardo, Cidade Nova, Bahia. As pessoas trocavam xicrinha de café pela janela, colher de açúcar, sal...Essa coisa é um traço cultural do Acre. Então eu acho que acreanidade (talvez eu estivesse já, naquela época, pensando no que hoje está mais claro pra mim) é valorizar um sentimento comum a todos que vivem nesse estado, nessa região. É se abastecer dessa realidade para viver bem nesse presente, deixar de achar que as coisas aqui não têm solução, que tem que ser tudo diferente.

Então você acha que o sentimento que moveu pessoas e organizações na época da resistência, ele não se perdeu?
Não, não se perdeu. Acho que está sufocado. Se você der uma olhada em quem é juiz, quem é advogado, quem é promotor, você vai ver que são caras que a gente combatia nos anos 70. Eles venceram terreno, avançaram bastante, conquistaram o poder. Hoje o Acre é um pouco essa mistura e a gente tem que aprender a conviver com isso.

Você acha que a imprensa, o jornalismo hoje, pode abrir canais para a expressão desse sentimento, desses valores da mesma maneira que fez naquela época?
Pode e deve. Eu acho que o jornalismo que quiser crescer no Acre vai ter que fazer isso.

Mas o jornalismo que cresce hoje, no Acre, é àquele colado na grande mídia...

É, mas não acredito que os jornais de hoje estejam despertando mais atenção do que os daquela época. O Varadouro, um jornal precário, mal feito, chegou a impressionar em termo de vendagem pelo seu conteúdo, sua linha editorial, sua identidade: ele mexia com esta cidade. Eu acho que isso não morreu não, o que morreu foram os jornais porque desapareceram aquelas pessoas dispostas a fazer algo parecido com o Varadouro, um jornal simples mas honesto. A linha ainda é aquela, um jornal que retome isso, que fale da acreanidade, que resgate as histórias, que fale ao coração das pessoas. Essas coisas não vão  desaparecer porque continuamos no meio da floresta, continuamos vendo os pássaros, sentindo a presença dos rios...

Você falou, em uma entrevista ao Pedro Vicente para a tese de doutorado dele que acabou sendo publicada, que não acreditava que pudesse ser feito, atualmente, um jornal com tanto engajamento e apoio dos movimentos sociais. Por que esse desencanto?
Eu estava pensando no que estou vendo hoje (2001). Eu nunca parei de fazer jornal na Amazônia, mas tenho encontrado dificuldade, hoje, com repórteres que antes de serem bons jornalistas querem ganhar salários de profissionais e  não querem trabalhar correndo risco. Não querem suar a camisa fazendo jornal. Acho que é um outro momento mesmo, acho que as pessoas estão mais preocupadas em garantir um salário para sobreviver. O desencanto não é só meu,  é um desencanto das pessoas de um modo geral. Existe também nas entidades muita disputa. Parece que diminuiu mesmo o interesse pela causa coletiva, o objetivo de salvar o Acre. As pessoas parecem mais preocupadas em se salvar do que em salvar o Acre.

Você não acha que vocês, que criaram o Varadouro, contribuíram para essa situação política ao apoiarem governos do PMDB durante a década de 80?
Sim, nós erramos ao apostar no PMDB, mas na época ainda não tinha opção melhor.  Saímos de um regime de exceção com alguns elementos que eram ícones da oposição, que pareciam pessoas de vanguarda mas que não o foram realmente. A gente acreditava no Aluízio Bezerra, no Nabor Júnior, no Geraldo Flemig, no Mário Maia...porque só vimos como eles eram, realmente, depois que chegaram ao poder. O segmento político que chegou ao governo depois do regime militar era a cara do regime militar, possuía os mesmos vícios. Apenas tinha assumindo um papel teórico de oposição que se beneficiava de ser oposição a um regime decadente...Mas o PMDB não teve competência para avançar. Hoje a gente vê claramente que o que houve de revolucionário nos anos 70 e 80, foi a organização dos seringueiros e  segmentos da imprensa como o Varadouro. Foi esse movimento que levou o PMDB ao poder. Mas o PMDB traiu isso, não estava sintonizado com a luta dos povos da floresta. Pelo contrário, assim que chegou ao poder procurou cooptar as lideranças para esvaziar o movimento.

Você disse no começo que sentia dificuldade de se adaptar à vida do seringal.  Em algum momento você sentiu também vergonha dessa origem do seringal?
Muita. Eu até fazia a imagem, antes, de que carregava o seringal nas costas e o peso era tão grande que diante de muitas coisas, ou de quase tudo, eu me sentia rés ao chão. Em Minas eu era um estranho. Passei oito anos vivendo no meio universitário mas me sentia  acuado o tempo todo. Era pesado ser da Amazônia, ser do Acre, ter nascido no seringal...Certamente o problema não era colocado por eles lá,  eu carregava um peso criado aqui dentro da Amazônia. E isso, até os anos 60, foi muito forte... Isso veio da colonização européia, quando os estrangeiros reduziram a cultura original da Amazônia a nada!

Como foi lidar com isso numa cidade como Belo Horizonte?

Isso me assustava. Houve momentos em que pensei que estivesse doente mesmo. Nos últimos anos eu sentia dificuldades ao fazer as coisas, parava de ir a escola, ficava lendo, lendo, não queria colocar a cara lá fora. Foi quando li muito Krisnamurti...Aí comecei a fazer longas caminhadas pela cidade e meu ponto era em frente à livraria Itatiaia. Ali era meu ponto. Eu não tinha dinheiro para comprar livros, então ficava ali, parado, olhando...O que me assustou e me fez pensar em voltar para  a Amazônia foi quando a dona da pensão em que eu morava passou e me viu daquele jeito e me sacudiu: “menino, o quê que você tem?! Quer que eu leve você para o hospital?”. Eu pensei: “Porra, devo estar mesmo doente, e a minha doença é essa orfandade, esse mundo que eu não quero”. Aí eu me lembrei de um filme do Cacá Diegues, A Grande Cidade, que mostrava uma família de nordestinos que saía do interior para tentar viver na grande cidade como Rio de Janeiro, São Paulo...E para sobreviver acabava se envolvendo com marginais, morrendo. Tem uma cena em que o Joel Barcelos (ator do filme) aparece baleado, agonizando: ele começa a lembrar do sertão e o cineasta usa imagens em negativo. O personagem montado num cavalo cavalga em negativo para o sertão...Eu achei que aquela imagem tinha tudo a ver comigo: eu tinha que voltar para a Amazônia, aqui era o meu lugar. Então eu voltei e nada mais valia pra mim: terminar curso, fazer revolução de verdade, nada, eu queria voltar para respirar de novo.


Rainer Maria Rilke: leitura para a vida inteira


E hoje?

Hoje eu estou elaborando isso de uma maneira muito positiva. Eu agora, aos 62 anos (2001), estou maduro para tirar proveito disso. Agora quero estabelecer  uma espécie de barreira psicológica, de barreira cultural: “Eu serei superior se me abastecer sempre do que eu sempre vi e senti, da minha Amazônia”. Então eu não preciso fazer nenhum esforço para parecer ser o que eu não quero ser. Eu não tenho que ter mais vergonha do que eu fui, pelo contrário, eu quero é conhecer o que eu fui e valorizar isso.

Como é que você vê o Acre estando lá no Amapá?

A Marina (Silva, ex-senadora pelo PT/Acre) diz que a melhor maneira de enxergar o Acre é com o coração. É como o vejo de qualquer lugar. No Amapá meu trabalho está comprometido com essa história de eu ser acreano e de estar lá fazendo algo que tem muita semelhança com o que acontece aqui. Na verdade, eu não tenho dúvidas de que o Amapá sustentável de hoje é conseqüência do que aconteceu no Acre nas últimas décadas: o despertar da consciência ecológica, a luta dos seringueiros, o surgimento da idéia de ‘povos da floresta’, os índios, os ribeirinhos... E quando penso em voltar para o Acre é porque o estado me inspira, me deixa mais ligado às minhas origens em contato com a floresta,  com o olhar limpo das pessoas da beira de rio, com toda a solidariedade da qual falamos. O filósofo francês Edgar Mourin fala que o socialismo não conseguiu impedir que as pessoas se tornassem menos solidárias na sociedade moderna. Que o socialismo promoveu alguns avanços entre nações a gente reconhece, mas entre indivíduos e grupos houve um agravamento, as pessoas não são mais solidárias. Então ele coloca que o grande desafio hoje é buscar esse espírito de solidariedade, buscar a humanização da técnica e da burocracia. Então tem que humanizar e refazer a solidariedade entre as pessoas, os grupos, as etnias, as nações. Outra coisa importante que ele cita é que nós estamos ainda na idade primitiva das possibilidades do pensamento humano, nós temos muito que explorar para criar a situação de uma sociedade humana e solidária. Acabaram-se as certezas científicas e históricas, nós temos também que trabalhar com o improvável. Então tudo coloca a gente numa situação privilegiada, na Amazônia, para recriar as ações políticas, os pensamentos filosóficos, o jornalismo...

O povo da Amazônia, os intelectuais, os jornalistas, os políticos, a sociedade da Amazônia, hoje, tem condições, tem capacidade de apresentar essa contribuição?
Eu acho que sim e que levamos alguma vantagem nisso. Porque nós, por estarmos tão isolados, nós não temos muitas certezas – nem históricas, nem científicas -, nós ainda sonhamos, ainda acreditamos nos mitos, ainda praticamos a solidariedade, ainda estamos no caminho. Podemos pegar o fio invisível da vida inteligente.

Para você, o que é escrever?

Escrever, para mim, é uma forma de contornar as dificuldades que eu tenho de lidar com o mundo, com as pessoas. Toda a timidez que eu tenho, a insegurança de me relacionar com o que me cerca- e até por essa origem a que me referi, do seringal - de me sentir menor, de não estar no nível dos outros para competir...Então escrever, para mim, é a forma de me comunicar, de me expressar. Da minha trincheira eu me comunico com todas as pessoas, até com quem eu não conheço, então eu sinto que estou  participando. É fundamentalmente isso.

Você ‘formou’ algumas gerações de jornalistas. Qual a sensação de ver o pessoal que você viu chegando cru numa redação, atuando hoje na imprensa?
Isso é surpreendente porque eu não sou na verdade um professor de jornalismo – o que passou por uma escola superior e tem o domínio total da gramática etc.. O que eu consigo fazer bem é despertar nas pessoas aquilo que elas já carregam consigo, quando carregam. Para as pessoas que vão trabalhar comigo eu fico repetindo: -  Olha, seja simples e honesto no texto; escreva como se você fosse o leitor. Não procure  palavras que o leitor comum não conheça.  O texto precisa fluir de forma atraente, com emoção...Procure anotar o detalhe, o gesto, o olhar, o riso, a tristeza das pessoas. É preciso prestar atenção na figura humana e traduzir isso num texto que pareça uma crônica. Se não conseguir isso da primeira vez, reescreva dez, vinte vezes...a técnica é essa. A Vássia vai logo me corrigir, mas tenho consciência de que não tenho esse texto tão bom que sugiro (risos). É sério: eu gostaria de ter um texto seguro, um estilo mais enxuto.O que valoriza o meu texto e o faz agradar às pessoas, presumo, é a simplicidade, a emoção. Eu não me envergonho de ser emocional no que publico. Até me sinto, às vezes, um Paulo Coelho do jornalismo...(risos)

O  jornalista e escritor José Roberto Alencar, em Sorte e Arte, disse que a maioria das reportagens que ele fez contaram, invariavelmente, com grandes golpes de sorte. Você acredita nisso, no jornalismo?
Eu acho que tem isso também, mas essa sorte a gente pode chamar de outra coisa: uma fixação, uma vontade, uma intuição que a gente tem; o gosto, o amor pela coisa. Quando você está antenado você começa a enxergar mais tudo aquilo que pode dar uma boa matéria. Se você está realmente apaixonado pela profissão, se isso está muito dentro de você, se é a sua forma de expressão e de se entender com o mundo, é difícil você não perceber as coisas que são importantes porque está tudo entranhado, o jornalismo está em você...

Você teve ídolos no jornalismo, jornalistas que você admirou?

Tive, vários - alguns até difícil de defender hoje. O David Nasser, por exemplo. Ele foi um dos primeiros e me encantar com seu texto! Teve o Joel Silveira que sempre fazia as dobradinhas com o Indalécio Wanderley em grandes reportagens para a revista O Cruzeiro. Mais recentemente, passei a admirar o Zuenir Ventura, o Rubem Braga -uns cronistas, outros repórteres. Admiro o Ricardo Kotsho como repórter. Aqui na Amazônia tenho o Lúcio Flávio Pinto, de Belém, como meu guru. É jornalista, sociólogo, escritor, poeta, militante, um amazônida por excelência.

O jornalista deve sempre publicar a verdade ou, às vezes, é melhor que não faça isso?

Eu procuro sempre a verdade mas, num esforço de responder à sua pergunta,  aconteceu comigo... Já deixei de publicar uma verdade por achar que ela ia servir de instrumento contra outra verdade maior. Isso aí pode ser uma falha, eu sou esse tipo de jornalista que talvez falhe por ser também um militante.

E quanto a publicar a mentira?

Aí, jamais. Tem um texto do Rainer Maria Rilke: Cartas a um Jovem Poeta, - em que ele fala  a um jovem estreante sobre o ofício de escrever. O jovem  perguntou sobre a importância de continuar tentando ao que Rilke respondeu: ‘Procure se  recolher no maior isolamento possível e experimente uma solidão profunda. E  do fundo dessa solidão,  pergunte a si mesmo: “Eu viveria sem escrever?” Basta ter dúvidas na resposta para não ter mais o direito de faze-lo”.ensina Rilke. Acho que podemos aplicar a imagem para a ética jornalística: se você decide escrever uma mentira, conscientemente, não tem mais o direito de continuar fazendo jornalismo.