sábado, 17 de agosto de 2013

Revolta de Pigmeu

* Elson Martins

Eu comecei a ler revistas em quadrinhos cometendo pecado. Assim entendiam as famílias da sossegada cidade de Rio Branco dos anos cinquenta, de cultura nordestina conservadora e passagem pelo seringal como a minha. Lembro de ter cumprido penitências pelas coleções de Mandrake, Homem Borracha, Tarzan e Fantasma que escondia sob o colchão da cama. Um flagra no colégio podia resultar em suspensão ou outra constrangedora penalidade. Só aos poucos, a inquisição diminuiu até desaparecer de vez. Quando isso aconteceu - que pena! - eu já me convertera a outras leituras menos atraentes.


O Fantasma era dos heróis em quadrinhos o que mais me fascinava, talvez porque suas histórias rolavam na floresta entre índios pigmeus, uma ficção criada em cenário parecido com o da realidade que conheci na infância no seringal.

Nasci em 1939, mas conheci os quadrinhos somente em 1950, creio, quando passei a morar com uma irmã mais velha na capital. Ela me matriculou no Grupo Escolar 7 de Setembro e eu, por minha conta e risco, ingressei na “sociedade secreta” Gabino Besouro (ora, ninguém sabia que o cara tinha sido um escroto histórico!) de forte atuação clandestina nas imediações do Estádio José de Melo, do Rio Branco Futebol Clube. A GB agia ao cair da noite, com seus membros vestindo orgulhosamente uma camiseta com o símbolo do Fantasma (uma caveira), uniforme com o qual partiam para as aventuras planejadas sob uma imensa mangueira existente no cruzamento da Avenida Ceará com a Rua Marechal Deodoro.



As aventuras não passavam de brincadeiras mais ou menos inocentes, circunscritas à formação religiosa e moral do grupo. As mais ousadas, empreendidas em noitadas especiais, não iam além do seqüestro de uma lata de biscoitos do bar do Coriolano, que funcionava onde fica hoje o Shopping Miragina, ou da retirada de cartazes e fotos dos filmes em exibição no Cine Rio Branco – uma tarefa de alto risco, executada de madrugada. O risco era o técnico de projeção Dedé – que dormia num quartinho nos fundos do cinema e tinha o sono leve – acordar com o barulho das taxinhas caindo no piso de madeira da sala de projeção. Tanto os biscoitos quanto os cartazes e fotos iam para uma caverna escavada num baixio do campo do Rio Branco, também vigiado pelo Walter Felix de Souza, o Té, que, no entanto, nunca a descobriu. Fora isso, cometíamos algumas brechadas nas meninas do bairro e, raramente, acirrada guerra de baladeira com outras sociedades secretas.

Não se falava em drogas, estupros ou o que pudesse sinalizar para a violência infanto-juvenil dos dias atuais. Rio Branco era uma cidade que dormia de janelas abertas e tinha como periferia o Papôco, a Capoeira e o Bosque. Os jovens acompanhavam a banda de música da Guarda Territorial desde o quartel até a Praça do Palácio, marchando e batendo palmas. O sexo perpassava pela “sociedade secreta” de forma natural e contida, cabendo apenas alguma esperteza compartilhada.

Em algumas ocasiões, adotávamos a brincadeira do esconderijo com a participação de meninas que permitiam deliciosa iniciação à bolinagem. Apenas os mais graduados da “sociedade” participavam do ávido revezamento entre os que fingiam esconder-se e os que fingiam procurá-los. Quando a iniciação rareava – afinal, não havia tantas garotas liberadas para o esconderijo – a turma recorria ao ingênuo jogo do “tirando bolo” com as menos assanhadas.

Que saudade dos guerreiros da Gabino Bezouro, como os irmãos Pitoco e Sarará, irreverentes e destemidos; e os também irmãos Stélio e Sílvio que brigavam como malucos dando trabalho para apartar. O Sílvio gostava de meter medo na turma dizendo que adorava o satanás. Quando aconteciam tempestades com raios e trovões, o que era comum naqueles tempos, ele corria gritando com os braços abertos para o céu: “Anda, meu satanás, mostra tua força e me fulmina!”.

A debandada era geral.

Outro maluco de pedra era o “Mão”, que ao se irritar, virava o próprio satanás evocado pelo Silvio. Já eu, o Zé Henrique e o Neguinho, vulgo Rock Hudson, formávamos a ala moderada, que se destacava no planejamento das ações da GB. Eu não tinha físico para sair no braço com ninguém. Quando algum outro grupo nos provocava, assumia resignadamente minha vocação de pigmeu.

Pois foi esse sentimento, do pigmeu que investia na paz com o inimigo, que me inspirou este texto. Aquele povo miúdo que conduzia os “buanas” aos tesouros da floresta me enternecia e irritava ao mesmo tempo. A história começava sempre com um avião monomotor em meio a um intenso temporal, rodopiando e caindo no meio do mato. Em seguida, apareciam os nativos que resgatavam os ocupantes do aparelho sinistrado e os levavam para a aldeia oferecendo hospitalidade. Como leitor, eu sabia que o Fantasma logo ia aparecer e salvar o tesouro, mas a indignação se repetia de história em história.

O pior é que, após 40 anos de jornalismo na Amazônia, começo a pensar que tenho repetido à exaustão o gesto dos pigmeus. Só no Acre, passei 16 anos (75 a 91) como repórter de conflitos entre nativos e forâneos, trabalhando para os jornais O Estado de S. Paulo, Folha do Acre, Gazeta do Acre, O Rio Branco, Varadouro e Repiquete, sem falar nos “frilas” para revistas nacionais. Disparava setas envenenadas sem a ajuda do Fantasma, e sem perceber que os “buanas” que buscam o tesouro do Acre não são os mesmos das histórias em quadrinhos; ou que tesouro sagrado cobiçam ainda hoje.

Só agora, sob novas e diferentes ameaças à Amazônia vejo como reluzem os depoimentos, os relatos, as histórias, as imagens que o povo da floresta passa para os invasores da floresta: tudo fácil, tudo grátis, pilhas de papéis, fotografias, fitas gravadas, filmes, emoção e lagrimas. Tesouro recebido com beijinhos no rosto, abraços públicos e falsos que se extinguem nos espaços climatizados e distantes.

E agora que precisamos tanto deles, os heróis dos quadrinhos ficaram para trás no júbilo da infância... E por onde andam os heróis em carne e osso da Gabino Besouro? Cadê o Sarará, o Pitoco, cadê o Rock Hudson?


N.E
- O texto acima foi publicado originalmente no número 10 (dezembro de 2000) da extinta revista outraspalavras, publicação que circulou no Acre de outubro de 1999 a dezembro de 2002. 


Um comentário:

  1. Elson Martins, um grande jornalista. Um baita companheiro da Folha do Amapá, meu sincero abraço,
    daniel do www.saitica.blogspot.com

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