domingo, 3 de julho de 2011

A surra no general

José Maria Rabêlo, aos 82 anos

Em janeiro de 1963 eu aportei em Belo Horizonte me aventurando na vida. Em poucos dias e muita sorte, consegui um bico de redator na Rádio Inconfidência, do Governo de Minas, passando a escrever notas para o programa “O Domingo é Notícia”. Garantia, assim, a mensalidade da pensão no bairro Floresta.

Na emissora, consultando jornais e conhecendo jornalistas, fiquei sabendo da existência do José Maria Rabêlo, editor do jornal Binômio, que dois anos antes (1961) tinha encarado e surrado um general-de-brigada dentro da redação. Ouvi que após a refrega ele sumira, e também que tinha sido morto por militares no interior do Estado. Seu nome ficou na minha memória como primeiro grande herói da imprensa alternativa.

Terça-feira passada, 28 de junho, tive a oportunidade de vê-lo em carne e osso em São Paulo, no lançamento de 12 DVDs sobre a imprensa alternativa, um projeto da Fundação Vladimir Herzog nominado “Resistir é Preciso”. Aos 82 anos, o histórico jornalista me pareceu inteiro e combativo, fazendo jús à fama que tem.

Convidado pela Fundação, eu estava hospedado no Hotel Adress, na zona sul da cidade, juntamente com alguns baluartes da impresa alternativa. Naquela manhã, acabara de tomar café no 16º andar em companhia da viúva de Antônio Callado, Ana Arruda Callado, doutora em comunicação, e da cineasta Tetê  Moraes. Aguardávamos o elevador para descer para o 3º andar, quando a porta se abriu e um senhor alto e elegante, ladeado de sua mulher, saiu sorridente, cumprimentando minhas acompanhantes.

Já no elevador, perguntei a Ana Callado quem era ele: “Você não conhece o Zé Maria Rabêlo?”, – respondeu, indagando.

Voltei incontinente ao salão do café. Muito simpático, carinhoso com a esposa Thereza, que, segundo me disse, foi heróica ao acompanhá-lo no exílio político com sete filhos pequenos, o lendário jornalista não se fez de rogado para me contar sobre seu jornal, o Binômio, e sobre a surra que aplicara no general-de-brigada João Punaro Bley, que o agredira ao contestar uma reportagem que o apontaava  como nazista e antidemocrata.
Elson Martins, José Maria Rabêlo, Thereza Rabêlo e Tetê Moraes

Óleo de Rícino - O Binômio foi fundado em 1952 e logo ficou conhecido como “o jornal que virou Minas de cabeça para baixo”. O nome era uma referência ao plano de Juscelino Kubistchek, então governador, que não passava de um marketing populista. Humor e irreverência, com boa dose de coragem, projetaram o jornal, que logo bateu os concorrentes em vendagem. Mas os poderosos da época o perseguiram e, durante o golpe militar de 1964, fecharam-no.

A reportagem polêmica foi publicada em 1961. Naquele ano, o presidente Jânio Quadros tinha renunciado e os militares se opuseram à posse do vice João Goulart, o Jango, que acabou assumindo, mas em regime parlamentarista. Os militares golpistas ficaram indóceis.

Nomeado para o comando da DI-4 (Divisão de Infantaria), que reunia todas as forças federais em Belo Horizonte um deles, o general João Punaro Bley,  destacava-se como inimigo dos comunistas e da imprensa. Ficara conhecido na crise da renúncia de Jânio Quadros por deter sindicalistas e estudantes, estabelecer censura aos meios de comunicação, cercar a Assembleia Legislativa de Minas e ameaçar de prisão os deputados que defendiam a posse de Jango.

Diante dessa situação, o Binômio pautou a reportagem especial para levantar o perfil reacionário do militar. Descobriu que cometera muitas atrocidades no estado do Espírito Santo, onde, durante a Segunda Guerra Mundial, instituiu um campo de concentração nazista. As atrocidades foram tantas que recebeu o apelido de “Óleo de Rícino”.

A reportagem sobre o general foi escrita pelo repórter político José Nilo Tavares, que, por motivos óbvios, não a assinou. Foi publicada na contracapa do jornal no dia 18 de dezembro de 1961, com o título em caixa alta, pegando oito colunas:  QUEM É, AFINAL, ESSE GENERAL PUNARO BLEY? De quebra, trazia o subtítulo: “Democrata hoje, fascista ontem”.

“Quem escreveu essa merda?” - Rabêlo não interrompia o café para narrar a refrega com o general. Duas ou três vezes levantou da mesa para apanhar mais leite e pão-de-queijo para ele e sua Thereza, fazendo comentários do tipo: “Engraçado! Os paulistas estão comendo mais pão-de-queijo que os mineiros, e os mineiros estão comendo muita pizza, que é mais um hábito de São Paulo!”.

A reportagem foi um furor, ampliando o interesse dos leitores pelo Binômio, que já vendia 25 mil exemplares na época. Três dias depois (21), Rabêlo recebeu telefonema de Punaro querendo ter uma conversa com ele no jornal.  Apareceu por volta das 11 horas, e a  secretária  o anunciou assim: “Tem um senhor fardado, muito nervoso, dizendo que quer falar com você”.

Com ar maroto, Rabêlo conta: “Deixei-o esperando sozinho, algum tempo, o que era uma tática, depois mandei que entrasse na minha sala e tranquei a porta por dentro. Mas o general foi direto: “Eu não vim para conversar” – disse de cara. Tinha uma espécie de bastão metálico numa mão e um exemplar do Binômio na outra. “Quem escreveu essa merda contra mim? - perguntou furioso. “Isso não é merda, é uma reportagem muito bem fundamentada”- respondi. “E eu sou responsável por tudo que sai no jornal.”

Num ímpeto, o general o segurou pelo colarinho e disse: “Então você é um ‘fila’ da puta”. Era um alemaozão enorme, mesmo assim, Rabêlo não se acovardou:

“Eu achei que aquilo foi um desaforo e fui em cima dele. Rolamos pelo chão… E tinha uma outra porta pela qual o pessoal do jornal entrou e me tirou de cima dele. O general ficou com um hematoma no olho esquerdo, um corte no lábio superior e a farda toda rasgada. Foi assim que ele saiu da refrega”.

Enquanto os dois brigavam, a polícia apareceu e autuou os dois por “rixa em ambiente público”. Isso deixou Punaro Bley ainda mais furioso. Duas horas após,  veio a desforra:  200 soldados do Exército e da Aeronáutica, comandados por três coronéis, quebraram tudo na sede do Binômio.

José Maria Rabelo foi avisado por amigos do prédio onde ficava a redação, no centro de Belo Horizonte, e escapou. Refugiou-se em São Paulo e foi acolhido pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas, Evaldo Dantas, que dias depois o acompanhou de volta a BH para retomar a direção do Binômio. O jornou voltou a circular, com a ousadia de sempre, até ser fechado durante a ditadura militar em 1964.

Desta vez, José Maria Rabêlo teve tempo de programar um almoço com os amigos e comemorar seu sumiço que durou 16 anos. Passou pela Bolívia, Chile, Canadá e França. Um irmão dele  conseguiu esconder e preservar  as coleções de 12 anos de existência do Binômio, em outro endereço, longe da redação. As coleções somam mais de 800 números, das edições que circulavam em BH e Juiz de Fora.

De volta ao Brasil desde 1983, Rabêlo foi diretor do alternativo “Pasquim” e também diretor do Banco do Estado do Rio de Janeiro, no governo Brizola. Hoje dá palestras em escolas de comunicação,  onde “a meninada morre de rir” das histórias que conta. Para o legendário editor do Binômio, “tem uma revolução em marcha na Internet, mas é a juventude que está nisso, porque os velhos não sabem mexer em compudador”.

terça-feira, 24 de maio de 2011

O Repórter Edilson

Edilson Martins vai mostrar Amazônia menos folclórica em documentário

Aos 72 anos de idade, descontadas as rugas e algumas queixas que a vida impõe aos humanos que chegam a tanto, o jornalista Edilson Martins, acreano que migrou para o Rio de Janeiro há meio século absorvendo o estilo carioca de vida, mantém o ímpeto dos mais jovens  e continua produzindo boas reportagens para jornais e TVs do país. A mais recente é um documentário para televisão que será exibido em cinco capítulos em rede nacional pela TV Brasil.

Nos anos 1950, quando era aluno do Colégio Acreano em Rio Branco, ele deixou sua marca produzindo o jornalzinho estudantil “O Selecionado” na companhia do Odacir Soares (que também virou jornalista e depois senador por Rondônia) e deste que vos escreve, por acaso, jornalista também.  Os três fizeram uma entrevista histórica (em 1958) com um juiz federal maluco que mandava prender quem passasse por perto dele assoviando.

O juiz se chamava Francisco Alves ou coisa parecida, tinha vindo do Rio e chegou ao cúmulo de achacar um advogado e professor durante a realização de um júri, porque ele entrou no fórum vestido com um paletó cor laranja, que contrastava com uma calça de casimira azul. Aos gritos, expulsou-o do recinto chamando-o de caneta Parker. O fato atraiu a revista O Cruzeiro, de circulação nacional, que deu uma esculhambação no magistrado provocando sua transferência de volta à cidade maravilhosa. O que, presumo, era o que ele mais queria.

A redação do jornalzinho “O Selecionado” era improvisada no Palácio Rio Branco, após o expediente, por paternalismo do então governador Coronel Fontenele de Castro que, provavelmente, não o lia. Pois se o lesse, não concordaria com sua irreverência e não permitiria que também fosse impresso na gráfica do governo, ainda que em papel de embrulho doado pelo comércio local. O trio produzia também um programa na Rádio Difusora intitulado Voz das Selvas.

Nos anos 1960, cada um pegou rumo para cursar faculdade. Após 17 anos, eu que tinha pego a trilha Belém-Macapá- Belo Horizonte estava de volta ao Acre como repórter regional de O Estado de São Paulo,  e fui cobrir um conflito indígena no Parque 7 de Setembro,  em Rondônia,  onde os índios Surui estavam sendo ameaçados por agricultores atraídos pelos projetos de colonização do Incra.  Ao pegar um aviãozinho da Funai em Porto Velho, sob a chefia do indigenista Apoena Meirelles, dei de cara com o Edilson Martins, representando o Jornal do Brasil.

Vivemos alguns dias de muita tensão entre os Suruis e aproveitamos para reatar o contato perdido. Na ocasião, Edilson propôs que a gente afinasse o sobrenome para que os leitores pensassem que somos irmãos, o que de algum modo aconteceu e ainda acontece.  Explico: o nome completo dele é Edilson Rodrigues Martins, o meu Elson Martins da Silveira. Com os cortes no sobrenome ficou Edilson Martins e Elson Martins, ambos jornalistas e  acreanos, da mesma idade, contemporâneos no Colégio Acreano e colegas de classe, mas sem nenhum parentesco.

A mudança levou ao partilhamento de elogios e críticas, até algumas inimizades, mas sobretudo, a uma parceria jornalística. Em 1988, quando eu respondia pela direção da TV Aldeia, a televisão educativa do Acre, emprestei equipamento e equipe para que ele viabilizasse o documentário que fez em Xapuri sobre os empates liderados por Chico Mendes. O resultado foi um bom documentário divulgado em rede nacional.

Na fim da tarde em que Chico Mendes  foi morto (22 de dezembro de 1988), eu telefonei para a redação do Jornal do Brasil e, por incrível coincidência, quem estava na redação, fora de hora, era ele, que dias antes  fizera a última grande entrevista com o líder seringueiro e não conseguia convencer os editores do JB a publicá-la. Graças à minha informação o JB deu a notícia da morte no dia seguinte, sozinho, publicando depois a entrevista completa.

Edilson Martins esteve em Rio Branco desde quarta-feira passada, retornando ao Rio nesta segunda-feira, para fechar um novo documentário para televisão: AmazôniAdentro,  que vai ao ar no fim deste mês em rede nacional pela TV Brasil. Na noite de sexta, 21, ele reuniu um grupo de pessoas para mostrar alguns capítulos, que mostra uma Amazônia menos folclórica e mais real, ameaçada como nunca.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Agradáveis imprevistos no Juruá

Nosso barco ancorado em Valparaíso, no rio Juruá

Na quarta-feira, 20 de abril, aproveitei uma das promoções da empresa aérea Gol e viajei com parte da família (Irizete e Yasmim) para passar a Semana Santa em Cruzeiro do Sul. Seguindo orientação do amigo Pedro Negreiro, que já foi prefeito do município, fiz reserva no Nosso Hotel. Ele explicou: “É um hotelzinho pequeno e barato, bem simples, oferece internet, o quarto é limpo, o café da manhã é bom”. Comprovamos tudo isso. Paguei  90 reais de diária pela família.

Ainda bem, pois a outra opção, que alias fica em frente ao Nosso Hotel, na mesma rua, era o Swamy. Como fazia tempo que eu não ia a Cruzeiro (desde 2006), imaginava que o Swamy era só um pouquinho melhor e mais caro. Estava por fora: é um espigão de 10 andares e no térreo tem um baita restaurante, de luxo, que não tem igual em Rio Branco. Não é para o bico de qualquer um.

Fui conhecer o restaurante e pedi uma moqueca de filhote e vinho seco para acompanhamento. Fiquei aliviado ao saber que o vinho pode ser servido em doses, não precisa o cliente comprar a garrafa. Durante a janta, vi um senhor de meia idade, baixo, moreno, com uma mascara higiênica sobre o nariz e a boca, conversando com funcionários do hotel. Era o dono.

Seu Arlindo Queiroz explicou que teve problema com os dentes, por isso a máscara. Não parece rico, mas progrediu financeiramente como dono de uma ótica. Somente há três anos entrou no ramo de hotelaria. Entrou , presumo, para ficar, pois o investimento com empréstimo do Basa é grande. O seu Swamy  opera com diárias que oscilam entre 200 e 300 reais.

Perguntei ao recepcionista do hotelzinho em que eu estava,  se o hotelzão do seu Arlindo lotava.  “Marrapaz!” – respondeu – isso nem no verão. É muito caro!”. Concluo, então, que seu Arlindo age como cruzeirense da gema, com a ousadia de quem não gosta de ”tiquim”. Trocando uma palavrinha com ele, ouvi que aposta nas mudanças que virão com a conclusão da estrada (BR-364) até o final de 2011.

Mas o Swamy não é nada, comparado com outro projeto de hotelaria e turismo em construção na cidade. Não tive tempo de ir ver, mas, quem viu, me informou que é coisa de cinema e que os proprietários são religiosos. O empreendimento se chamaria Vila Betânia. Fiquei curioso.

Que mudanças?

Quando ouço falar em “mudanças”, neste lado da Amazônia, sinto arrepios. Será, indago a mim mesmo, que Cruzeiro do Sul vai virar uma Rio Branco do Juruá? Faz sentido. Aqui no  Vale do Acre, perdemos mais que ganhamos nessa “viração”. Ganhamos carne, supermercados, pontes, uma enxurrada de carros novos, alguns prédios grandes e muita, muitíssima violência. E o que perdemos?

Do ponto de vista da acreanidade, perdemos terras, os melhores empregos, as melhores casas, o horário, alguns pratos típicos, algum tipo de música, enfim, perdemos paz e cultura. E quem duvida perde a vida. Ou seja: Cruzeiro do Sul tem muito a perder, se o progresso que chegar pela estrada e atravessar sua magnífica ponte sobre o rio Juruá, não tiver coração para enxergar suas belezas naturais e humanas.

Sem programa
Com uma vida inteira de repórter no lombo, estou acostumado à improvisação e à imprevisibilidade amazônicas. Por isso, cheguei à Cruzeiro, na quarta, sem um roteiro sobre o que fazer até domingo. Ainda em Rio Branco, pensei em alugar um barco e visitar a localidade do Crôa, que só conheço por fotos e vídeos. Mas pintou outra idéia: o Bertuca, membro de tradicional família cruzeirense, comprara um barco grande e programou uma ida ao seringal Valparaiso, oito horas Juruá acima. Um casal amigo nosso, Alíce/Carlinhos, nos convenceu a embarcar com eles.

Mesa de pôquer divertia a turma no barco do Bertuca

Saímos de Rio Branco com um pé atrás, quanto a isso. Mas, no bonito e funcional aeroporto de Cruzeiro, melhor que o da capital, encontramos o Bertuca convincente como nunca. Ele dava notícias de que na boca do rio ou igarapé Valparaiso, as matrinchãs (peixe saboroso da região) brincavam de pira. Devíamos sair na quinta feira bem cedo, na sua baleeira (lancha), que permite armar 26 redes ao longo dos 30 metros de comprimento (por 4 de largura) da embarcação, cujo motor é um Mercedes  de 114 cavalos de força (HP).

Ainda na noite de quarta, porem, surgiu o primeiro imprevisto: Yasmim, 11 anos, que viajara meio molezinha, passou a sentir febre alta (39 graus) e dor nas pernas. Tomou um comprimido de Dipirona, mas amanheceu com a mesma febre. A essa altura – passava das 8 horas da manhã de quinta - já tínhamos desistido da viagem. Fomos ao novo hospital do município e em curto tempo Yasmim foi atendida. A médica disse que era uma virose, passou medicação e não contraindicou a viagem. Partimos às 10 horas, com três de traso. 

A natureza compensa

Pu, pu, pu...Começamos a subir o rio. Passamos por baixo da majestosa ponte que cruzeirense nenhum desmerece. Na parte da frente do barco, foi montada uma mesa de baralho. A 1 real a ficha, rolaram Pôquer, Pife-pafe e 31. A bordo tinha 22 pessoas, entre crianças e adultos. Todos admiravam a pujança do rio que começava vazar, saindo da alagação que desalojara famílias em Cruzeiro. É incrível a movimentação de barcos e canoas motorizadas pra cima e pra baixo, o transporte definitivo de uma raça forte. Mulheres conduzem suas crianças em pequeníssimas canoas,  a remo, com o rio lambendo o beiço da embarcação. E parecem tão serenas!

Pu,pu,pu...8 horas, o dia acabou e a situação ficou, literalmente, preta. O gerador não funcionava, a navegação seguia sob a luz parca das estrelas, e não mais que de repente, o motorzão de 114 HP pifou. Ai, os embarcadiços começaram a dar palpites. Lima e Rui, irmãos do Bertuca, o filho Tiago, que é médico, os operadores de máquina e leme que, entretanto, não conheciam aquele trecho, todos  divergiam sobre em qual barranco encostar para consertar a máquina. Estávamos a um estirão da boca do Valparaiso, mas nem a Alice, que nasceu na região, sabia identificar o local.

Bom, os anjos ajudaram e a gente chegou lá, para satisfação das carapanãs. Felizmente, com a experiência de quem viveu no Amapá, indicamos a todos o óleo de andiroba como repelente. Funcionou contra os carapanãs, e melhor ainda contra os piuns que nos atacaram no dia seguinte.

Ah, o dia seguinte! Os ribeirinhos que passavam davam conta de que não existia peixe nenhum em Valparaiso. Sendo assim, ia faltar comida. Foi então que dona Marisa, outra irmã do Bertuca por parte de pai, deu seu jeito na cozinha realizando o milagre dos pães com algumas piabas. Dois enormes isopôres com gelo, sem finalidade, foram doados ao pescador da região, seu Marmoud, que conseguiu as piabas.

A essa altura, com os piuns sob controle, quem precisou tomar banho ou ir ao banheiro recorreu à escola municipal de Valparaiso, Alfredo Said, que se encontrava  vazia no feriado. E aos poucos, a criançada abriu caminho para o banho na água fria do igarapé.

Final feliz
Quando todos se preparavam para a descida, o Juruá ofereceu uma cena que comoveu a todos. Vários barcos pequenos começaram a chegar transportando crianças para uma reunião da Pastoral, na escola. Eram mais de 100, e vinham todas com um colete salva-vidas vermelho, parecendo um belo bando de guarás (pássaro). Apinharam o barranco verde com sua alegria e curiosidade.

Finalmente, às12h40, zarpamos de volta, com a certeza de que, na descida, levaríamos menos tempo para chegar a Cruzeiro do Sul. O motorzão ainda ameaçou falhar, duas ou três vezes, mas às 17 horas, passamos de volta sob a ponte. E Bertuca fez a pergunta obvia:

- Valeu o passeio, apesar dos mosquitos e da fome?

Claro que valeu, respondemos em coro. Eu, convencido de que sem esses imprevistos, muito da graça da viagem teria se perdido. Não acredito que o previsível tenha o mesmo encanto do imprevisível, acrescentei cá com os meus botões.

Bertuca riu à larga com essa cumplicidade amazônica.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Outraspalavras




Daniel de Andrade


Em outubro de 2001 a revista Outraspalavras, editada pela Fundação Cultural Elias Mansour do Governo do Acre, me escolheu como entrevistado do mês . A revista que circulou de  outubro de 1999 a dezembro de 2002 com 18 edições e tiragem de 15 mil exemplares tinha como editora Vássia Silveira,  minha filha, que reuniu como entrevistadores Antônio Alves, Aníbal Diniz, Simony D´Avila e Elizângela Pontes, além dela mesma. Na conversa, eu abri o coração. Ao republicar a entrevista, neste momento, o faço consciente de que não mudei minha maneira de pensar e agir. 

Sabemos que você nasceu num seringal do rio Iaco, em Sena Madureira (AC), de uma família seringalista e que teve 11 irmãos.Você era o mais novo?

Depois de mim, só tinha um.Quando nasci, peguei sarampo e fiquei muito doente. Minha mãe dizia que cheguei a morrer: Colocaram vela acesa na minha mão e aí ela me entregou a Nossa Senhora da Conceição, após o que revivi (risos). A Santa é minha madrinha de crisma. Mas cresci franzino e moleirão, enquanto meus irmãos eram todos fortes - desde cedo caçavam, pescavam e trabalhavam na roça. O mais novo, Arialdo, dava de lambuja! Meu pai levava a gente ao roçado e colocava um terçado 128 na mão de cada um. Eu achava o terçadão pesado, mas o irmão, parece que só para me fazer raiva pegava o seu e pá, pá, pá!... Já eu, para cortar alguma coisa tinha que ficar de cócoras (risos). Aquilo me criava uma frustração e tanto. E todos cobravam isso de mim, o que talvez me empurrou para as letras. Devo ter pensado: preciso ser macho de outra maneira! (risos) Minha mãe era uma pessoa sensível e tinha uma relação muito forte comigo, parecia querer compensar o que os outros  irmãos diziam. Ou seja: que eu era moleirão, cabeção, zambeta, um bocado de apelidos que me colocavam. Mas minha mãe me protegia, me orientava para aprender a ler.

Você aprendeu a ler como?

Eu aprendi a ler com ela e com minhas irmãs. Depois estudei no colégio das religiosas em Sena Madrueira e vim para Rio Branco.Entrei no Grupo Escolar 7 de Setembro (que funcionava no Colégio Acreano) sabendo ler e escrever.

Quando você começou a fazer jornalismo?
 
Poderia dizer que foi no Colégio Acreano em 1957. O Edilson Martins (que se tornou escritor e jornalista) e o Odacir Soares (também jornalista mas que se tornou político em Rondônia) montaram o jornalzinho O Selecionado e me ofereci para participar da equipe. Vi o jornal circulando, impresso em papel verde de embrulho...As historinhas, os aniversários, as notinhas sobre os professores, tudo me interessou! Eu procurei os dois dizendo que queria ajudar e eles pediram que eu escrevesse alguma coisa. Escrevi um texto, piegas, sobre o filho do então professor Geraldo Mesquita, o José Henrique, que tinha ido para Fortaleza e estava brilhando nos estudos. O texto foi publicado e fiquei inflado. Mas não tinha segurança para continuar escrevendo, procurava ajudar buscando refrigerante, saindo atrás de papel...Eu queria participar de algum modo.

O que mais você lembra dessa fase?

Nós estávamos sem lugar e sem máquina para redigir, então procuramos o Governador na época – o Coronel Fontenele de Castro - que nos autorizou usar seu gabinete depois do expediente. Ocupamos sua sala no Palácio Rio Branco, vendo de cima o obelisco e nos sentimos donos da praça...Uma outra história foi a de um juiz federal que chegou a Rio Branco, um maluco que mandava prender quem passasse por ele assobiando. Era proibido assobiar na cidade (risos). Ele também se invocava contra certos trajes. Implicou com um professor nosso, de Química, que fazia parte de um jurado e compareceu ao Fórum vestindo um paletó bege com uma calça azul. O juiz mandou que ele se retirasse dizendo que não queria ninguém ali vestido de caneta Parker (risos). Aí decidimos entrevistar o juiz para O Selecionado. De cara, ele disse que não nos receberia se não estivéssemos de paletó e gravata. Conseguimos o traje e fomos entrevistá-lo no Hotel Chuí, onde hoje é a Prefeitura. O sujeito esculhambou com a estudantada! Disse que aqui no Acre não tinha estudante, tinha um bando de vagabundos fumando pela rua (risos). Eu não lembro qual foi o desfecho da entrevista, só sei que depois o juiz virou galhofa. Quando passava em frente ao prédio da Escola Normal Lourenço Filho, hoje CERB, as alunas (eram quase todas mulheres) assobiavam de uma vez: ‘fiu..fiu...fiu...’(risos).  O interessante é que os três – Edílson, Odacir e eu, acabamos nos tornando jornalistas profissionais.

Então, de certa forma, isso foi uma influência?

É, acho que foi. Mas existiram outras. Quando me transferi para Macapá, em 1959, encontrei lá um jornal chamado O Castelo que era do grêmio estudantil do Colégio Amapaense. O grêmio acabara de eleger nova diretoria  e  ninguém entendia de jornal. Quando o pessoal soube da minha experiência no Acre me chamou para ser diretor.. Depois de O Castelo eu fui tomando gosto e veio A Voz Católica, um semanário da Prelazia  onde  passei a me entrosar com um grupo de intelectuais, poetas, começando a fazer crônicas.Em 1963 fui para Belo Horizonte, entrei na escola de Cinema e comecei a escrever sobre cinema. Eu queria ser crítico de Cinema escrevendo para jornal.

Mas apesar do Cinema, você acabou tendo que fazer jornalismo também em Belo Horizonte...

Em Belo Horizonte eu comecei estudando Cinema e Belas Artes. Fazia Cinema à noite, na Universidade Católica, e  Belas Artes pela manhã na Escola Guignard.  Mas, para  sobreviver, produzia notícias em duas emissoras de rádio (Inconfidência e Tiradentes). Na Inconfidência eu redigia notícias para o programa O Domingo é Notícia, em troca de um pequeno cachê. E na rádio Tiradentes escrevia uma parte do programa O Seu Repórter Esso que tinha três versões: às 7 da manhã, ao meio-dia e à noite. Eu fazia a parte de polícia e tinha que ir para a emissora às três horas da  madrugada para telefonar aos plantões de polícia, gravar, tirar do gravador e fazer o texto. Passei um tempão fazendo isso, vivia disso. Foi na Tiradentes que conheci o Tito Guimarães, um estudante de direito que tinha participado da guerrilha de Caparaó. Ele fora preso mas conseguiu fugir e trabalhava como redator achando  que o melhor lugar que tinha para se esconder era ali (risos).  Foi quem me orientou muito sobre leituras, sobre Marx (Karl), ele tinha uma biblioteca fantástica. Bom, aí nós ficávamos sonhando em fazer jornalismo na Amazônia. Eu falava pra ele do Acre e do Amapá, a gente planejava montar um jornal na Amazônia! Foi então que aconteceu, em 1968, aquela grande passeata de protesto pela morte do estudante Edson Luis, assassinado no Rio de Janeiro pelos militares. Houve uma grande mobilização em Belo Horizonte e o Tito carregou no noticiário daquele dia sugerindo ao povo que se armasse e fosse para as ruas protestar contra os militares. Depois disso começamos a planejar a viagem para o norte.

E  vocês vieram mesmo fazer jornal na Amazônia?

Na época eu me sentia um Che Guevara, tinha  27 anos e queria fazer revolução! Nós viemos decididos a participar de uma guerrilha no Pará planejada pelo Marighela (Carlos) . O Capi (João Alberto Capiberibe, ex- governador e ex-senador do Amapá a partir de1995) que tinha contato com o chefe guerrilheiro passou em Belo Horizonte em 1969 e nos arrebanhou. Nós viemos para um “aparelho” em Belém onde já nos aguardavam outros militantes. Meus bens eram um violão que um amigo me deu em BH achando que eu tinha sensibilidade para fazer música, uma japona bonita que comprara em Minas após muitos anos de poupança, e uma valise pequena. Em Belém, naquele clima de apreensão, a gente esperando a hora de ir pra guerrilha, eu anunciei que ia a  Macapá me despedir da namorada e da família, ao que todos reagiram: “O revolucionário tem que esquecer família e namorada!”. E eu: “Ah, não! Eu quero fazer revolução para melhorar esse negócio, não é pra esquecer não!(risos)”. Colocaram a coisa em discussão e disseram: “Se você for, será excluído”. Eu fui e  recebi o recado que tinha sido expropriado do meu violão e da minha japona. Fiquei procurando me arrumar em Macapá e dois meses depois, chegou o Tito Guimarães dizendo que também tinha desertado. Contou que estava em São José do Capim onde devia começar um levante – os pequenos produtores estavam dispostos a pegar em armas – e então pediu cem burros para começar a guerrilha, mas o pessoal da coordenação negou. Ele ficou puto e foi para Macapá. Aí nós fomos morar no colégio dos padres, na gráfica do Colégio Diocesano. Tinha uma salinha lá, perto do jornal, eu fiquei como diretor do jornal e o Tito como diretor da rádio dos padres, a Rádio Educadora. Algum tempo depois mataram o Marighela, em São Paulo. Nós registramos o fato em A Voz Católica numa nota pequena mas na primeira página: ‘Morreu um grande brasileiro. Assassinado’. Naqueles tempos, isso era uma perigosa provocação. A polícia federal começou a nos seguir. Foi quando o Tito, que era um estrategista de ações militares, planejou seqüestrar um avião da Varig para nos levar para Cuba. Conseguimos requisitar um revolver do padre Caetano Maiello e o Tito arranjou um vidrinho de penicilina com um liquido branco. Ele orientou: “Tu vais ficar na parte de atrás do avião apontando o revólver (sem balas) e eu vou ficar com o vidrinho dizendo que é nitroglicerina e que vou explodir o avião”. Ficou tudo certinho, tiramos as passagens...Mas, ao me despedir da namorada, ela chamou atenção para algo que eu não tinha imaginado: “Tu vais para Cuba, e a tua família? O Tito não tem família aqui, mas a tua família toda vai apanhar muito, tua mãe, teu pai, teus irmãos, a polícia federal vai bater neles. !”.  Eu voltei ao Colégio Diocesano decidido: “Olha, eu não vou não. A minha namorada tem razão...”. Aí o Tito insistiu: “Rapaz, lá em Cuba tu vais arranjar 300 namoradas”. O problema era a família, argumentei, então o Tito também desistiu do seqüestro e foi para Belém sozinho. Ele ficou na Casa do Estudante do Amapá e lá a Polícia Federal o prendeu, no dia seguinte. Prenderam o Tito e mandaram  me prender em Macapá. O recado que veio de Belém é que eu era um elemento muito perigoso, que tinha participado da Guerrilha de Caparaó... Recomendaram aos agentes que fossem preparados porque eu poderia reagir (risos). Eles pediram a ajuda de um jornalista para me prender. Eu peguei minha rede e fui. No dia seguinte me embarcaram para Belém. Passei uma semana sendo interrogado, sob ameaças, mas não me bateram. O Tito passou sete anos num presídio no Rio Grande do Sul... Eu fui solto  por influência de amigos do Amapá e de um diretor da Sudam (Superintendência da Amazônia) que era meu amigo desde os tempos de BH. Só que, ao voltar para Macapá, eu era um proscrito.

E como foi essa volta, depois da prisão?

Foi muito difícil. Eu fiquei em dificuldade de sobrevivência mesmo. Ninguém me arrumava emprego.

Você já era casado?
Não, não...Casei depois, em marco de 1971. Eu havia conquistado uma nova namorada - que se tornou minha mulher -  através do rádio. Ela ouvia o programa Alguma Coisa antes que Anoiteça, que produzimos na rádio Educadora e ficou fascinada. Queria me conhecer, mandou recado.

Como é que era o recado?

Ela disse que queria ler uns livros, pediu emprestado o Fundamentos de Filosofia, do Politzer  (baseado no qual fazíamos o programa). Como eu falei pra vocês, eu era uma referência revolucionária. Recebi informação de Belém que estavam procurando um lugar para fazer treinamento de guerrilha. E eu conhecia em Macapá um cara que era do PCB que tinha fazenda nas ilhas próximas. O Capi ainda não tinha sido preso,  fomos juntos conferir o local: eu, o Capi, a Janete (esposa do Capi) e convidamos a Jalva. Ela ficou entusiasmada com a aventura. Viajar com guerrilheiros, né? (risos). Quando voltamos de lá já estávamos namorando.

Isso foi em que ano?

 Em 1971.

Depois disso você veio para o Acre?
 
Depois disso vivi a experiência como químico em Belém. No meu último estágio em Belo Horizonte ganhei uma bolsa da Sudam para fazer um curso de tecnólogo em Química Industrial . Fiz o curso e depois da prisão, quando o jornalismo se fechou para mim,  fui convidado para ir trabalhar na Companhia de Leite Pasteurizado do Pará, a Coleipa, do amigo de Belo Horizonte (o João Moreira, diretor de Incentivos Fiscais da Sudam). Lá, passei três anos, mas a atividade me violentava: cheguei a sofrer uma distonia neuro-vegetativa. Isso foi em 1974. Eu tinha  pesadelos me afogando em tanques de leite. Resolvi largar a Coleipa para viver de artesanato. Passei um ano em Belém fazendo entalhe em madeira. Mas o mercado estava saturado... voltei  para Macapá com um casal de filhos e passei a fazer bicos na imprensa local. A situação estava bem crítica  quando o jornalista Lúcio Flávio Pinto, de Belém, me indicou  para  correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”.

Foi quando você veio para o Acre?

Eu vim para o Acre em outubro de 1975 com um casal de filhos: a Vássia e o Tissiano.

Você já sabia como estava o clima aqui?

Eu não tinha idéia de como era o conflito, mas o meu envolvimento foi imediato. Só que minha formação era muito teórica e quando comecei a entrar nos seringais, ouvir os relatos das pessoas atingidas, nas periferias, eu vi que a minha teoria tinha pouca valia. Eu ficava impressionado de ver como eles colocavam com tanta clareza a situação e de que maneira se preparavam para reagir. Eu aprendi muito. Eu tenho consciência de que nesse momento voltou para mim toda a origem de seringal. As pessoas ameaçadas pareciam ser, de alguma forma minha família, meus irmãos.Eu sempre ia fundo na denúncia dos posseiros, dos seringueiros. Ouvia o outro lado, mas relatava a situação com muito realismo, com envolvimento mesmo.

O texto do povo nas páginas do jornal


Você chegou e dois anos depois teve a experiência de montar o Varadouro, num momento muito forte da história do Acre...
Quando eu cheguei, em 75, os conflitos existiam mas os jornais não noticiavam. Só existia o jornal O Rio Branco, da rede dos Diários Associados que publicava a versão dos fazendeiros e dos policiais. E tinha alguma coisa noticiada pela Igreja, através do boletim Nós Irmãos. Mas não havia a divulgação na grande imprensa, acho que essa coisa aconteceu quando eu cheguei aqui, porque o meu dia a dia era cobrir os conflitos. E o bispo D. Moacir Grechi, que editava o Nós Irmãos, percebia isso e estava querendo montar um jornal fora da Igreja...Então começamos aquelas discussões intermináveis...Depois chegaram o Sílvio Martinelo e o Antônio Marmo, dois jornalistas ligados a Igreja que vieram para ajudar a formar a equipe. Resolvemos sair das discussões e tirar o jornal de qualquer jeito. Nós já tínhamos contato com o Abrain Fahrat, com o Luiz  Carvalho, o Alberto Furtado... Pegamos um dinheiro emprestado com o Dom Moacyr.

A Igreja financiou os seis primeiros números...

Sim, Dom Moacyr  emprestou o dinheiro que garantia as seis primeiras edições.

E vocês pagaram o empréstimo?
Não, não, não deu para devolver não. A gente tinha muita dificuldade e olha que ninguém tinha salário no Varadouro – até hoje eu fico argumentando isso com meus repórteres lá no Amapá (risos). A minha experiência de fazer bom jornalismo sem salário... O único salário no Varadouro era do Suede Chaves (hoje advogado), porque ele tinha uma ninhada de menino para criar... O Varadouro era assim uma obra coletiva, resultado de um trabalho conjunto, de muitas pessoas, uma ação política. Era um outro momento no Acre, havia muita solidariedade entre as entidades:  a universidade, a Igreja, a Contag, todas essas entidades e as pessoas chegavam para ajudar sem exigir nada. Era incrível, e isso era um pouco do espírito da imprensa alternativa no país todo, porque vinha da própria resistência ao regime militar que era uma ameaça para todos. As pessoas se solidarizavam para enfrentar a ameaça comum.

Se você fosse sintetizar a experiência do Varadouro em uma frase, um sentimento, qual seria?

Eu acho que é o sentimento de acreanidade. Acho que o Varadouro  foi um jornal que não rebuscou a linguagem, foi um instrumento colocado para ouvir e denunciar o relato de quem estava ameaçado. E as pessoas que faziam o Varadouro se doíam com aquilo e pegavam a denúncia na forma como ela brotava das pessoas. Diziam assim: ‘eu não sou capaz de fazer melhor que isso’. A maneira como eles se expressavam já tinha toda a carga de gravidade, de denúncia, de emoção. E a gente respeitou isso.

Publicaram o texto do povo...

Publicamos  o texto do povo, da maneira rica de expressar de quem está vivendo o drama, a dificuldade.

Por que você acha que a palavra que define esse sentimento é acreanidade?

A palavra acreanidade, eu gostei muito quando ela surgiu, talvez até eu a tenha inventado, mas acho que a ouvi em algum lugar; talvez o Mário Lima (acreano, professor da Unicamp) a tenha escrito num de seus textos acadêmicos... Entendi acreanidade como algo que estava desaparecendo, mas que estava ligado ao passado de sobrevivência de um Estado distante, difícil, com uma economia que não tinha mais valor de exportação. Então como é que esse povo sobreviveu? Sobreviveu porque era simples, solidário, porque tinha valores que representavam alguma forma de satisfação, de alegria e ao mesmo tempo de resistência. Um povo que dividia o que tinha com os vizinhos... Pra vocês terem uma idéia:  Quando saímos do seringal e viemos morar em Rio Branco, na década de 50, a minha família tinha sido seringalista mas vivia de um arrendamento que só durava até o meio do ano. O meu pai conseguiu a pensão de veterano da Revolução Acreana que custava a sair...Se não fosse a solidariedade dos vizinhos, a gente passava fome. A gente jantava pão com manteiga e café. E algumas vezes isso vinha da dona Albertina, uma vizinha casada com o sargento Horácio, da Guarda Territorial. O sargento tinha um suprimento do quartel que ela dividia algumas vezes com a gente. Vimos muito disso nos anos 70 entre as famílias que eram expulsas dos seringais e se amontoavam nos bairros João Eduardo, Cidade Nova, Bahia. As pessoas trocavam xicrinha de café pela janela, colher de açúcar, sal...Essa coisa é um traço cultural do Acre. Então eu acho que acreanidade (talvez eu estivesse já, naquela época, pensando no que hoje está mais claro pra mim) é valorizar um sentimento comum a todos que vivem nesse estado, nessa região. É se abastecer dessa realidade para viver bem nesse presente, deixar de achar que as coisas aqui não têm solução, que tem que ser tudo diferente.

Então você acha que o sentimento que moveu pessoas e organizações na época da resistência, ele não se perdeu?
Não, não se perdeu. Acho que está sufocado. Se você der uma olhada em quem é juiz, quem é advogado, quem é promotor, você vai ver que são caras que a gente combatia nos anos 70. Eles venceram terreno, avançaram bastante, conquistaram o poder. Hoje o Acre é um pouco essa mistura e a gente tem que aprender a conviver com isso.

Você acha que a imprensa, o jornalismo hoje, pode abrir canais para a expressão desse sentimento, desses valores da mesma maneira que fez naquela época?
Pode e deve. Eu acho que o jornalismo que quiser crescer no Acre vai ter que fazer isso.

Mas o jornalismo que cresce hoje, no Acre, é àquele colado na grande mídia...

É, mas não acredito que os jornais de hoje estejam despertando mais atenção do que os daquela época. O Varadouro, um jornal precário, mal feito, chegou a impressionar em termo de vendagem pelo seu conteúdo, sua linha editorial, sua identidade: ele mexia com esta cidade. Eu acho que isso não morreu não, o que morreu foram os jornais porque desapareceram aquelas pessoas dispostas a fazer algo parecido com o Varadouro, um jornal simples mas honesto. A linha ainda é aquela, um jornal que retome isso, que fale da acreanidade, que resgate as histórias, que fale ao coração das pessoas. Essas coisas não vão  desaparecer porque continuamos no meio da floresta, continuamos vendo os pássaros, sentindo a presença dos rios...

Você falou, em uma entrevista ao Pedro Vicente para a tese de doutorado dele que acabou sendo publicada, que não acreditava que pudesse ser feito, atualmente, um jornal com tanto engajamento e apoio dos movimentos sociais. Por que esse desencanto?
Eu estava pensando no que estou vendo hoje (2001). Eu nunca parei de fazer jornal na Amazônia, mas tenho encontrado dificuldade, hoje, com repórteres que antes de serem bons jornalistas querem ganhar salários de profissionais e  não querem trabalhar correndo risco. Não querem suar a camisa fazendo jornal. Acho que é um outro momento mesmo, acho que as pessoas estão mais preocupadas em garantir um salário para sobreviver. O desencanto não é só meu,  é um desencanto das pessoas de um modo geral. Existe também nas entidades muita disputa. Parece que diminuiu mesmo o interesse pela causa coletiva, o objetivo de salvar o Acre. As pessoas parecem mais preocupadas em se salvar do que em salvar o Acre.

Você não acha que vocês, que criaram o Varadouro, contribuíram para essa situação política ao apoiarem governos do PMDB durante a década de 80?
Sim, nós erramos ao apostar no PMDB, mas na época ainda não tinha opção melhor.  Saímos de um regime de exceção com alguns elementos que eram ícones da oposição, que pareciam pessoas de vanguarda mas que não o foram realmente. A gente acreditava no Aluízio Bezerra, no Nabor Júnior, no Geraldo Flemig, no Mário Maia...porque só vimos como eles eram, realmente, depois que chegaram ao poder. O segmento político que chegou ao governo depois do regime militar era a cara do regime militar, possuía os mesmos vícios. Apenas tinha assumindo um papel teórico de oposição que se beneficiava de ser oposição a um regime decadente...Mas o PMDB não teve competência para avançar. Hoje a gente vê claramente que o que houve de revolucionário nos anos 70 e 80, foi a organização dos seringueiros e  segmentos da imprensa como o Varadouro. Foi esse movimento que levou o PMDB ao poder. Mas o PMDB traiu isso, não estava sintonizado com a luta dos povos da floresta. Pelo contrário, assim que chegou ao poder procurou cooptar as lideranças para esvaziar o movimento.

Você disse no começo que sentia dificuldade de se adaptar à vida do seringal.  Em algum momento você sentiu também vergonha dessa origem do seringal?
Muita. Eu até fazia a imagem, antes, de que carregava o seringal nas costas e o peso era tão grande que diante de muitas coisas, ou de quase tudo, eu me sentia rés ao chão. Em Minas eu era um estranho. Passei oito anos vivendo no meio universitário mas me sentia  acuado o tempo todo. Era pesado ser da Amazônia, ser do Acre, ter nascido no seringal...Certamente o problema não era colocado por eles lá,  eu carregava um peso criado aqui dentro da Amazônia. E isso, até os anos 60, foi muito forte... Isso veio da colonização européia, quando os estrangeiros reduziram a cultura original da Amazônia a nada!

Como foi lidar com isso numa cidade como Belo Horizonte?

Isso me assustava. Houve momentos em que pensei que estivesse doente mesmo. Nos últimos anos eu sentia dificuldades ao fazer as coisas, parava de ir a escola, ficava lendo, lendo, não queria colocar a cara lá fora. Foi quando li muito Krisnamurti...Aí comecei a fazer longas caminhadas pela cidade e meu ponto era em frente à livraria Itatiaia. Ali era meu ponto. Eu não tinha dinheiro para comprar livros, então ficava ali, parado, olhando...O que me assustou e me fez pensar em voltar para  a Amazônia foi quando a dona da pensão em que eu morava passou e me viu daquele jeito e me sacudiu: “menino, o quê que você tem?! Quer que eu leve você para o hospital?”. Eu pensei: “Porra, devo estar mesmo doente, e a minha doença é essa orfandade, esse mundo que eu não quero”. Aí eu me lembrei de um filme do Cacá Diegues, A Grande Cidade, que mostrava uma família de nordestinos que saía do interior para tentar viver na grande cidade como Rio de Janeiro, São Paulo...E para sobreviver acabava se envolvendo com marginais, morrendo. Tem uma cena em que o Joel Barcelos (ator do filme) aparece baleado, agonizando: ele começa a lembrar do sertão e o cineasta usa imagens em negativo. O personagem montado num cavalo cavalga em negativo para o sertão...Eu achei que aquela imagem tinha tudo a ver comigo: eu tinha que voltar para a Amazônia, aqui era o meu lugar. Então eu voltei e nada mais valia pra mim: terminar curso, fazer revolução de verdade, nada, eu queria voltar para respirar de novo.


Rainer Maria Rilke: leitura para a vida inteira


E hoje?

Hoje eu estou elaborando isso de uma maneira muito positiva. Eu agora, aos 62 anos (2001), estou maduro para tirar proveito disso. Agora quero estabelecer  uma espécie de barreira psicológica, de barreira cultural: “Eu serei superior se me abastecer sempre do que eu sempre vi e senti, da minha Amazônia”. Então eu não preciso fazer nenhum esforço para parecer ser o que eu não quero ser. Eu não tenho que ter mais vergonha do que eu fui, pelo contrário, eu quero é conhecer o que eu fui e valorizar isso.

Como é que você vê o Acre estando lá no Amapá?

A Marina (Silva, ex-senadora pelo PT/Acre) diz que a melhor maneira de enxergar o Acre é com o coração. É como o vejo de qualquer lugar. No Amapá meu trabalho está comprometido com essa história de eu ser acreano e de estar lá fazendo algo que tem muita semelhança com o que acontece aqui. Na verdade, eu não tenho dúvidas de que o Amapá sustentável de hoje é conseqüência do que aconteceu no Acre nas últimas décadas: o despertar da consciência ecológica, a luta dos seringueiros, o surgimento da idéia de ‘povos da floresta’, os índios, os ribeirinhos... E quando penso em voltar para o Acre é porque o estado me inspira, me deixa mais ligado às minhas origens em contato com a floresta,  com o olhar limpo das pessoas da beira de rio, com toda a solidariedade da qual falamos. O filósofo francês Edgar Mourin fala que o socialismo não conseguiu impedir que as pessoas se tornassem menos solidárias na sociedade moderna. Que o socialismo promoveu alguns avanços entre nações a gente reconhece, mas entre indivíduos e grupos houve um agravamento, as pessoas não são mais solidárias. Então ele coloca que o grande desafio hoje é buscar esse espírito de solidariedade, buscar a humanização da técnica e da burocracia. Então tem que humanizar e refazer a solidariedade entre as pessoas, os grupos, as etnias, as nações. Outra coisa importante que ele cita é que nós estamos ainda na idade primitiva das possibilidades do pensamento humano, nós temos muito que explorar para criar a situação de uma sociedade humana e solidária. Acabaram-se as certezas científicas e históricas, nós temos também que trabalhar com o improvável. Então tudo coloca a gente numa situação privilegiada, na Amazônia, para recriar as ações políticas, os pensamentos filosóficos, o jornalismo...

O povo da Amazônia, os intelectuais, os jornalistas, os políticos, a sociedade da Amazônia, hoje, tem condições, tem capacidade de apresentar essa contribuição?
Eu acho que sim e que levamos alguma vantagem nisso. Porque nós, por estarmos tão isolados, nós não temos muitas certezas – nem históricas, nem científicas -, nós ainda sonhamos, ainda acreditamos nos mitos, ainda praticamos a solidariedade, ainda estamos no caminho. Podemos pegar o fio invisível da vida inteligente.

Para você, o que é escrever?

Escrever, para mim, é uma forma de contornar as dificuldades que eu tenho de lidar com o mundo, com as pessoas. Toda a timidez que eu tenho, a insegurança de me relacionar com o que me cerca- e até por essa origem a que me referi, do seringal - de me sentir menor, de não estar no nível dos outros para competir...Então escrever, para mim, é a forma de me comunicar, de me expressar. Da minha trincheira eu me comunico com todas as pessoas, até com quem eu não conheço, então eu sinto que estou  participando. É fundamentalmente isso.

Você ‘formou’ algumas gerações de jornalistas. Qual a sensação de ver o pessoal que você viu chegando cru numa redação, atuando hoje na imprensa?
Isso é surpreendente porque eu não sou na verdade um professor de jornalismo – o que passou por uma escola superior e tem o domínio total da gramática etc.. O que eu consigo fazer bem é despertar nas pessoas aquilo que elas já carregam consigo, quando carregam. Para as pessoas que vão trabalhar comigo eu fico repetindo: -  Olha, seja simples e honesto no texto; escreva como se você fosse o leitor. Não procure  palavras que o leitor comum não conheça.  O texto precisa fluir de forma atraente, com emoção...Procure anotar o detalhe, o gesto, o olhar, o riso, a tristeza das pessoas. É preciso prestar atenção na figura humana e traduzir isso num texto que pareça uma crônica. Se não conseguir isso da primeira vez, reescreva dez, vinte vezes...a técnica é essa. A Vássia vai logo me corrigir, mas tenho consciência de que não tenho esse texto tão bom que sugiro (risos). É sério: eu gostaria de ter um texto seguro, um estilo mais enxuto.O que valoriza o meu texto e o faz agradar às pessoas, presumo, é a simplicidade, a emoção. Eu não me envergonho de ser emocional no que publico. Até me sinto, às vezes, um Paulo Coelho do jornalismo...(risos)

O  jornalista e escritor José Roberto Alencar, em Sorte e Arte, disse que a maioria das reportagens que ele fez contaram, invariavelmente, com grandes golpes de sorte. Você acredita nisso, no jornalismo?
Eu acho que tem isso também, mas essa sorte a gente pode chamar de outra coisa: uma fixação, uma vontade, uma intuição que a gente tem; o gosto, o amor pela coisa. Quando você está antenado você começa a enxergar mais tudo aquilo que pode dar uma boa matéria. Se você está realmente apaixonado pela profissão, se isso está muito dentro de você, se é a sua forma de expressão e de se entender com o mundo, é difícil você não perceber as coisas que são importantes porque está tudo entranhado, o jornalismo está em você...

Você teve ídolos no jornalismo, jornalistas que você admirou?

Tive, vários - alguns até difícil de defender hoje. O David Nasser, por exemplo. Ele foi um dos primeiros e me encantar com seu texto! Teve o Joel Silveira que sempre fazia as dobradinhas com o Indalécio Wanderley em grandes reportagens para a revista O Cruzeiro. Mais recentemente, passei a admirar o Zuenir Ventura, o Rubem Braga -uns cronistas, outros repórteres. Admiro o Ricardo Kotsho como repórter. Aqui na Amazônia tenho o Lúcio Flávio Pinto, de Belém, como meu guru. É jornalista, sociólogo, escritor, poeta, militante, um amazônida por excelência.

O jornalista deve sempre publicar a verdade ou, às vezes, é melhor que não faça isso?

Eu procuro sempre a verdade mas, num esforço de responder à sua pergunta,  aconteceu comigo... Já deixei de publicar uma verdade por achar que ela ia servir de instrumento contra outra verdade maior. Isso aí pode ser uma falha, eu sou esse tipo de jornalista que talvez falhe por ser também um militante.

E quanto a publicar a mentira?

Aí, jamais. Tem um texto do Rainer Maria Rilke: Cartas a um Jovem Poeta, - em que ele fala  a um jovem estreante sobre o ofício de escrever. O jovem  perguntou sobre a importância de continuar tentando ao que Rilke respondeu: ‘Procure se  recolher no maior isolamento possível e experimente uma solidão profunda. E  do fundo dessa solidão,  pergunte a si mesmo: “Eu viveria sem escrever?” Basta ter dúvidas na resposta para não ter mais o direito de faze-lo”.ensina Rilke. Acho que podemos aplicar a imagem para a ética jornalística: se você decide escrever uma mentira, conscientemente, não tem mais o direito de continuar fazendo jornalismo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Geoglifos do Acre: de pai para filho

Coluna publicada no Jornal Página 20 | 23jan2011
Pesquisadores já mapearam cerca de 300 geoglífos em três décadas

Na sexta-feira passada, 21, portanto decorrido mais de três décadas, o auditório da Biblioteca da Floresta na capital acreana lotou com pessoas interessadas no assunto. Desta vez, para prestigiar o filho, Tiago Juruá Damo Ranzi, biólogo e bacharel em direito que enriquece o tema Geoglifos acrescentando uma abordagem jurídica de preservação desses sítios arqueológicos.
A plateia aplaudiu com entusiasmo o jovem autor do livro “Geoglifos do Acre e a Proteção dos Sítios Arqueológicos do Brasil”. E ele, emocionado, chorou.
O Juruá que Tiago carrega no nome é uma homenagem ao Vale do Juruá, onde a família catarinense de cientistas viveu nos anos 1980. Lá, fica a cidade de Cruzeiro do Sul, a segunda mais importante do Acre que se orgulha de produzir a farinha mais saborosa do país. Em 2006, o próprio Tiago integrou uma expedição à Foz do Breu, no rio Juruá, viajando dez dias de barco pela beleza natural e o calor humano que inspirou seus pais, Alceu e Cleusa.
Thiago Juruá: contribuição jurídica
 para os sítios arqueológicos.
Após a viagem Tiago, que estudou biologia e direito em Florianópolis e no Vale de Itajaí, em Santa Catarina, escolheu imergir no Acre. Trabalhou no ministério público como assessor técnico-jurídico da Promotoria Especializada de Defesa do Meio Ambiente, depois passou a analista ambiental federal do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ICMBio, onde se mantém atuando na Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, em Sena Madureira.
Seu livro, que tem como base a monografia apresentada para conclusão do curso de direito na Univali/SC em 2007 (atualizada e acrescida de novas descobertas sobre o tema), apresenta na orelha estas instigantes indagações: “Quem construiu esses monumentos? Como eram essas pessoas? O que buscavam? Como conseguiram realizar esses desenhos que resistiram ao tempo? E para que serviam”?
A Biblioteca da Floresta, que Tiago Juruá chamou no lançamento de “casa dos Geoglifos”, realizou em julho de 2010, um simpósio Internacional cujo tema principal foi Arqueologia da Amazônia Ocidental, atraindo pesquisadores internacionais, além de estudiosos e curiosos. O foco, claro, foi o Acre com seus sítios arqueológicos monumentais.
Tais figuras somente são bem percebidas do alto, de avião ou balão voando baixo. São encontradas na parte ocidental da Amazônia, por uma vasta região que engloba o leste do Acre, o sul do Amazonas, o oeste de Rondônia e o norte da Bolívia. São áreas abertas, cercadas por valetas contínuas e muretas de terra, com formas geométricas perfeitas: círculos, retângulos, hexágonos, octógonos e outras de grandes dimensões supostamente feitas por populações indígenas que ali viveram no início da era Cristã.
No estado ocorrem entre os rios Acre, Iquiri e Abunã (linha de fronteira com a Bolívia), todos formadores do alto rio Purus. O município com maior incidência é Capixaba, com 49 sítios. Ao todo, já foram identificados cerca de 300 sítios. A descoberta iniciou em 1977 quando uma equipe de pesquisadores do Programa Nacional de Pesquisas Arqueologias da Bacia Amazônica (PRONABA), coordenada por Ondemar Ferreira Dias, (UFRJ) identificou as primeiras figuras.  Alceu Ranz (o pai) era membro da equipe.

Espaços antigos
Por ocasião do simpósio internacional, o site da Biblioteca da Floresta publicou, num texto de Brenna Amâncio, que “os Geoglifos representam uma técnica construtiva de espaços como aldeias fortificadas, locais de encontro ou locais para realização de festas e rituais, indicando notável trabalho de grupos indígenas que não dispunham de equipamentos modernos para escavar e transportar toneladas de solo”.
A informação está no livro “Paisagens da Amazônia Ocidental”, produzido sob a coordenação dos pesquisadores Denise Schaan, Alceu Ranzi e Antônia Damasceno Barbosa. Denise Schaan, pesquisadora da Universidade Federal do Pará detalha: “Os sítios possuíam vias de entrada e saída de ambientes públicos e privados, disciplinando a movimentação dos indivíduos no espaço”.
A pesquisadora, que visita o Acre com frequência e esteve no lançamento de Tiago Juruá na sexta-feira afirma que os Geoglifos são mais antigos do que se imagina. Segundo ela, acredita-se que os sítios tenham sido abandonados por seus construtores por volta do século XVI ou XVII, como consequência da chegada dos espanhóis nas Américas. Por isso podem trazer informações importantes sobre os antigos habitantes dessa região, sobre como viviam, quantos eram, como se organizavam, e ajudar a entender melhor o processo de formação das paisagens no estado.

Contribuição jurídica
A promotora de justiça de meio ambiente do Ministério Público do Estado do Acre, Meri Cristina Amaral Gonçalves destaca o livro de Tiago como “um estudo minucioso dos instrumentos jurídicos  disponíveis na legislação brasileira, no tocante à proteção do patrimônio histórico e cultural”. E recomenda a obra a todos aqueles que “simpatizam com a busca do conhecimento sobre os processos de evolução das sociedades humanas”.
Nas suas “considerações finais”, Tiago Juruá afirma que os Geoglifos, como sítios arqueológicos integrantes do patrimônio cultural brasileiro, possuem proteção jurídica na constituição e em legislação específica.
Mais adiante, ele chama atenção sobre questões legais e de responsabilidades em relação ao patrimônio arqueológico, principalmente aos proprietários de terras onde sítios arqueológicos são encontrados. “São estes proprietários que ficarão responsáveis pelo patrimônio arqueológico existente em seu terreno, até que o poder público decida como proceder em cada caso”.
Tiago Juruá sugere, entretanto, para tranquilidade desses proprietários, medidas de incentivo que poderão ser adotadas, como desconto ou isenção de impostos, ou projetos de turismo em parceria com o estado. O que eles não podem é fazer com os Geoglifos o que alguns fazendeiros fazem com as onças que aparecem ameaçando seu rebanho: oferecer aos peões um salário mínimo por cabeça. Bang! Bang!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Últimas edições do Varadouro

Varadouro 23: tempo de mudanças

“Nesta edição, o novo em Varadouro está na matéria sobre educação infantil, onde se levanta algumas indagações acerca do significado da formação a partir da qual são moldadas nossas crianças. E também nos desenhos de Branco (Roberto Medeiros) – desenhos jovens que retratam a vida com humor e serenidade”.
É o que está dito no editorial da edição 23 do Varadouro, que circulou em agosto/setembro de 1981. Os desenhos de Branco, um tanto surrealistas, ocupam as páginas 14 e última. Na página 14 o jovem desenhista descreve “uma viagem fantástica à Estexper, estação orbital do planeta” e anuncia: “Estamos no ano de 1981, o ano versátil por excelência. O homem já foi à Lua, está perto de Marte e já existe o orgasmo múltiplo”.
Decididamente, o Varadouro buscava uma linguagem urbana adequada às mudanças de comportamento que se impunham na agitada Rio Branco dos anos 1980. A ditadura militar começava a entregar os pontos, o bar Girau, da Socorro, perdia sua clientela de esquerda para o Casarão e para o Café Concerto, da Rose, que se tornou o “point” da boemia com liberdades infinitas. O local de abrangência do bar (rua Alvorada, Bosque) ficou conhecido como “Esquina do Pecado”.
E tinha, sobretudo, as mudanças no plano político e ideológico. No livro Comunicação Alternativa e Movimentos Sociais na Amazônia Ocidental, o sociólogo Pedro Vicente Costa Sobrinho faz um estudo inteligente das agruras e venturas do Varadouro (tema de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo) mostrando fatos que influenciaram no fechamento do jornal na edição 24, em dezembro de 1981. Na página 163 da obra publicada em 2001 pela Editora Universitária da Universidade da Paraíba, ele informa:
“Observa-se que a partir de 1979, além dos encargos com a correspondência dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil assumidos pelos jornalistas Elson Martins e Silvio Martinello, editores e principais repórteres do Varadouro, estes passaram a editar o diário Gazeta do Acre, no qual parte da equipe de redação do alternativo engajara-se. A sobrecarga de trabalho daí proveniente repercutia, com certeza, no desempenho do jornal das selvas, tanto é que no ano de 1979 apenas circularam quatro edições. Em 1980, só duas edições: março e maio. A equipe já vinha revelando um certo cansaço, resultante, em parte , das dificuldades naturais de se fazer um alternativo no Acre. Por outro lado, a abertura democrática, a suspensão da censura, a anistia etc., enfim, a crise da ditadura alargou as possibilidades de a grande imprensa tratar de assuntos antes reservados aos alternativos. Além disso, os partidos e agrupamentos da esquerda clandestina ensaiavam o rompimento das frentes, e ainda começavam a organizar seus próprios meios de comunicação. Na imprensa alternativa mais política o fato já veio antes ocorrendo, pois o Opinião gerou o Movimento, que gerou o Em Tempo, que gerou o Amanhã e daí por diante”.
Pedro Vicente informa que “no Acre o PC do B articulou a distribuição do Movimento chegando a vender 150 exemplares semanais e manter mais de 80 assinantes mobilizando para isso pessoas ligadas à esquerda católica e às CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Outros jornais ligados à esquerda começaram a mobilizar sua militância para que fossem distribuídos: Hora do Povo, O Trabalho, etc. O ajuntamento de outras pessoas ao grupo, anunciado pelo Varadouro, em editorial na edição de abril de 1981, estava longe de assegurar a permanência do jornal”.
A qualidade do Varadouro, contudo, não foi alterada com as mudanças. Esta edição tem como matéria de capa uma ampla reportagem sobre os migrantes que chegam do sul do país procurando um pedaço de chão nos projetos do Incra. Fragilizados, com um histórico de expulsões em outras regiões, eles falam de seu calvário com indignação, mas não perdem a esperança. Eles vieram de Itaipu com crianças e caixotes e foram jogados em barracos improvisados no projeto Pedro Peixoto. Mas a situação de onde eles vieram era pior.
”Enquanto eu tiver vida – diz o baiano Arnaldo, vindo do Paraná – eu quero mexer com o corpo”...

Link para download do site da Biblioteca da Floresta: Varadouro, número 23

Varadouro 24: missão cumprida

Um pé de maconha em fotografia arregaçada na capa do jornal? Só o jornal Varadouro tinha tanta ousadia! Afinal, o ano era 1981, o país ainda vivia sob uma ditadura militar e o Acre – meu Deus! – que garantia podia oferecer a um grupo de jornalistas que há quatro anos cutucava a onça com vara curta? Mas estava lá, na capa da edição 24 (a última) que circulou em dezembro, a matéria com o título “Maconha: ilusão ou busca”?
Por que maconha na capa do Varadouro? – indagam os próprios editores do jornal pensando na explicação que queriam dar no pequeno editorial (sempre disfarçado de “neste número”) na segunda página:
“Em primeiro lugar, porque para nós não existem temas proibidos. Todos os assuntos de importância social são tratados com franqueza e coragem”. O jornal informa que a maconha joga milhares de jovens na marginalidade e nas garras da polícia, e que em Rio Branco teriam sido presos 100 fumantes entre janeiro e outubro daquele ano.
Na pagina 6 a matéria é desenvolvida com o título: “Por que se fuma maconha? E são os usuários que respondem: uma universitária, uma funcionária pública e um artista deram depoimento falando de suas experiências com a droga. Claro, sem serem identificados. A fotografia que ilustra a matéria mostra uma jovem caminhando junto a um muro onde se lê a pichação: “Cresça, faça a cabeça”! Na contracapa da edição, mais provocação: o desenhista Branco faz uma viagem pelo “Dai-me astral”.
No mais, era o Varadouro de sempre, com destaque para a matéria das páginas centrais: “O que o acreano espera de 82”, ou seja, qual a expectativa da população sobre as eleições daquele ano? A secretária da associação das lavadeiras de Rio Branco, Maria Costa dos Santos, nascida em Sena Madureira, 30 anos e 10 filhos, dá uma resposta consciente e engajada: “Estou confiante não por causa dos políticos, mas por causa do povo”.
Na página 18 tem uma matéria que até hoje sugere reflexão: “Seringueiro não vira colono paranaense”. Nas assembléias dos seringueiros organizados em sindicatos a partir de 1975, era comum ouvir-se que eles não queriam trocar sua colocação de seringa dentro da mata, com 300 hectares de floresta, por um lote do Incra de 100 ou menos, voltado para a produção agrícola. Anos depois (1990) eles conquistariam as Reservas Extrativistas.
Desta forma, com brilho, Varadouro fechou seu curto ciclo de vida. Mas seus editores nunca imaginaram que aquela edição era a última, como bem observou o sociólogo Pedro Vicente Costa Sobrinho, no seu livro Comunicação Alternativa e Movimentos Sociais na Amazônia Ocidental (2001). Segundo ele, Varadouro estava fadado a acompanhar o destino dos irmãos alternativos do resto do país. “Na notícia do desaparecimento do jornal Movimento, que foi veiculado neste número 24, Varadouro cometeu uma grave omissão: deixou de também incluir no texto o seu próprio desaparecimento, pois a partir daí sumiu sem uma explicação para o seu público” – escreveu.

Link para download do site da Biblioteca da Floresta: Varadouro, número 24

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

ZEE do Acre: janela aberta

Coluna publicada no Jornal Página 20 | 9jan2011
Exposição na Biblioteca da Floresta

Está aberta ao público na Biblioteca da Floresta,em Rio Branco, desde o  final de dezembro, uma exposição sobre o Zoneamento Ecológico Econômico do Acre que  representa instrumento de identificação territorial fundamental para o planejamento do desenvolvimento sustentável da região. Melhor que isso, o ZEE permite a qualquer cidadão conhecer a riqueza natural do seu Estado, o que pode (ou não) ser explorada, a aptidão de cada  área, etc., e ainda informa sobre a história, ocupação, cultura e tradição de comunidades  tradicionais da floresta.
A exposição precisa ser vista por estudantes, pesquisadores, estudiosos da Amazônia, pelas pessoas de um modo  geral que vão ficar conhecendo melhor o Acre. Certamente, vão todos se orgulhar da terra onde vivem, e acreditar num  futuro melhor a partir de suas  potencialidades. Vão também encontrar argumentos para defender a preservação de nichos  ecológicos que, com a ajuda da ciência, responderão pela prosperidade da população acreana  mais em frente. Poucos estados, no Brasil, possuem um ZEE tão detalhado. No caso do Acre, foram  quase uma década de estudo,  pesquisa de campo e discussão
com entidades representativas  da população para fechar o projeto. A primeira fase começou  em 1999, no primeiro mandato  do então governador Jorge Viana (PT). A segunda alcançou o  governo Binho Marques (1906- 1910) que submeteu o projeto à  Assembleia Legislativa e o oficializou por decreto. Agora, o
ZEE está pronto para ser usado. Quem acompanhou o processo e pode agora supervisionar seu uso com acerto e autoridade é o biólogo Edegard  de Deus, recém-nomeado secretário de estado do Meio  Ambiente. Paulista de Ribeirão Preto, ele veio para cá em  1978 compondo uma leva de  jovens professores contratados pela Universidade Federal do Acre. De lá pra cá, esteve sempre ligado ao meio ambiente: ajudou a criar o Parque Zoobotânico da UFAC,
fez parte da ONG SOS Amazônia e se envolveu com a luta dos povos da floresta que  salvou o Acre da bovinização. Ou seja: se acreanizou.
A partir de 1999, data de  nascimento do ZEE, tem atuado como secretário do Meio  Ambiente enfrentando duras  pelejas. Em 2009 e 2010 chegou a responder na Justiça  pela má conduta de um auxiliar que andou facilitando autorização para desmatamento  ilegal. Passou por um sufoco,  mas acabou inocentado. Por
conta desses atropelos, entretanto, passou quatro anos numa espécie de exílio politico, como coordenador geral  da Biblioteca da Floresta, um  departamento da Fundação  Cultural Elias Mansour com  quase nenhuma autonomia financeira. Mesmo nessas condições,  mas com a ajuda de um pequeno grupo de  pessoas comprometidas com a sustentabilidade ambiental, politica, social, econômica e cultural do
Acre, chamou atenção para a Biblioteca. De fato, em menos de três anos, organizou  excepcional acervo sobre a  história, a cultura e a tradição  acreanas, e principalmente  sobre as lutas socioambientais  iniciadas pelos seringueiros nos anos 1970, transformando a Biblioteca da Floresta em  porto seguro para quem se interessa por essas histórias.
De fato, ao inaugurar a exposição do ZEE em dezembro de 2010, a instituição fez  uma festa: lançou livros e revistas feitas em parceria com  outras entidades, dois DVDs  com cerca de 30 mil arquivos (em vídeo, áudio e fotografia,  além de artigos, reportagens  e teses acadêmicas), e lacrou  uma urna com parte desse material e três mil mensagens escritas por frequentadores. A  urna foi inspirada numa mensagem de Chico Mendes endereçada aos jovens de 2120,  ano em que será aberta.
O ZEE, insisto, será daqui para frente preciosa fonte  de consulta sobre a realidade  acreana. População, florestas,  rios, lagos, produção, tradição  cultural, distancias, tribos indígenas, flora, fauna, crenças,  clima etc. – tá tudo lá dentro,  como conhecimento cientificamente produzido e legitimado com a participação das
comunidades.
Quiçá seja utilizado como  livro de cabeceira por todos  que vivem no Acre, ou que planejam fazer algo no Acre.

CORREIO

Ex-marido de Dilma Rousseff
Carlos Araújo (Foto: Daniel de Andrade)
Carlos Araújo surgiu na primeira safra da resistência à ditadura militar de 1964. Foi preso em agosto de 1970 como militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), organização de esquerda que propunha a luta armada. Conheceu Dilma  Rousseff durante os deslocamentos para responder por crime político. Foi preso e interrogado pelo Romeu Tuma, ex-diretor do DOPS que, cinicamente, após a ditadura se dizia democrata.
Antes da VPR, militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nasceu em São Francisco de Paula no Rio Grande do Sul. Aos 14 anos foi detido pela primeira vez, pichando muro em Porto Alegre em defesa de “O Petróleo é Nosso”. Seu pai, Afrânio Araújo, foi um renomado advogado. Faleceu em 1974. Carlos namorava a atriz Bete Mendes, outra militante de esquerda que atuava nas novelas da TV Globo; depois viveu um tempo com a também militante Vânia Abrantes, até conhecer Dilma no presídio Tiradentes, em São Paulo. Os dois se apaixonaram na prisão.
Após dois anos de detenção, Dilma foi solta e passou a visitar Carlos Araújo. Levava livros, cigarros e mantinha com ele relacionamento íntimo, de casal. Assim mantinham-se informados sobre a realidade brasileira e o futuro político. Após a prisão, casaram e viveram 30 anos juntos, até 1999. Têm uma filha fruto dessa união, a linda mulher que  desfilou com a mãe no dia da posse como Presidente da República, e que lhes ofereceu um neto.
O casal alinhou-se politicamente com Brizola, Dirceu  Collares, Aldo Pinto e Valneri Antunes (o Átila), entre outros,  como filiados ao PTB. Após perderem a sigla do PTB para Ivete Vargas, recriaram o PDT. Nesse período, organizaram movimentos sindicais, camponeses e operár ios, o que rendeu a Carlos apoio e votos para as eleições do PDT.
Foi eleito por três mandatos a Deputado Estadual: em 1982,  1986 e 1990. Por duas vezes, perdeu a eleição para os petistas Olívio Dutra e Tarso Genro a prefeito de Porto Alegre. Em  1985, Carlos e Dilma se  dedicaram de corpo e alma à eleição  de Alceu Collares e pela primeira vez Dilma foi nomeada, com
 a indicação do marido, para a Secretaria Municipal da Fazenda  do Município de Porto Alegre.
Carlos desligou-se da militância política do PDT em  2000 e voltou a advogar. Desde então, adotou vida discreta  e sossegada. É um homem culto e inteligente, grande orador,  corajoso, correto na ação e na palavra. É profundo conhecedor do marxismo e da dialética, solidário e humano. Político como ele está em extinção no Brasil. Dilma Rousseff aprendeu com ele, e vice-versa.
(Texto produzido com informações passadas por Daniel de  Andrade, autor do blog saitica.blogspot.com que vive em Porto Alegre)