sábado, 7 de novembro de 2015

Leila Jalul e sua dor risonha

Ela se mudou do Acre para a Bahia faz seis anos. Partiu no exato momento em que se insurgia como escritora com estilo, boa memória e muitíssima irreverência. Primeiro, produziu o livro de poesias Coisas de Mulher (1995). E somente uma década depois descobriu que os textos curtos, reunidos em Suindara (2007) e Das Cobras, Meu Veneno (2010) - atendiam melhor a veia criativa do seu escrachado humor. Na Bahia, mas com pés, mãos e cabeça no Acre, abriu as comportas nos contos: Minhas Vidas  Alheias (2011), Luzinete (2012) e agora Memórias Andantes.

É fácil perceber que Leila Jalul que escreve (mais compõe) textos tão agitados quanto harmoniosos, carregados de histórias e afetos é mais de uma pessoa: são várias Leilas. De vez em quando, uma delas prega uma peça nos leitores ao encobrir, parcialmente, uma autora triste e desapontada. Aquela que se proclama venenosa. Um veneno, contudo, que salva o amor fecundo e coletivo, incomparavelmente melhor que o amor pessoal e exclusivo.

Tanto faz! Nossa escritora recolhe no cotidiano e carrega no colo, aqui ou lá, as misérias e contradições de uma vida cada vez mais intangível. Entretanto, é fácil localizar nos faces, blogs e sites de hoje, o que podemos identificar como dor risonha e iluminada.

(Elson Martins)
 

Mea Culpa - Pessoas amigas, quem pensar que eu mereço glórias, elogios, essas coisas que todos gostam, tirem o cavalinho da chuva. Sou (?) merecedora de muitos castigos, isso sim.

Para me livrar da fome dos meus parasitas, confesso, quando meninota, cometi muitas safadezas. Para me divertir, cometi abusos.

O terreno da minha casa era do lado do Colégio São José. Vizinha das freirinhas bacanas e boazinhas que, sabedoras dos meus dotes artísticos, sempre me convidavam para fazer teatro. Nunca estudei no colégio e, por razões de foro íntimo, nunca dei muita bola pra padres e freiras. Até uma certa raiva deles eu tinha.

Coisas de gente ruim de gênio.

Gostava de me embrenhar nas capoeiras ao fundo do colégio. As noivinhas de Jesus criavam umas galinhas gordas, caipironas e botadeiras de ovos galados de primeira qualidade.

Meu trabalho era simples. Ficava escutando o cocoricó e, de forma certeira, descobria onde eram os ninhos. Tinha até um mapa onde marcava com uma cruzinha onde estavam os ovos do dia e os que aguardavam a chegada dos pintos. Aqui vale um esclarecimento: sempre deixava o indez.

Acho que fui a pessoa que mais comeu mujangué nesta vida. Até que, um dia, olhando de longe, descobri onde as freiras estendiam suas roupas. Isso aguçou a minha curiosidade, digo, meus instintos mais primitivos. Nada mais de pedir ovos 'emprestados'. Eu precisava, custasse o que custasse, fazer com que algumas peças desaparecessem do varal. Meu objetivo era um só: deixar as freiras sem calcinhas e sem um chapeuzinho que amarravam para esconder a cabeça. Somente isso. A farra pela farra. A maldade pela maldade. A safadeza pela safadeza.

Passada essa fase, bolei outra maneira de desvendar os mistérios das pobres irmãs. Precisava saber o que tinha debaixo daqueles véus negros. Teriam cabelos? Seriam carecas, como diziam as más línguas? Quem era loura? Quem tinha cabelo pixaim?

Um dia, durante uma campana, fui flagrada circulando pelo jardim proibido. A freirinha me conhecia e era uma das minhas melhores amigas.
De forma muito especial ela me chamou em particular e, sem sermões, fez questão de me levar para conhecer o interior do 'claustro'. E me revelou tudo que eu queria saber. As freiras tinham cabelos. Cortados rente, mas tinham. Usavam camisolas de cambraia branca, todas do mesmo modelo e, como todos os mortais, iam ao banheiro e gostavam de bolos e comidas boas.

Aproveitei a oportunidade do afeto e contei a ela que, naquele exato dia, havia levado uma surra de ripão que quase me decepou as pernas finas.

Choramos juntas.

Leila na Primeira Comunhão (arquivo pessoal)

Palmatória ou chicote -
Quando muito pequena, sete anos, mais ou menos isso, estudei com Dona Eutália, mulher do Seu Sabino. Ela morava perto da Rádio Difusora Acreana e fez da sua sala de visitas uma sala de aulas particulares. Seu método era o da palmatória para os mais burrinhos (que nem eu) e do chicote para os seus filhos. Dos meninos não consigo lembrar os nomes. Das meninas, sim. Elas se chamavam Sônia e Norma.

Pois bem, Sônia namorava escondido com o Libério, irmão do Nabor, um espécime de beleza rara. Olhos verdes e cabelos louros. Um charme! 
Um dia, na hora da tabuada, lá se vem a Sônia apavorada depois de um encontro atrás da igreja. Lembro como hoje, era a 'tomada' da multiplicação dos 9. Eu não sabia de nada e errei o quanto era 9 x 7. Na justa hora que Sônia chegou do namorico, Dona Eutália me pediu a palmatória e lhe entreguei o chicote. Quem apanhou? A Sônia, claro!

De outra feita, já aluna do exame de admissão, a professora era a Dona Wolitz França Maia, esposa do Seu Licênio e mãe da Bebezinha, do Cheiroso e do Marquinho. Na aula de geografia, vésperas de prova, Marquinho chorava sem parar e a professora chamava por seu esposo, a quem tratava por Filhinho. Este, um pouquinho cheio da pinga, dormia a sono solto numa rede atada na varanda. E a professora me diz: Leilinha, pega uma pedra, um cabo de vassoura seja lá o que for que é já que acordo o Filhinho.

Olhei para a varanda e vi um cacho de enormes cocos verdes. Tirei um e gentilmente entreguei nas mãos da minha professora querida.

Marrapaiz, como se fosse uma bola de boliche, ela mandou ver, atingindo a cabeça do Filhinho que, assustado, acordou e foi tomar de conta do Marquinho chorão.


Leila, hoje morando na Bahia (arquivo pessoal)

Alô, alô, Mãe - Ei, dona minha mãe! Deves estar bem por onde estás. Espero assim. Há oito anos, pensava eu, estavas fazendo de conta que não queria mais viver. E era verdade! Belém, a cidade que tanto amavas, estava se preparando para as comemorações do Círio de Nazaré. Eu falava contigo e te fingias de surda.

Em 2012, no dia das mães (e das madrastas), escrevi pra ti. Primeiro passei um perrengue danado pra juntar teus filhos e fazer com que cada um pudesse fazer um bilhetinho pra te mandar. Égua! Que sufoco!

Ainda assim o rola-papo rolou.

Decidi antecipar-me e dar notícias agora, sem nada pedir a nenhum deles. Tu sabes que cada filho é diferente do outro. Como são diferentes os dedos da mão. Cada um, em particular, te dirá da saudade a seu modo, sem qualquer tipo de pressão.

Hoje, particularmente, não é nada em homenagem a nada. É dor de perda, apenas. Partiste há oito anos. Se te escrevo agora é só para ganhar tempo, não mais confiar nos Correios e não querer desperdiçar lágrimas. Não mereces que chore por ti se o meu riso é o que sempre te importou e ainda importa. Gostavas das minhas histriônicas gargalhadas. Não negues! Não te finjas de surda!

Anota aí sobre teus filhos, do ponto de vista do meu pequeno modo de ver:

Latif está na sua santa fé. Distribuindo hóstias e ajudas espirituais e materiais a quem precisa. Latif é motivo do teu orgulho cristão. Não é qualquer uma que tem filha ministra. E a tua o é. Da Eucaristia! Se fosse de Estado, vixe! Sei que luta para estar de pé e com saúde.

Léa, a ‘segundona’, já nem se lembra das mesuras do Pe. Quevedo. Só dança e viaja. Só viaja e dança!

Lígia é fruta rara. Viaja, viaja, viaja e viaja. Vez por outra, quando lhe sobre um tempinho, vem me ver. Arrisco dizer que, se emagrecer, vai melhorar muito. Ela e seu Joãozinho se cuidam um do outro.

Manoel, o teu ‘Manezinho’, é irmão ingrato. Nunca veio dizer um oi pra sua irmã idosa e capengante. Culpa da Ritinha!

Por fim, Azize, teu filho ‘mais pequeno’, o Chico, cuida da missão do Santo Daime. Já esteve aqui e me trouxe lembranças comestíveis do Acre, inclusive pupunhas. Disse que voltará. Assim espero.

Uma novidade que tenho pra te contar. Criaram um tal Faceboock e arrumei um montão de outros irmãos. Lembras dos Sepetibas? O Alberto Moreno, filho do outro Alberto e da Holda, virou mano. Lembras do João de Almeida, da Rua da Palha e vizinho da tua costureira Corina? O filho dele também virou mano. A Célia Pedrina continua mana. A Vássia, da Jalva e do Elson, é alma-irmã. A Rose do Mozarino e da Lurdes é mana. A Núbia do Zé Nogueira, a Valdiva do Zé Fontenele e suas meninas Kátia Castro e Regyna Santos são manas de fé e irmãs camaradas.

Mulher de Deus, pode até faltar pão na padaria. Irmãos não me faltam!

Pra terminar, preciso lembrar que a música do Mau, mau, cantada pelo Moacyr Franco, de quem e que tanto gostavas, não é tão verdadeira quanto achavas que era. O mundo não é mau, Zizinha. Maus, verdadeiramente maus, somos os que não sabemos apreciar as belezas de Deus expostas na vitrine da vida. Maus são os homens que fazem guerras. Maus são os que não respeitam as minorias e as rejeitam. Maus, verdadeiramente maus, somos os que não sabemos amar de amor bonito e misericordioso os nossos semelhantes.

Te amo, Zizinha! Que a Virgem de Nazaré esteja contigo. Ela é o teu Lírio mimoso, do mais suave perfume.

(Leila Jalul)