sábado, 24 de agosto de 2013

Bolero no Colégio

*Elson Martins

A revitalização em 2006 do Colégio Acreano, construído há 70 anos, faz um bem enorme a alma dos seus ex-alunos. A minha, por exemplo, transborda de orgulho porque passei a década de cinquenta dentro da instituição: fiz o antigo primário no Grupo 7 de Setembro (que funcionava pela manhã), depois o ginásio e o primeiro ano científico no mesmo prédio. Saí de lá, em 1958, “desasnado” por mestres como Florentina Esteves, Geraldo Mesquita, João Coelho, Rufino (aulas de Latim), Miguel Ferrante, José Potyguara, entre outros. Nunca esqueci a figura do João Bracinho, o mais perene fiscal de sala e de corredores.
Fui colega de classe ou contemporâneo de gente que faz sucesso mundo afora. Posso citar alguns nomes próximos como Edílson Martins, jornalista e escritor que alguns pensam ser meu irmão; Odacyr Soares, também jornalista, que se enfiou na política tornando-se senador pelo Estado de Rondônia; o líder estudantil e político Elias Mansour (falecido), um dos mais brilhantes alunos do colégio; Flora Valladares Coelho, ex-presidente do Banco da Amazônia e que integra hoje a equipe do governo da floresta; a colunista social Marlize Braga; o advogado e escritor Joaquim Nogueira, com dois livros recentes lançados pela Companhia das Letras, em São Paulo.

Instituto Getúlio Vargas, atual Colégio Acreano (Acervo Patrimônio Histórico)


Colégio Acreano após revitalização (Acervo Secom) 

 Não é exagero afirmar que o CA funcionava como uma universidade. Para ingressar no Ginásio, os alunos saídos do primário enfrentavam rigoroso exame de admissão. A maioria frequentava o cursinho preparatório do médico Marinho Monte, que funcionava na Rua Benjamin Constant, onde hoje está localizada a Secretaria da Fazenda. Os bem-sucedidos na prova escrita ainda tinham que se submeter a uma sabatina oral de português, história, química e física.
   Mas a seleção premiava os competentes, fossem pobres ou ricos. Aos eliminados, restava aguardar o ano seguinte ou tentar duas outras opções de nível secundário: a Escola Normal Lourenço Filho, que formava professores; e a ETCA (Escola Comercial) para contabilistas. Não havia ainda universidade. Após o segundo grau, os alunos pegavam o avião da FAB para o Rio de Janeiro; ou navio tipo gaiola, até Manaus ou Belém.
Alunos do Colégio Acreano na década de 40 (Acervo Patrimônio Histórico)

A história do CA tem passagens de muito brilho. O colégio era bom em tudo: nos desfiles de 7 de Setembro, então, mexia com o coração da cidade de Rio Branco. Lembro que a mãe da jornalista Rose Farias, Maria Celeste (atualmente professora de Letras na UFAC), foi uma baliza lindíssima e competente. Morríamos de inveja do Aramis (Sarará) escolhido como seu par nos desfiles. A escolha era feita pelo técnico de Educação Física Walter Felix, o Té, rigoroso na disciplina: ele ficava possesso com quem errava o passo ou ria enquanto marchava.
  Uma de suas “vítimas” foi o Edílson Martins, hoje jornalista, escritor e produtor de vídeos para a televisão. Nosso simpático Come-Açúcar (seu apelido na época) tinha traços africanos com cabelos enrolados e lábios grossos, além do quê, era um poço de emoções. Nos desfiles não se continha ao passar em frente ao palácio do governo vestindo o uniforme de gala que lembrava o de um almirante. A emoção era tanta que ele não conseguia juntar os lábios deixando a impressão de riso. O instrutor Té, que nunca entendeu esse sentimento “almático”, o repreendia aos berros.
           Eu tomei gosto pela leitura e tive o primeiro contato com o jornalismo no Colégio Acreano. Quando faltava algum professor, íamos para a biblioteca onde não se podia dar um pio. Li Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e clássicos franceses e russos nesse confinamento instrutivo. Com o Edílson Martins e o Odacyr Soares, fizemos o jornalzinho estudantil “O Selecionado” que chegou a publicar reportagens e entrevistas despertando interesse até fora do meio estudantil.
Às sextas-feiras, as últimas aulas cediam tempo a um show “lítero-musical” no auditório, onde também eram exibidos filmes bang-bang antiquérrimos, aos sábados. Cansei de ouvir a Clícia Montenegro recitar “Navio Negreiro”, do poeta Castro Alves. Ali apareceram também alguns conjuntos musicais. Lembro de um formado por alunos do 3o ano do curso científico. O hoje engenheiro Fernando Castro era membro de um desses conjuntos.
Aos domingos, durante o verão, turmas de alunos e professoras desciam ou subiam o rio Acre fazendo piqueniques nas praias ou nos seringais próximos.
Portanto, e apesar de sisudo – com professores que davam aulas vestindo paletó e gravata, com inspetores plantados em cada sala de aula, o carimbo de “presente” ou “ausente” na carteirinha valendo pontos para aprovar ou desaprovar os alunos no final do ano –, o Colégio Acreano sabia incentivar o lazer e a cultura.
Eu mesmo aprendi a dançar valsa, bolero e samba-canção em sala de aula, em sessões preparatórias para o baile de formatura do Ginásio. Entre as professoras de bolero guardo na memória a performance da colega Marlize Braga (hoje colunista social), com as curvas e o charme dos seus 18 anos. 

N.E - O texto acima foi escrito antes do Colégio Acreano completar 80 anos, em 17 de julho de 2013. 

sábado, 17 de agosto de 2013

Revolta de Pigmeu

* Elson Martins

Eu comecei a ler revistas em quadrinhos cometendo pecado. Assim entendiam as famílias da sossegada cidade de Rio Branco dos anos cinquenta, de cultura nordestina conservadora e passagem pelo seringal como a minha. Lembro de ter cumprido penitências pelas coleções de Mandrake, Homem Borracha, Tarzan e Fantasma que escondia sob o colchão da cama. Um flagra no colégio podia resultar em suspensão ou outra constrangedora penalidade. Só aos poucos, a inquisição diminuiu até desaparecer de vez. Quando isso aconteceu - que pena! - eu já me convertera a outras leituras menos atraentes.


O Fantasma era dos heróis em quadrinhos o que mais me fascinava, talvez porque suas histórias rolavam na floresta entre índios pigmeus, uma ficção criada em cenário parecido com o da realidade que conheci na infância no seringal.

Nasci em 1939, mas conheci os quadrinhos somente em 1950, creio, quando passei a morar com uma irmã mais velha na capital. Ela me matriculou no Grupo Escolar 7 de Setembro e eu, por minha conta e risco, ingressei na “sociedade secreta” Gabino Besouro (ora, ninguém sabia que o cara tinha sido um escroto histórico!) de forte atuação clandestina nas imediações do Estádio José de Melo, do Rio Branco Futebol Clube. A GB agia ao cair da noite, com seus membros vestindo orgulhosamente uma camiseta com o símbolo do Fantasma (uma caveira), uniforme com o qual partiam para as aventuras planejadas sob uma imensa mangueira existente no cruzamento da Avenida Ceará com a Rua Marechal Deodoro.



As aventuras não passavam de brincadeiras mais ou menos inocentes, circunscritas à formação religiosa e moral do grupo. As mais ousadas, empreendidas em noitadas especiais, não iam além do seqüestro de uma lata de biscoitos do bar do Coriolano, que funcionava onde fica hoje o Shopping Miragina, ou da retirada de cartazes e fotos dos filmes em exibição no Cine Rio Branco – uma tarefa de alto risco, executada de madrugada. O risco era o técnico de projeção Dedé – que dormia num quartinho nos fundos do cinema e tinha o sono leve – acordar com o barulho das taxinhas caindo no piso de madeira da sala de projeção. Tanto os biscoitos quanto os cartazes e fotos iam para uma caverna escavada num baixio do campo do Rio Branco, também vigiado pelo Walter Felix de Souza, o Té, que, no entanto, nunca a descobriu. Fora isso, cometíamos algumas brechadas nas meninas do bairro e, raramente, acirrada guerra de baladeira com outras sociedades secretas.

Não se falava em drogas, estupros ou o que pudesse sinalizar para a violência infanto-juvenil dos dias atuais. Rio Branco era uma cidade que dormia de janelas abertas e tinha como periferia o Papôco, a Capoeira e o Bosque. Os jovens acompanhavam a banda de música da Guarda Territorial desde o quartel até a Praça do Palácio, marchando e batendo palmas. O sexo perpassava pela “sociedade secreta” de forma natural e contida, cabendo apenas alguma esperteza compartilhada.

Em algumas ocasiões, adotávamos a brincadeira do esconderijo com a participação de meninas que permitiam deliciosa iniciação à bolinagem. Apenas os mais graduados da “sociedade” participavam do ávido revezamento entre os que fingiam esconder-se e os que fingiam procurá-los. Quando a iniciação rareava – afinal, não havia tantas garotas liberadas para o esconderijo – a turma recorria ao ingênuo jogo do “tirando bolo” com as menos assanhadas.

Que saudade dos guerreiros da Gabino Bezouro, como os irmãos Pitoco e Sarará, irreverentes e destemidos; e os também irmãos Stélio e Sílvio que brigavam como malucos dando trabalho para apartar. O Sílvio gostava de meter medo na turma dizendo que adorava o satanás. Quando aconteciam tempestades com raios e trovões, o que era comum naqueles tempos, ele corria gritando com os braços abertos para o céu: “Anda, meu satanás, mostra tua força e me fulmina!”.

A debandada era geral.

Outro maluco de pedra era o “Mão”, que ao se irritar, virava o próprio satanás evocado pelo Silvio. Já eu, o Zé Henrique e o Neguinho, vulgo Rock Hudson, formávamos a ala moderada, que se destacava no planejamento das ações da GB. Eu não tinha físico para sair no braço com ninguém. Quando algum outro grupo nos provocava, assumia resignadamente minha vocação de pigmeu.

Pois foi esse sentimento, do pigmeu que investia na paz com o inimigo, que me inspirou este texto. Aquele povo miúdo que conduzia os “buanas” aos tesouros da floresta me enternecia e irritava ao mesmo tempo. A história começava sempre com um avião monomotor em meio a um intenso temporal, rodopiando e caindo no meio do mato. Em seguida, apareciam os nativos que resgatavam os ocupantes do aparelho sinistrado e os levavam para a aldeia oferecendo hospitalidade. Como leitor, eu sabia que o Fantasma logo ia aparecer e salvar o tesouro, mas a indignação se repetia de história em história.

O pior é que, após 40 anos de jornalismo na Amazônia, começo a pensar que tenho repetido à exaustão o gesto dos pigmeus. Só no Acre, passei 16 anos (75 a 91) como repórter de conflitos entre nativos e forâneos, trabalhando para os jornais O Estado de S. Paulo, Folha do Acre, Gazeta do Acre, O Rio Branco, Varadouro e Repiquete, sem falar nos “frilas” para revistas nacionais. Disparava setas envenenadas sem a ajuda do Fantasma, e sem perceber que os “buanas” que buscam o tesouro do Acre não são os mesmos das histórias em quadrinhos; ou que tesouro sagrado cobiçam ainda hoje.

Só agora, sob novas e diferentes ameaças à Amazônia vejo como reluzem os depoimentos, os relatos, as histórias, as imagens que o povo da floresta passa para os invasores da floresta: tudo fácil, tudo grátis, pilhas de papéis, fotografias, fitas gravadas, filmes, emoção e lagrimas. Tesouro recebido com beijinhos no rosto, abraços públicos e falsos que se extinguem nos espaços climatizados e distantes.

E agora que precisamos tanto deles, os heróis dos quadrinhos ficaram para trás no júbilo da infância... E por onde andam os heróis em carne e osso da Gabino Besouro? Cadê o Sarará, o Pitoco, cadê o Rock Hudson?


N.E
- O texto acima foi publicado originalmente no número 10 (dezembro de 2000) da extinta revista outraspalavras, publicação que circulou no Acre de outubro de 1999 a dezembro de 2002. 


terça-feira, 13 de agosto de 2013

É inevitável o incêndio da biblioteca da floresta?

Ennio Candotti (*)


1. De ribeirinhos e  hidroaviões     


Os ribeirinhos, que encontramos às margens de rios e igarapés em toda a Amazônia, são  parte do problema ou da solução da questão da defesa, da produção de conhecimentos científicos de botânica e zoologia, da conservação ambiental e do desenvolvimento econômico e social da região?

Se a resposta for que eles são parte do problema, deveríamos pensar em removê-los para núcleos urbanos e oferecer a eles oportunidades de trabalho, educação, moradia e cuidados de saúde, direitos da cidadania.

Se a resposta for que são parte da solução, uma vez que é dever do Estado estar presente em todo o território nacional, eles são muito importantes para monitorar o movimento de pessoas e animais e o trânsito das  mercadorias pelos rios, apoiar como guias e conhecedores da floresta a coleta de material para pesquisa (sementes, resinas e amostras de fauna e flora) e colaborar nas diferentes etapas na construção dos conhecimentos no campo e nos laboratórios dos centros de ciência e tecnologia.


Podem também colaborar com os trabalhos de monitoramento do clima, da fauna, da flora e do nível e velocidade das águas. Adequadamente treinados, poderiam participar, quando necessário, de ações de defesa do território.



Candotti: "No dia em que demonstrarmos o valor  da ‘biblioteca’ ninguém mais desmatará"

O Vietnam foi um exemplo de como os ribeirinhos dos rios e igarapés das florestas tropicais ofereceram decisivo apoio ao exército vietnamita que derrotou em 1972 o exército de ocupação dos Estados Unidos.


Neste caso deveríamos valorizar sua presença ao longo dos rios, reconhecer seus direitos de posse das terras tradicionalmente ocupadas[1], e observar com maior atenção as soluções técnicas e de organização social que eles encontraram para trabalhar, se alimentar, plantar, pescar, construir casas, fabricar barcos e canoas, cuidar mesmo que precariamente da saúde e da educação  dos filhos, além de oferecer apoio a viajantes e embarcações que transitam pelos rios.


Deveríamos pensar e contribuir para implementar uma política específica de apoio a estas comunidades. Os instrumentos e diretrizes usuais de assistência e serviços públicos não têm funcionado.  Como aliás não têm funcionado também para as vilas e aglomerados urbanos do interior  (um Sedex enviado de S.Gabriel da Cachoeira para Manaus leva de 8 a 15 dias para chegar, são raros nas cidades dos interior os postos de gasolina certificados, os foros de justiça, etc.).


O meio mais eficiente para prover uma assistência regular para estas comunidades é através de hidroaviões. Contam-se porém em pouco mais de uma dezena os hidroaviões que operam na região. Seria interessante  conhecer as razões que impedem seu amplo uso. Solução simples, adotada por exemplo em condições ambientais mais severas do que as Amazônicas para assistência às comunidades das áreas dos grandes  lagos do Canadá.


Enquanto aguardam a adoção de um sistema de transporte e comunicação rápido, centenas de milhares de ribeirinhos podem contar apenas com a visita irregular dos barcos de assistência e comércio, raros e lentos no percurso das tortuosas hidrovias.


2. O incêndio da ‘biblioteca’ 


Nos últimos anos, na Amazônia,  tem se investido nos Institutos de C&T, renovaram-se os equipamentos dos laboratórios e acelerou-se a formação de recursos humanos. Falta, no entanto, definir um foco, uma prioridade na qual concentrar as forças científicas, de industria e defesa para alcançar resultados em áreas estratégicas  e criar competências do mais elevado nível, segundo padrões nacionais e internacionais, definindo tempos e modos para atingi-los. 


A floresta é uma imensa ‘biblioteca’ em que estão registrados segredos e tesouros do conhecimento que aguardam ser decifrados. A conservação desta biblioteca, impedir que ela seja incendiada,  depende da demonstração pública e reconhecida por todos, que o hectare de floresta com sua vida e segredos, com as árvores em pé, tem valor de mercado maior do que o hectare de terra desmatada, cultivada com soja, cana ou utilizada para o pasto de duas cabeças de gado. 


Isso é evidente para quem teve a oportunidade de aprender a ler e interpretar alguns dos códigos inscritos nos livros desta ‘biblioteca’, mas obviamente não é evidente para quem desmata e ocupa a terra com plantios e gado.


No dia em que demonstrarmos o valor científico e  de mercado da ‘biblioteca’ ninguém mais desmatará. A repressão aos desmatadores e o controle armado da integridade da floresta, por sua extensão e condições operacionais não conseguem protegê-la, o valor de mercado da terra desmatada (e os créditos bancários associados) comanda, é ele que devemos combater.


Surge então a pergunta: por onde começar, qual seria o foco, quais são os segredos da ‘biblioteca’ que mais nos interessam e poderiam interessar ao mercado? Creio que os mais importantes deles estão nas plantas e no micromundo de microrganismos, fungos, toxinas, enzimas, que degradam folhas e árvores caídas e os transformam nos nutrientes  que  alimentam a exuberância da floresta. Uma floresta que em sua maior extensão ocupa solos pobres.


Que microrganismos são esses? Quais são as toxinas,  os fungos e as resinas que têm sólido valor de mercado e que poderíamos estudar e extrair da floresta, isolar e sintetizar nos laboratórios, sem comprometer os ciclos de sua reprodução?


Preocupa-nos saber que após inúmeras tentativas de implantar na região institutos de microbiologia e biotecnologia os resultados permanecem modestos (a Embrapa possui na Amazônia apenas seis dos sessenta centros instalados no país e o CBA, o Centro de Biotecnologia da Amazônia, passados dez anos de sua criação e despendidos recursos para o equipamento de seus laboratórios ainda não funciona regularmente por falta de um estatuto jurídico de consenso entre Brasilia (Min Ind e Comercio) e Manaus (Suframa).


Curiosamente as atenções das organizações nacionais e internacionais de conservação da natureza (como p.e. o WWF e  o Fundo Amazônia) voltam-se para programas preocupados em evitar o desmatamento (e as emissões de CO2) mas não priorizam a formação de pesquisadores, microbiologistas, botânicos, entomólogos e o fomento de programas de pesquisa e interpretação do micro e macro mundo registrado na grande ‘biblioteca’.


Surge nesse ponto a questão de como defender a soberania nacional e proteger a propriedade do patrimônio genético registrados nos ‘livros’ da floresta. 

Estudando, interpretando o que está escrito nos ‘livros’ que encontramos na biblioteca, antes que outros o façam. “Conhecer ainda que tarde” o “cognoscere quae sera tamen” deveria estar escrito nas bandeiras da batalha amazônica.


Não há outro caminho para combater a biopirataria no micro ou no macromundo. O proibir, fiscalizar, controlar a coleta e o transporte de amostras do material genético, não defende os nossos interesses e nem  oferece proteção eficaz ao nosso patrimônio. Uma vez que é difícil distinguir nessas amostras as que tem de fato algum valor, de mercado ou científico e as que não se sabe se tem algum valor, por não terem sido ainda estudadas.

Trata-se de um tesouro codificado através de ‘bites’ de informação,  que podem circular a ‘cavalo’ das ondas eletromagnéticas, nas redes internautas ou ser transportados, ‘in natura’,  fisicamente em amostras microscópicas. Um universo  de informações inscritas em amostras de dimensões micrométricas  (10
-6 m) dificilmente detectáveis por humanos atentos ou mesmo por instrumentos especializados. Lembro a título de exemplo que há mais de 100 mil microrganismos em uma gota de nossas salivas, todos eles portadores de informações significativas em seus códigos genéticos!

Para estudar o micromundo da floresta são necessários laboratórios equipados e técnicos de alta especialização, além de financiamentos significativos. Sabemos que o retorno, que pode ocorrer em um caso em dez dos compostos estudados, compensa as despesas realizadas para estudar os dez. 


O extrativismo voluntário, desarmado de instrumentos, sem a assistência de laboratórios equipados não é sustentável social e economicamente, pode prover sustento para as famílias que a ele se dedicam, mas dificilmente pode retirá-las da pobreza.

3. As margens irregulares da floresta inundada    



Há obviamente outros tesouros  na floresta, outros alvos que clamam por nossa  atenção pesquisa e entendimento. Entre eles menciono: 

1. as  férteis terras pretas de índio que ao que tudo indica têm origem antrópica (10% das terras de floresta);
2. o imenso aquífero que se estende no subsolo profundo das florestas e rios do Atlântico aos Andes;
3. as jazidas de minerais;
4. os ecossistemas da foz de água doce e salgada. 

Antes porém de examinar os pontos acima quero mencionar uma questão que revela o tratamento dado pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional à floresta amazônica na elaboração do Código Florestal.


Em um dos primeiros Artigos (o de número três) do Código é introduzido um novo conceito, o de ‘margem média’ dos rios em substituição às margens altas (a média dos níveis máximos das últimas cinco cheias) que tradicionalmente (desde 1823) definiam os limites do território de propriedade (e proteção) da União às margens dos rios.


Estima-se que a área ocupada na Amazônia pelas águas em época de cheia é de 500 mil km2. [2] Com a nova definição das margens ‘médias’, a área de propriedade da União recuará para aproximadamente 350 mil km2.  Isto é a União cedeu (pelo novo Código) aos proprietários de terras às margens dos rios cerca de 150 mil km2, 15 milhões de hectares periodicamente inundados!


O que significa também que deixará aos novos proprietários a responsabilidade pela proteção e monitoramento dessas extensas áreas ( e seus ‘livros’ ainda indecifrados)  submersos em boa parte do ano. Hoje a ocupação urbana e/ou o plantio nestas áreas depende de autorizações e avaliações realizadas caso a caso pela União através da SPU.


Se a nova definição, na maioria dos rios encaixados, planaltinos recua de poucas dezenas de metros as margens tradicionais e os limites das responsabilidades e propriedades da União, no caso amazônico este recuo propicia a alienação da propriedade da União de centenas de milhares de quilômetros quadrados. Estima-se em 300 000 km2 a diferença entre a área delimitada pela margem alta na época da cheia e pela margem baixa na época da sêca dos rios amazônicos. Esta grande extensão se deve em grande parte ao fato que a diferença entre o nível mais alto e o nível mais baixo das águas dos rios é também muito grande, variando anualmente  de 12 a 15 metros!


No Código não há sequer uma menção à diferença entre as florestas alagadas e as florestas ‘secas’ planaltinas.  É bom lembrar que a extensão das áreas das florestas alagadas amazônicas, mais as terras também alagadas do Pantanal, é da ordem de grandeza das demais florestas de todo o país.


Do ponto de vista dos ecossistemas e do patrimônio genético é nessa área de floresta alagada que se concentram os segredos mais importantes da ‘biblioteca’ amazônica, uma vez que se trata de ecossistemas particulares, que por serem periodicamente inundados obrigou os seres que lá vivem, plantas e animais, fungos e microrganismos a encontrar soluções engenhosas e bem sucedidas de adaptação e sobrevivência (vale notar por exemplo que a floresta quando submersa suspende a sua respiração não absorvendo mais CO
2).


A questão das margens dos rios no Código Florestal revela que há uma significativa distância entre a prática política e o discurso emocionado dedicados pelas diferentes instâncias de Governo e do Congresso Nacional à Amazônia.

Vamos examinar agora os quatro pontos mencionados acima: terras pretas, aquíferos, minérios e os ecossistemas da foz onde a água doce dos rios encontra a salgada do oceano.
1) As terras pretas de índio são terras muito férteis que se encontram espalhadas pelo território amazônico (encontram-se em cerca de 10% do território) e que, segundo as mais recentes pesquisas têm origem antrópica.  O seu estudo procura revelar a sua composição e permitir assim a sua reprodução em laboratório ou em natura, o que propiciaria a possibilidade de produzir terras férteis para a agricultura. 


Por outro lado os estudos ao revelarem a origem antrópica desta terra , uma vez que é encontrada em locais ocupados também por sítios arqueológicos, demonstram que a ocupação indígena da floresta foi numerosa e intensa em extensas áreas de floresta, o que sugere que a floresta, pelo menos em parte, foi manejada pelos povos que a habitaram, e a habitam, desde tempos muito antigos. 
[3]

As terras pretas, junto com os  fragmentos cerâmicos e líticos dos sítios arqueológicos nelas encontrados, revelam uma história de mais de 9000 anos. Culturas de povos antigos adaptados aos ambientes florestinos, que encontraram técnicas próprias e eficientes de caça e pesca, navegação, agricultura e sistemas de convivência social. 

Fatos estes que justificam plenamente as políticas que buscam proteger os territórios e valorizar as culturas indígenas ainda presentes na região, testemunhas e registros vivos de sistemas sociais bem sucedidos na convivência com a floresta e defesa frente aos agressivos patógenos, ainda hoje não controlados (ex. malária).  

2) Com o segundo ponto quero chamar atenção para outra dimensão submersa da Amazônia:  a existência de um extenso aquífero de Manaus aos Andes, estimado em 2,5 milhões de km2 com uma profundidade de mil a três mil metros  (foram destinados para seu mapeamento cerca de 5 milhões de Reais no fim de 2010).  Esse aquífero se soma ao do Alter do Chão (que se estende do Atlântico ate Manaus), [4] melhor conhecido e mapeado, e influencia a carga e escoamento dos rios amazônicos, interferindo portanto  nos equilíbrios ambientais de superfície. 

Observo também que se trata de vasto campo de pesquisa hidrológica e geofísica, com influência no estudo do papel climático da bacia amazônica, além de ser potencial fonte de água potável para uma população (e uma indústria)  que vive às margens de rios cuja água não é potável. 

A dinâmica das águas e seus movimentos verticais (entre o subsolo e a superfície) e horizontais deveria ser melhor explorada. São raros ou inexistentes os centros de pesquisa voltados ao seus estudo. Não há, por exemplo, um instituto de hidráulica e recursos hídricos da Amazônia ocidental, equipado com tanques de provas – e equipes competentes - para estudo da dinâmica do movimento das águas e sedimentos, a exemplo do tanque oceânico instalado na COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ.

3) Quanto às ricas jazidas minerais, frequentemente mencionadas, pode se afirmar que  não estão completamente localizadas e nem dimensionadas. Sabemos também que não contribuíram para elevar os baixos índices de IDH ou propiciaram o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da região onde foram ou estão sendo exploradas ( ver por exemplo a mineração de bauxita em Trombetas no município de Oriximiná).  O que é agravado pelo fato que a exploração mineral, em muitos casos, tem sido responsável por significativos  e irrecuperáveis danos  ambientais, como no caso dos garimpos de ouro em Serra Pelada e a exploração da bauxita pela INCOME no Amapá.

Os grandes projetos de mineração não fixaram na região, em escala proporcional ao volume dos lucros auferidos, uma significativa competência técnica e gerencial dos sistemas de mineração.  

Nos investimentos programados pelo PAC para a próxima década em mineração, portos, hidroelétricas não há notícias da previsão de que uma porcentagem dos recursos será destinada a promover a consolidação da competência local de gerenciamento, manutenção das instalações de engenharia de projetos e de consultoria para a preparação de novos empreendimentos. 

A criação e fixação na região de competências locais na área de engenharia teria influência na atração e fixação de quadros em outras áreas estratégicas para o desenvolvimento da Amazônia uma vez que dificilmente se consegue atrair e formar quadros de elevada especialização em áreas restritas. 

O processo de fixação e desenvolvimento de competência local requer a formação na região e a atração de profissionais de múltiplas áreas, por vezes complementares e principalmente em áreas básicas ( física, matemática, química, geologia ) que permitem a reprodução da competência instalada (o que dificilmente ocorre nas áreas tipicamente aplicadas como as engenharias, importantes para a execução, mas lentas na reprodução).

4) O ecossistema foz do Amazonas é único no planeta pelo volume de água doce que adentra por cerca de  300 km no oceano Atlântico e pelo volume de sedimentos transportados pelas águas e que se depositam na foz.  Inúmeras espécies de plantas e animais encontraram nos ecossistemas da foz formas de sobrevivência em ambientes  salgados e doces. O estudo dos fenômenos biológicos e podológicos poderá nos levar a desvendar importantes segredos da natureza (um dos grandes desafios da agricultura é descobrir plantas alimentares que possam ser irrigadas com água salgada). 

Não há no entanto um só Instituto da Foz, nacional,  dedicado a estudar a fauna e flora e os ambientes que ocorrem nesse canto inexplorado da ‘biblioteca’. Inexplorado em termos, uma vez que a prospecção do subsolo tem sido uma exceção, revelando que ele é rico  em petróleo. Observe-se também que a França está construindo na Guyana Francesa um instituto de pesquisas biológicas, hídricas e podológicas e destina a ele importantes quantias de recursos financeiros e humanos.

      4. O  PAC não conhece o PAS

Um exemplo das ambiguidades dos interesses que cercam os investimentos do PAC em infraestrutura na Amazônia foi descrito em recente seminário promovido pelo BNDES[5], contabilizado-o como investimento do PAC ( Programa de Aceleração do Crescimento) na Amazônia: o linhão Santo Antônio (Ro) – Araraquara (SP).

Cabe a pergunta:  quem se beneficiará com este investimento? É a rede (nacional) de abastecimento elétrico que se ramifica  a partir de Araraquara (ou proximidades). São Paulo, ou o Estado de Rondônia? O IDH de Rondônia melhorará com o linhão?

Basta verificar se melhorou (em taxas acima do crescimento médio do país) nos últimos dez anos o IDH da região próxima a hidroelétrica de Tucuruí para obter a resposta.

Considerando que o consumo de energia elétrica recolhe impostos nos estados onde ele ocorre, pouca riqueza restará para a região detentora da fonte energética (água e seu desnível) onde está instalada a ‘usina’ hidroelétrica.

Pode-se também perguntar se as compensações ambientais pagas aos Estados de origem da eletricidade respondem por uma fração do valor da energia fornecida à rede de consumo, correspondente  aos royalties do barril de petróleo (para equivalentes de energia produzida) atualmente pagos aos estados produtores.

O próprio Governo deu resposta às ambiguidades das diretrizes que orientam o PAC  ao preparar, na mesma época em que ele foi elaborado, o PAS o Plano Amazônia Sustentável. No PAS se traçam diretrizes voltadas a promover um desenvolvimento da Amazônia, atento às três dimensões da sustentabilidade dos empreendimentos: social, econômica e ambiental, além da formação e fixação de recursos humanos especializados e a criação de uma infraestrutura que permita ao Estado Nacional estar presente nos povoados e pequenas cidades do interior.

Não há notícias quanto à implementação das diretrizes e programas propostos pelo PAS, mas têm sido confirmados os investimentos de cerca de 200 bilhões de reais nos próximos dez anos em obras do PAC ( principalmente hidroeletricas, portos, mineração e linhões).

Questiona-se a efetiva contribuição destas obras para elevar o IDH da  região e de seus povoados do interior ou mesmo para fomentar a pesquisa cientifica que permita decifrar os códigos inscritos nos ‘livros’ da floresta ou promover a fixação no interior de empresas e recursos humanos especializados.

Cabe aqui lembrar uma história que retrata a dificuldade de resolver o conflito entre o poder central, onde se decidem os projetos,  e a periferia amazônica.

Menciono uma célebre página do livro de Samuel Benchimol, “Amazônia um pouco Antes e além depois “ [6]  em que escreve:  ”... Como experiência pioneira a partir dos anos 60 os Bancos Oficiais dos Estados e suas Comissões de Desenvolvimento representam uma nova tendência de regionalizar e descentralizar o processo de desenvolvimento em resposta aos reclamos das unidades federadas que passaram a ter a oportunidade de construir o seu próprio núcleo de decisão política, econômica e financeira.  É pena...que o nosso projeto (de incentivos fiscais para capitalizar bancos dos Estados) apresentados na 1ª reunião dos investidores e empresários Brasileiros .... em 1966 ...foi torpedeado pelo segundo escalão hierárquico....essa derrota atrasou a Amazônia Interior pelo menos vinte anos...

A partir dessa denúncia os empresários usaram em seus projetos políticos o lema ‘não é importante quem decide, mas onde se decide’  e defenderam a ideia de criação de órgãos de financiamento regionais com poder de decisão local .

Dos reclamos do grupo de pressão formado por empresários e professores da Universidade surgiu a SUDAM, a Zona Franca e outros instrumentos de desenvolvimento da região, mas a questão do quem e onde se decide ainda não encontrou equilibrada resposta: o Fundo Amazônia tem sede  no BNDES, no Rio de Janeiro!

Por outro lado, passados quarenta anos, o que se produz na Zona Franca  ainda não responde a projetos de concepção e desenho local. Não há uma só industria que explore os produtos naturais da floresta. Os executivos das empresas instaladas em Manaus respondem às matrizes no exterior ou em S.Paulo. Nada se decide aqui.

Pergunta-se o que fariam as empresas instaladas em Manaus se os incentivos da ZF fossem suspensos? Onde estão sendo projetados os portos que serão construídos na Amazônia? Portos capazes de resistir às severas condições ambientais causados pela variação de 15 metros no nível das águas!

E a manutenção dos linhões das usinas hidroelétricas será efetuada e planejada por escritórios de engenharia instalados em Manaus, em Porto Velho ou Belém?  Quem orienta e realiza a construção dos barcos que navegam pela maior rede de rios do planeta e hoje transportam centenas de milhares de amazonenses?  Os hidroaviões, tão necessários, quem os desenharia e fabricaria?

Os reclamos de 1966 ainda são atuais, desde então novos desafios e oportunidades abriram-se para a Amazônia. Passados cinquenta anos as decisões sobre o que importa para a Amazônia ainda são tomadas longe daqui.

É um desafio promover um efetivo desenvolvimento social associado aos empreendimentos que exploram as riquezas minerais e energéticas. Acreditava-se naquela época que elevar os índices de IDH seria consequência natural dos investimentos produtivos. A previsão se revelou equivocada. A indefinição das relações entre centro e periferia comprometeram a equilibrada distribuição dos benefícios.

Por outro lado um novo portal de oportunidades abriu-se com o papel climático e geopolítico da Amazônia no planeta e sobretudo com as novas técnicas de exploração das riquezas da biodiversidade, que na época ainda não se revelavam com todo seu potencial.

A riqueza do ‘patrimônio’ genético da floresta amazônica multiplicou-se, mas a capacidade de explorá-la no interesse da ciência e para benefício do povo que aqui vive não se multiplicou com a mesma velocidade. Acelerar o crescimento é o desafio desta década. Recuperar o PAS  e temperar o PAC acrescentando - lhe um A,  de Amazônia são os desafios políticos que encontramos na mesa das negociações do papel da Amazônia no ainda inconcluso projeto de construção da Nação. Negociações locais e nacionais.

 (*) Ennio Candotti é diretor-presidente do Museu da Amazônia, em Manaus; e vice-diretor nacional do CNPq.






[1] Alfredo Wagner Breno de Almeida, Terras Tradicionalmente ocupadas, Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Manaus, PGSCA UFAM, 2008
[2]  J.M Melack, J.L.Hess  Remote sensing of the distribution and extent of wetlands  in the  Amazonian basin,  in  W.Junk et alii,  Amazonian floodplains,  Ecological Studies, Springer 2010

[3] Eduardo Goes Neves, O Lugar dos Lugares: Escala e Intensidade dasMmodificações Paisagisticas na Amazônia Central pre Colonial em Comparaçào com a Amazonia Contemporânea.  Ciencia e Ambiente 31  jul dez 2005, UFSM.
[4] Paulo Henrique Ferreira Galvão e outros, Hidrogeologia e geometria dos aquíferos das formações cretáceas Içá e Solimões, Bacia Paleozoica do Solimões, na região de Urucu, Amazonas,  Revista Brasileira de Geociências 42(Suppl 1): 142-153, dezembro de 2012

[5] Ennio Candotti,  É sustentável o desenvolvimento da Amazônia?, em  Um Olhar Territorial para o Desenvolvimento: reflexões sobre a atuação do BNDES na Região Norte do Brasil, Ed. Helena Lastres e outros, BNDES, Rio de Janeiro 2013
[6] pg. 562, Calderaro, Manaus 1977




N.E - Este texto foi escrito para o encontro do VII ENABED  ( Estudos da Defesa), realizado de 4 a 7 de agosto, em Belém.  A apresentação foi feita em mesa redonda sobre Ciência&Tecnologia e a defesa da Amazônia. 


domingo, 11 de agosto de 2013

Coronel Chico Martins

* Elson Martins

Nenhum dos Silveira, entre os mortos e os vivos, soube informar como meu pai, um agricultor analfabeto nascido em Baturité, no Ceará, tornou-se seringalista. Nem como se envolveu com a Revolução Acreana merecendo a pensão de veterano de guerra. Aldery, minha irmã mais velha (éramos 12), narrava a aventura familiar com lapsos de memória difíceis de suprir com outras fontes. A história que ouvi dela em rápidas visitas a Icoaraci, cidadezinha próxima a Belém, no Pará, onde morreu em 2006 me autoriza a escrever: Francisco Martins da Silveira foi um dos protagonistas da saga amazônica de mais de um século que gerou o planeta Acre.

João Martins da Silveira, irmão instruído de nosso pai, veio do Ceará para a Amazônia no final do século 19 estabelecendo-se no alto rio Acre – provavelmente, no seringal Empresa (hoje Rio Branco, capital do Estado) – para onde atraiu os irmãos Otávio, Francisco e José. Após a revolução de 1903 e por conta da crescente valorização da borracha, subiu o rio Iaco e abriu o seringal Potiguar que transferiu, anos depois, a Francisco e Otávio. O terceiro irmão, José, aventurou-se pelo vale do Juruá, só retornando ao Iaco décadas após. Ele e os filhos se tornaram seringueiros em Nova Olinda, seringal adquirido pelos irmãos.

O Potiguar era pobre de seringa, mas tinha solo fértil. Chico, experiente agricultor, aproveitou-se disso para produzir alimentos para os seringais vizinhos, entre os quais o Nova Olinda, que pertenceu ao abastado Alfredo Vieira. Na década de vinte, com a borracha em estado de falência, o seringalista lhe transferiu a propriedade em declínio por uma ninharia.

Francisco Martins e Maria de Nazaré, ou seu Chico e dona Lelé, formavam um casal incomum. Ele era um tipo rude, destemido, e ao mesmo tempo amoroso e honesto, que se rendia com facilidade aos fenômenos míticos e imponderáveis da floresta. Quando se dirigia ao roçado que cultivava sozinho, o que contrastava com sua condição de seringalista, imaginava encontrar pelo caminho alguns mortos a quem, embora com sobrosso, fazia questão de cumprimentar: “Bom dia, compadre”! Dona Lelé, vinte anos mais nova, carregava no semblante uma timidez indígena, atribuída à sua origem paraense; mas tinha atitudes justificadas pelo sobrenome de solteira, Marques de Andrade, de sangue europeu. Falava pouco, não se alarmava, mas aplicava um olhar fulminante nos casos de reprovação.
         
Ela não era uma matriarca de seringal como as que aparecem nos romances ou nas teses de mestrado e doutorado que tratam do primeiro ciclo da borracha (1890-1914). Lelé foi uma trabalhadora da floresta, cozinhava para seringueiros que vinham do centro da floresta para resolver problemas de aviamento ou de doença na sede do seringal, na margem do rio. Lavava e passava roupa, criava galinhas e patos, tratava dos filhos com remédios caseiros e nas horas vagas, os alfabetizava com o conhecimento do curso primário feito no Ceará. Algumas vezes, ouvi dela relatos de sua adaptação à vida na floresta. Temia as onças e as cobras ao lavar roupa num igarapé dentro da mata. Seu Chico, como tratava o marido, tinha que acompanhá-la e permanecer de cócoras no local, com um rifle na mão, até que ela encerrasse o serviço.


Dona Lelé e seu Chico

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) pegou a família unida em Nova Olinda. A borracha voltara a ter valor por conta do Acordo de Washington que criou um fundo para reativar os seringais amazônicos, e por alguns anos viveu-se a expectativa de um novo surto econômico da borracha. Mas a decisão era apenas uma contingência da guerra: a indústria norte-americana de pneus, artefatos cirúrgicos e outros produtos de látex ficou sem a matéria-prima produzida na Ásia porque os japoneses, aliados do nazismo, bloquearam o abastecimento. Daí a convocação dos “soldados da borracha” no nordeste brasileiro para protagonizar o efêmero segundo ciclo da borracha na Amazônia.
          
Eu não tinha noção do que isso representava tampouco me dava conta de que morávamos no casarão deixado por Alfredo Vieira com sinais (apodrecidos) de uma arquitetura requintada. No período da guerra, meu pai e tio Otávio viveram alguma prosperidade: o armazém se encheu de mercadorias, as pélas de borracha chegavam dos centros e seguiam rio abaixo para Manaus e Belém. O casarão, que até então não conhecia a energia elétrica, ganhou um gerador para ocasiões especiais e acolheu “extravagâncias” como biscoito e bombons europeus.

As casas aviadoras estrangeiras com prepostos em Belém e Manaus esvaziavam seus depósitos de produtos industrializados e supérfluos impondo aos seringalistas produtos não solicitados. Lembro-me de uma vitrola RCA Victor, do tamanho de um freezer horizontal, que foi desencaixotada em Nova Olinda. Chegou acompanhada de uma pilha de discos de música clássica e alguns xotes e baiões. O aparelho era impulsionado por uma manivela lateral, à qual se “dava corda” para girar o toca-discos, em cujo braço se prendia uma agulha grossa, de aço, parecendo um prego curto sem cabeça. Em pouco tempo o extravagante aparelho foi abandonado num canto da sala, sem uso, embora eu tenha ouvido Mozart e outros clássicos sem imaginar como eram produzidos sons tão belos.
            
O casarão ficava acima do chão mais de um metro, apoiado sobre esteios de maçaranduba e acapu. Tinha pé direito alto, com varanda, portas e janelas entalhadas, o assoalho desenhado com lâminas de madeira formando gregas. Uma escada metálica, de cobre, com corrimão dourado que teria pertencido a um navio naufragado dava acesso à varanda e à sala de estar.  Entre esta e o local das refeições, onde se estendia uma mesa comprida com bancos corridos, havia um escuro corredor central com três quartos de cada lado. E, lá no fundo, a cozinha com paredes e piso de paxiúba.
          
Num dos quartos à direita – que certamente teria sido ornado com colchas e rendas no começo do século 20 – meu pai amontoava folhas de tabaco para serem enroladas em molhos, como ainda hoje se faz em alguns seringais. Outro quarto era utilizado pelo velho Biu, um negro viúvo que se tornara membro da família. Ele cultivava roçado, ordenhava vacas, fazia pão de milho, cozinhava macaxeira e carregava água da cacimba para abastecer a cozinha. Sofria de uma hérnia na virilha, o que o forçava a utilizar um instrumento feito de sola para segurar os testículos. Seu quarto parecia impenetrável, dispondo de uma rede, um baú velho, calças e blusões de mescla azul estendidos numa corda. Pequenas porções de tabaco migado e um cachimbo sobre uma mesa tosca completavam o arranjo, ao mesmo tempo bucólico e estranho.
          
Sua fala era um resmungo quase inaudível, que ele complementava com gestos enquanto fixava os olhos em algo invisível. Demonstrava, entretanto, possuir audição aguçada para os sons da floresta e do rio.  Previa com dois dias de antecedência (pela batida do motor) a chegada de um batelão ao seringal. Sabia distinguir a lancha do Jorge Antônio, navegador pioneiro do Iaco, de qualquer regatão. As queixadas (porcos do mato) que reviravam seu roçado de macaxeira, e os japós, pássaros de bico grande que comiam parte do seu bananal o irritavam. Quando a família deixou o seringal ele foi junto, até o Amapá, onde morreu de velhice.
            
Imagino que o casarão no qual vivi a infância era apenas uma sombra do que havia sido durante o primeiro ciclo da borracha. Na versão do meu tempo não existia banheiro nem sanitário interno. Para o banho e a lavagem de roupa todos recorriam a uma cacimba natural localizada a 200 metros, ladeira abaixo, com paredes e cobertura de palhas de jarina. A “sentina” (sanitário) ficava nos fundos, a 50 metros, fora da cerca de arame farpado que protegia o quintal. Constava de um buraco cavado no chão em volta do qual foi construída uma “casinha” de paxiúba com um caixão no centro. A pessoa fazia suas necessidades fisiológicas de cócoras, naquele caixote fétido e ao som das varejeiras.
          
No quintal, animais domésticos e outros apanhados na floresta somavam mais de uma centena. Porcos, carneiros, patos, jacus e jacamins se acomodavam à noite debaixo do casarão. As galinhas dormiam em galinheiro, protegidas contra mucuras (gambás). Na falta da carne de caça podiam ir para a panela.  Com o mesmo objetivo criavam-se pombos misturados a nambus e rolinhas. E por dentro de casa circulavam bichos de estimação como paca, macaco, papagaio e corujas que voavam entre os caibros catando mariposas.
          
O chamado segundo ciclo da borracha foi efêmero. E tão distinto do primeiro, que as histórias e situações não cabem iguais nos relatos. Os pesquisadores bem que podiam estudar sobre a mudança ocorrida na floresta. Quem sabe iam descobrir que o “centro” e a “margem” dos seringais inverteram papéis em decorrência da desvalorização da borracha. Acredito que muitos seringalistas saíram da floresta porque não sabiam viver dela enquanto base de recursos não mercantis. É possível citar exemplos eloqüentes dessa inversão: eu, filho de seringalista, morria de inveja dos filhos de seringueiros que vinham nos visitar, percebendo que eram maduros e hábeis com as armas, falavam de bichos e plantas com detalhes e encantos que eu desconhecia.
          
Minha mãe vivia a nos alertar: “Cuidado! Tem onça rondando as galinhas e ovelhas no acero da mata”. O alerta fazia sentido. Certa noite de lua cheia, uma pintada veio buscar a porca Xandoca que estava em via de parir debaixo do casarão. Acordamos com os gritos dela, o latido incomum dos cachorros e o alvoroço dos patos e galinhas. Meu irmão mais velho, Walter, disparou um tiro de espingarda doze na agressora, quando ela tentava transpor a cerca de quase dois metros de altura com a presa entre os dentes. O animal ganhou a mata e fomos ver o estrago: além da porca mãe agonizando com a barriga aberta, restavam cerca de dez embriões de bacorinhos espalhados em poças de sangue.
          
Cresci ouvindo e até testemunhando casos trágicos ou de assombração protagonizados por seringueiros ou por meus irmãos e irmãs. Ouvia também histórias de almas penadas narradas por meu pai. Esse mundo mágico não é, percebo agora, para principiantes. Ou seja, não pode ser compreendido por quem não se entrega para fazer parte dele disposto a viver o inverossímil como fato do cotidiano. As pessoas que se adaptam a ele vivem em parelha com o perigo, salvando-se por adestramento natural. E nem sempre é o mais forte quem vence.
          
O toque de resistência, arrisco dizer, é o espírito. O espírito que se rende ao esturro da onça mais que ao confronto com o animal; o espírito que nega explicar o agouro da guariba e o espírito que se entrega ao encantamento da jiboia faminta sabendo que pode desfazê-lo com alguma magia da floresta.

N.E - Este texto publicado hoje integra uma coletânea de crônicas e artigos organizadas pelo autor do Almanacre. Como neta de seu Chico Martins, aproveitei o fato de ser agora responsável pela atualização do blog para prestar minha homenagem ao grande jornalista e pai, Elson Martins. Feliz Dias dos Pais! (Vássia Silveira) 
        


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Meu Candidato

* Elson Martins

Já sei em quem votar para Presidente da República. O escolhido se chama Francisco, mora na Itália e é argentino. No final de julho, durante a Jornada Mundial da Juventude realizada no Rio de Janeiro, ele hipnotizou nada menos de três milhões e meio de pessoas na Praia de Copacabana, com seu jeito maneiro de ser. Sinteticamente, disse que é possível construir um mundo melhor a partir de duas palavras  essenciais à democracia: “simplicidade“ e “transparência”.

A própria Prefeitura do Rio dimensionou a multidão concentrada na praia. Não estavam lá apenas os jovens, do Brasil e de outros 175 países representados no encontro; tinha também crianças, peregrinos, pessoas de todas as idades e gênero, turistas e religiosos. Essa gente toda  dormiu na areia de Copacabana, na noite de sábado para domingo, só para ver de perto e ouvir Francisco, que não se fez de rogado: desfilou entre a multidão acenando, sorrindo, abraçando e, sobretudo, abençoando.

Francisco: simplicidade e transparência para um mundo melhor

Claro que estou falando do Papa... É pecado, por acaso, desejar que ele seja candidato a Presidente da República do Brasil? Uma utopia a mais, ou a menos, não faz mal nenhum a quem já passou dos setenta e cansou das objetividades capitalistas. Aliás, nos anos sessenta e setenta do século 20, quando eu começava a me interessar por política, religião etc... outros dois papas – Paulo VI e João XXIII – aguçaram meus ânimos simplistas e coletivos. E olha que eu nunca fui, nem consigo ser, ainda, um católico fervoroso!

Acontece que o Papa Francisco encarna o político que eu gostaria de ter como opção de voto nos dias de hoje. Não importa que seja argentino, coisa, aliás, que ele tirou de letra quando um repórter da TV Globo perguntou sobre a histórica rivalidade entre os dois povos (Brasil e Argentina), principalmente no futebol! O repórter, certamente, pensou em lhe criar embaraços ao colocar a questão numa entrevista para o programa Fantástico, da emissora, mas Francisco mandou bem: “Ah, essa é uma questão já resolvida: combinamos que, sendo o Papa argentino, Deus é brasileiro”!

Desprendido e descontraído, Francisco recusou e desfez, durante o encontro, formalidades e vantagens inerentes à função que exerce como líder mundial dos católicos. Ficou à vontade para anunciar uma nova igreja e uma nova sociedade possíveis, a partir de um novo cristão. Ele quer uma igreja solidária  e ética que faça a opção pelos pobres e oprimidos do mundo, uma igreja atenta aos problemas sociais e políticos, uma igreja paciente e não preconceituosa. Neste particular, citou as mulheres, que devem exercer funções na igreja,  e os gays, aos quais os templos católicos podem acolher como filhos de Deus.

Ao mesmo tempo, o Papa recomendou a todos que se previnam contra a corrupção, a má politica, as ditaduras e as influências malignas do dinheiro e dos bens materiais que entortam a vida das pessoas.  Por várias vezes, criticou a exclusão dos jovens e dos idosos na sociedade hodierna. “São extremos aos quais é preciso ouvir  e tornar protagonistas da sociedade ética e fraterna que queremos construir num mundo melhor”. Simplicidade e transparência, segundo o sumo pontífice, são palavras básicas para a construção da democracia.

De quebra, o Papa Francisco encaixou na sua “liturgia” uma palavrinha mágica que anda esquecida, embora tenha sido essencial na formação dos jovens de todos os tempos. Ao se referir, especificamente, aos jovens da atualidade, recomendou com um sorriso maroto, seguido de emoção vermelha no rosto:  

"Sejam revolucionários”!