segunda-feira, 23 de março de 2015

Homens e rios se parecem!

* Elson Martins

Iaco, o rio da minha infância (Foto:Sérgio Vale/Secom)

Um menino de Tarauacá de nome Leandro Tocantins se tornou escritor e historiador premiado. Lá pelos anos 30, cunhou a expressão “o rio comanda a vida” que definiu, poeticamente, a descoberta e ocupação do Acre. Também descreveu a saga dos homens e mulheres que nos idos de 1877 escaparam da seca do Nordeste para mergulhar no dilúvio amazônico.

Um outro menino, nascido na França do século 19, também se deixou inspirar pela relação com o rio de sua comunidade. Filho de sapateiro, Gaston Bachelard se tornou filósofo e surpreendeu ao escrever o livro A Água e os Sonhos só com poemas. Num dos textos ele afirma:

“Meu prazer é ainda acompanhar o riacho, caminhar ao longo das margens no sentido da água que corre, da água que leva a vida à povoação vizinha”...Segundo o cientista brasileiro Antônio Carlos Diegues, que o estudou, Bachelard “considerava a água doce a verdadeira água mítica”.

Bom, eles - homens e rios, - se encontraram na Amazônia com boa dose de misticismo. Se conheceram, se apalparam e teceram vida nova num espaço selvagem e lúdico.  Por isso surgiu o Acre das águas e da floresta, por onde fervilham, por alguns séculos,  índios e carius,  negros e pardos, borracha e sucuris, botos e iaras...

Quando criança, eu também tive a felicidade de viver às margens de um rio, o Iaco, e me envolver com seus mistérios. Sabia da morada de uma sucuri no poço fundo em frente da nossa casa; acreditava que em noites de festa, dançarinos  vestidos de branco saiam de  suas águas; e tinha medo que a Iara aparecesse, até imaginava que o rio tinha um espírito.

Através dele, do rio, eu marcava as estações: porque no verão andava por suas praias desertas catando ovos de tracajá; e no inverno, quando me recolhia temeroso, queria ver de perto o que descia das cabeceiras: melancias, troncos e arvores inteiras arrastados pela correnteza.

O Iaco é um rio estreito e fundo, de barrancos altos, portanto perigoso! Mas o que acontecia de novo no seringal passava por ele. De cima e de baixo vinham lanchas e canoas transportando cargas e gente com novidades de uma civilização ficava distante e desconhecida. Dava pra ouvir com dois dias de antecipação o zumbido de um batelão se aproximando.

Um dia, fui entregue ao dono de uma embarcação para que me lavasse do seringal para a cidade (Sena Madureira) onde morava uma irmã casada. Foi uma experiência doída seguir com os olhos o movimento revoltoso e sem retorno das águas. As redemoinhos, o eco do motor nas margens, pessoas estranhas acenando, o que podia alegrar, mas assustava, porque eu estava sendo arrancado do meu pequeno e amado mundo.

Só com a maturidade entendi melhor o que dizem Tocantins e Bachelard; e passei a ver como aquelas estradas líquidas e sinuosas são fundamentais pro corpo e pra alma das pessoas que vivem na Amazônia. Abrem horizontes, permitem negócios, regam as várzeas, alimentam sonhos.

Ah! Mas ando desanimado porque vejo como as pessoas traem a amizade antiga com esses rios de água mítica. Esquecem das vantagens usufruídas e os maltratam: com lixo, exploração excessiva de seus recursos, destruição das matas ciliares...Ainda se zangam quando a natureza reage com enxurradas, quem sabe pedindo socorro, agonizando!

Até meados do século passado a relação dos acreanos com esses rios incluía troca, zelo, muito respeito entre ambos. Agora, homens e rios se mostram apartados, se estranham e se agridem mutuamente. Como se a sobrevivência de ambos não dependesse de uma reaproximação.

segunda-feira, 16 de março de 2015

A visita da linda senhora!

* Elson Martins

Foto despedida: Zezinho Yube, Carol, Dedé, Concita, Filomena, Malu, Valéria, Irizete e Camila (Foto: Elson Martins)


A médica sanitarista Filomena Vagueiro adora “vagar” pelo mundo. Culpa da mãe, Ana, que em tempos quase remotos se aventurou desde Atrás dos Montes, sua terra natal em Portugal, até o Rio de Janeiro, sozinha, causando aflição ao namorado Francisco Antônio que saiu no encalço e a encontrou – felizmente! - na cidade maravilhosa, para uma união também maravilhosa e duradoura. Ouvi da filha que Ana, aos 94, cuida de uma horta em sua residência, nos Estados Unidos, e ainda dança o “vira”, gracioso ritmo português, com energia e graça. 

De modo parecido, Filomena nunca para: transita por Brasil, Portugal, Mé- xico, Estados Unidos... Vai e vem com a mesma ternura, inteligência e simpatia da mãe. Em 1985, “sem ver pra quê”, acompanhou o namorado cineasta Tião Fonseca que veio filmar um documentário sobre educação indígena para a Comissão Pro-Índio no Acre. E desde então, nossa terra ficou colada no seu coração. 


Tião, cineasta e fotógrafo (ver box), foi o cara que fez a foto histórica (muito divulgada, embora sem o devido crédito)em que a ex-senadora e ex-candidata a Presidente da República pelo PSB, Marina Silva, comanda um “empate” na Fazenda Bordon, em Xapuri, em meados dos anos 80. Interessante foi a argumentação dele para arrastar Filomena pro seu projeto: precisava de uma auxiliar de Som nas filmagens. Não importava que a namorada não tivesse experiência no ramo. Ainda bem que não lhe faltaram outros trabalhos na sua profissão mesmo, junto aos indígenas. 


Os dois ficaram por aqui até 1990, tempo suficiente para gerar Savana, uma bela acreana que se tornou jornalista e cineasta... nos Estados Unidos. Depois, os dois seguiram rumos diferentes.


Filomena é uma mulher bonita, loira, de olhos azuis. Mas o que mais atrai nela é a amorosidade, a delicadeza, a simpatia, além de uma invejável e serena atitude com referencia a tudo: trabalho, politica, amizade. Sem falar que se revela sempre imprescindível como militante em favor dos pobres e dos oprimidos. Agora mesmo vive em Connecticut (EUA) trabalhando junto às parteiras tradicionais, uma categoria muito prestigiada por lá. “Os norte-americanos valorizam muito os partos naturais feitos com parteiras treinadas”- informa. 


Fazia mais de 20 anos que não vinha ao Acre. Mas sempre, de onde esteja, acompanha através da Internet o noticiário local. Quando flagra um amigo acreano no Facebook, entra no papo feliz da vida! E promete visitas. Foi assim com a amiga Dedé Maia, irmã da Concita, mãe da Patricia, tia da Tainá, parceira de muita gente e de muitas lutas junto aos povos indígenas. E foi assim que aconteceu o encontro de quinta-feira no conjunto Jardim de Alá, em Rio Branco, regado a vinho e cerveja. 


A festa aconteceu à noitinha na casa da Patricia, uma casa acreana com certeza, com a presença de Elson e Irizete; a Nalu, a Carol, a Camila e a Valéria, todas ligadas à Comissão Pró-Índio; o cineasta indígena Zezinho Yube; o txai Terri Aquino, antropólogo amigo dos índios; a Concita, atual secretaria da Mulher, de emoções explícitas; e uma meia dúzia de netos lindos. 


Filomena viajaria na mesma noite para São Paulo, e de lá para São Francisco, nos Estados Unidos, onde mora com a mãe. Estava muito feliz entre tantos amigos, tinha cumprido a promessa de visita-los e isso foi celebrado com estilo. Seus olhos azuis brilhavam, as histórias do passado, do tempo em que andou pelas aldeias acreanas a alegravam. As fotos estão aí para provar. Foi tão bom revê-la, Filomena! Volte sempre!
Terri (em pé), Tainá, Concita, Filomena, Patrícia,
Dedé, e Irizete  (Foto: Elson Martins)


Os netos também pousaram para o álbum-família (Foto: Elson Martins)

Documentarista excepcional



No ano passado, ele também revisitou o Acre e foi até as aldeias indígenas do Rio Jordão, no município de Tarauacá. Eu o conheci desde a época em que ele e Filomena viviam juntos. Conheci a linda Savana pequenininha e costumava recebe-los em minha casa pra bebericar e conversar.

Em 1983 ou 1984, decidimos realizar um documentário em Cruzeiro do Sul. Eu tinha escrito um roteiro sobre a atividade do casal João Alberto- Janete Capiberibe que atuava na Sub-Secretaria do Desenvolvimento Agrário no Vale do Juruá. Capi, que ao retornar do exílio não conseguia viver em paz em sua terra, o Amapá, por conta de um governador da ditadura (Anibal Barcellos) que se mantinha no poder do Estado e continuava perseguindo os comunistas, indagou se havia alguma chance de vir trabalhar no Acre. Com a ajuda do então secretário do Desenvolvimento Agrário, Antônio Carbone, conseguimos que o governador Nabor Junior o nomeasse sub-secretário com sede em Cruzeiro do Sul.

Em pouco mais de um ano de atividades, Capi (que se elegeu governador do Amapá em dois mandatos e hoje é senador do PSB) e sua eterna companheira Janete Capiberibe (deputada federal em quarto mandato) criaram 21 sociedades agrícolas na base da ideologia, sem dinheiro e com pouco prestígio politico. Curiosamente, seu principal braço direito era o funcionário da sub-secretaria, hoje prefeito de Cruzeiro do Sul, Wagner Sales.

O roteiro que escrevi cruzava duas histórias: a da vida difícil dos agricultores cruzeirenses, que precisavam de mais apoio para desenvolver sua produção; e do próprio casal, Capi-Janete, que há mais de 10 anos sofria perseguições, prisão e tortura psicológica que abalavam seus ideais. No documentário que acabei dirigindo por insistência do Tião Fonseca, e ao qual dei o título de “Agricultura sem Diploma”, procuramos mostrar que os dois ideais (dos agricultores e do casal socialista) se encontravam por conta da ideologia e do potencial humano da sobrevivência. Ainda faço uma ponta no filme.

Acho que o resultado foi bom, embora tivéssemos que nos conter nas críticas que incomodassem ao financiador do trabalho: a própria Secretaria do Desenvolvimento Agrário, que forneceu passagens, carro para deslocamento no meio rural, algum dinheiro para os realizadores. Não sei se o Carbone mostrou sua cópia final ao governador Nabor Júnior.


sexta-feira, 13 de março de 2015

Ódio aos pobres do Brasil!

* Elson Martins


Leonardo Boff e a crítica à demonização do PT pelas elites 

Eu não embarco na demonização do PT, orquestrada pelas elites do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, em conluio com a mídia rica dessas regiões. A campanha odiosa agrada aos filhotes da ditadura civil-militar (1964-1985), saudosos da truculência e da corrupção que a dita cuja instituiu no país naqueles anos de chumbo. Concordo com o filósofo e escritor Leonardo Boff, para quem, por trás da orquestração feroz contra o Partido dos Trabalhadores, o que existe mesmo é o “ódio das elites contra o povo brasileiro”.

Num artigo publicado terça-feira (10) no Página 20, Boff lembra aos leitores uma pesquisa feita por Márcio Pochmann em seu Atlas da Desigualdade no Brasil que aponta esse absurdo de dado: “45% de toda a renda e a riqueza nacionais é apropriada por apenas cinco mil famílias extensas”. Ou seja, num país de 200 milhões de habitantes, o maior e mais influente do sul do continente, todos os bens e vantagens são usufruídos por uma ínfima parcela de nababos. É exatamente essa minoria luxenta que alimenta a escória da classe política e do empresariado, bem como a mídia que a aplaude.

Os dirigentes políticos, os militares, o empresariado e a intelectualidade burguesa, sobretudo de São Paulo, parecem-me em parte suspeitos. Porque estão acasalados com os piores segmentos da sociedade e agem criminosamente com os menos informados – por isso vulneráveis –, induzindo massas populares a manobras políticas perversas. Para o que contribuem as redes sociais na internet, democráticas, mas ao mesmo tempo anárquicas e principalmente desqualificadas.

O jornalista Paulo Nogueira, fundador e diretor do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo, em novembro do ano passado (portanto após as eleições de outubro), assinou o artigo “O odiojornalismo...”, em que fornece exemplos de como a mídia comprometida com o grupo derrotado na disputa presidencial toma as dores das elites contra a escolha soberana do povo:

“O ódio que a revista Veja semeia com tanta obsessão” – diz ele – “se refletiu em manifestações criminosas, nas redes sociais, contra os nordestinos. Diogo Mainardi, o primeiro ‘odioarticulista’ da revista, há poucos dias chamou os nordestinos de ‘bovinos’ num programa de televisão que vai se tornando igual à revista, o Manhattan Connection”.

Já o blogueiro da Veja Augusto Nunes, “o gênio cosmopolita de Taquaritinga”, segundo o articulista Nogueira, “acha que está sendo engraçado ao tratar Lula como o ‘presidente retirante’ e Evo Morales como ‘índio de topete’”. Paulo Nogueira entende que Diogo Mainardi, que também andou falando mal do Acre tempos atrás, espalha “sua má fé e falta de princípios jornalísticos” na grande mídia brasileira: “Mainardis e derivados infestam jornais, revistas, rádios, tevê”.

O “odiojornalismo”, por princípio intolerável, não pode, naturalmente, ser patrocinado pelo dinheiro público: “O anunciante privado que quiser prestigiar este tipo de pseudojornalismo tem inteira liberdade para fazer isso. Mas o dinheiro público não pode ser torrado numa coisa tão predadora”.

O que estamos vendo (lendo) nestes dias é mais odioso. A imprensa de um modo geral procura convencer a sociedade brasileira de que o PT é o partido vilão da República e causa de todos os males, ao mesmo tempo em que minimiza os malfeitos de outras siglas mais envolvidas no escândalo da Petrobrás. No bojo da campanha antidemocrática, a presidente reeleita Dilma Rousseff é condenada antecipadamente pela mídia elitista, enquanto as redes sociais acenam para a ditadura civil-militar que a torturou no passado.

Na verdade, alguns nomes nacionais do PT estão a merecer punição no caso Petrobrás – isso a justiça vai decidir – mas, certamente, eles não são os patifes principais dessa história. Enquanto isso, é bom que o povo brasileiro se previna contra o ódio criminoso que ameaça sua crescente importância na vida política do país.

domingo, 1 de março de 2015

Quem avisa, amigo é!

* Elson Martins

Pela primeira vez na história de Xapuri, as águas do Rio Acre invadiram a Igreja (Foto: Kenny Roger/arquivo pessoal)

Comece a se instruir sobre o produto vital chamado água, do contrário, vai ter que aprender a conviver com miragens. O momento é propício, pois estamos em pleno inverno amazônico testemunhando alagações jamais vistas na região. Tá vendo Xapuri? Quem diria que as águas do pacato Rio Acre subiriam até 18 metros, chegando a inundar a estátua do santo Sebastião na praça do comércio e alcançar o altar da igreja, muito mais acima?

A doutora em engenharia ambiental (também bióloga e, nas horas vagas, hidróloga e meteorologista) Vera Reis, professora da Uninorte e técnica da Secretaria do Meio Ambiente, me disse quarta-feira passada (25) que tudo pode acontecer daqui para frente por conta da “variabilidade climática”. Ou seja, no que diz respeito ao clima, o mundo está virado de ponta-cabeça.

Aqui, estamos vendo o nível dos rios subir, o governo socorrer os desabrigados, muita gente perder tudo que tem, alguns pilantras rezando por mais chuvas e trovoadas só pra aparecer… Mas isso tudo é “tiquim”, se comparado com o que vem ocorrendo em outras partes do mundo. Aliás, o xerife do planeta, Estados Unidos, já tem previsão (punição) anunciada: a partir do ano 2050 vai entrar numa mega-seca milenar; e a Califórnia, do “exterminador do futuro” Arnold Shwarzenegger, será um dos estados atingidos.

Convém recapitular: a maior parte da água do nosso planeta (97%) está nos oceanos e é salgada; uma pequena quantidade (2%) fica nas geleiras, com acesso caro e difícil; um mínimo (1%) serve para consumo humano. Da água potável superficial disponível, a porcentagem maior (80%) está nas regiões menos habitadas, como na Amazônia; enquanto a menor fica em regiões mais habitadas onde as pessoas sofrem com seca e racionamento. Na verdade, 96% clamam por mais água.

Veja só o quanto o produto água é vital: O ser humano pode passar 50 dias sem comer, mas não consegue passar 5 dias sem água.

Durante a reunião da SBPC em Rio Branco, em junho do ano passado, juntei uns livrinhos preciosos sobre mudanças climáticas, escritos por gente inteligente que vive debruçada sobre o assunto. Um deles, o TOMO I do GEEA (Grupo de Estudos Estratégicos da Amazônia), apesar da capa austera, tem informações convincentes (algumas assustadoras) sobre as mudanças do clima no planeta, notadamente, no planeta Amazônia. Vários pesquisadores assinam textos, entre eles Philip M. Fearnside, um norte americano que vive há mais de 40 anos em Manaus como pesquisador do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), contribuindo para o conhecimento do ambiente. Dele reproduzo este trecho:

“O efeito estufa é uma ameaça séria para o mundo inteiro, e o Brasil, inclusive a Amazônia, é um dos lugares onde espera-se que os impactos sejam mais severos se a emissão de gases de efeito estufa continuar incontrolada. É então necessário reduzir a emissão global de todas as fontes, independentemente se elas contam como “emissões diretamente induzidas pelo ser humano”. Isso é responsabilidade de qualquer país em particular.

Segundo Fearnside, “simulações indicam que um ponto crítico seria alcançado se mais de 40% da floresta original fosse derrubada, o que conduziria ao avanço da degradação no resto da floresta”. Mais a frente ele esclarece: “Cada árvore que cai aumenta ligeiramente a probabilidade de que serão iniciados ciclos viciosos (retroalimentações) irreversíveis que destroem a floresta restante.” Finalmente, adverte: “Este é um risco que o Brasil e o mundo não podem correr”.

A bióloga Vera Reis chamou a atenção, na conversa que mantivemos na quarta-feira, para a necessidade de todo mundo plantar arvores, pelo menos uma por dia, a começar pelo quintal de casa. Ensinou que cada árvore grande da Amazônia lança mil litros de água por dia na atmosfera, em forma de gases, possibilitando a formação de novas chuvas.

Quer dizer: floresta, água e clima estão juntos, constituem um sistema integrado que realimenta o mundo natural do qual não podemos prescindir, se quisermos manter uma vida saudável.


ÁGUA: o Brasil a descobre** 

Lúcio Flávio Pinto

O suprimento de água potável no Brasil é uma calamidade pública. Talvez o impacto atual, especialmente em São Paulo, consiga mudar esse panorama. A conta do descalabro será cobrada de qualquer maneira e agora os maus administradores públicos já não contarão com o alheamento (em alguns casos, ignorância) da sociedade.

Gestão de água deverá ser a nova qualificação profissional requerida pelo mercado. Não uma gestão fracionada, esgotada em cada especialidade. Uma gestão multidisciplinar. A sociedade precisa estar bem informada (e formada) para não deixar mais que um assunto de tal gravidade seja conduzido apenas pelo governo. O chamado controle social é indispensável. Na Amazônia, que abriga a maior bacia hidrográfica do planeta, essa deve ser uma função de Estado.

Não são apenas os rios voadores que migram do norte para o sul: é também a energia, extraída dos cursos d’agua e conduzida por longas e caras linhas de transmissão. A Amazônia tem sido apenas a base física desse processo. As decisões sobre onde, como e para quem destinar essa energia são tomadas fora da região e ignorando-a. Aos nativos cabe apenas as rusgas da resistência, exercidas através de manifestações de protesto que paralisam ocasionalmente as obras e retardam o seu cronograma físico e financeiro. Mas não as inviabilizam. Nem, eventualmente, modificam seu perfil.

A Amazônia é província colonial para todos os usos da água. Mas não inevitavelmente tem que ser assim. Essa função é uma exigência de entidades mais poderosas, dentro e fora do país, que precisam de muita energia para sua produção. Tal premissa elide qualquer consideração que ameace essa demanda. Mas a posição amazônica podia estar melhor exercida se pudesse se consolidar com os conhecimentos e as informações adequadas.


** Trecho extraído de um texto maior publicado no Jornal Pessoal, de Lúcio Flávio Pinto, edição n. 578, primeira quinzena de Fevereiro de 2015.