quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Com cupim e com afeto

*Elson Martins

Em Maio passei maus momentos no Hospital Santa Juliana, de Rio Branco, internado numa enfermaria com broncopneumonia. Fiquei pendurado num frasco de soro durante uma semana, durante a qual foram injetados antibióticos e outros remédios numa veia do braço direito. Apesar do atendimento médico correto, ao receber alta saí cambaleando, sem força e sem apetite; e demorei mais de 15 dias para me sentir vivo novamente.
A ressurreição completa só aconteceu com a ajuda de um lambedor de “cupim vivo”, receita acreana contra pneumonia que eu desconhecia. Do cupim, o que sabia até então é que destrói livros, fotografias e filmes de celulose com assustadora eficácia (ler box abaixo). Há três décadas, pelo menos, sofro com seus ataques ao acervo que cultivo desde 1975 sobre os conflitos socioambientais do Acre.
Por um acaso feliz, no local onde trabalho (Secom) tem uma jovem jornalista que se preocupou com minha saúde. E por outro acaso, também feliz, ela tem uma avó que me ofereceu o lambedor milagroso. Elas se tornaram minhas amigas salvadoras.
Márcia, a neta, tem 22 anos; a vó, Maria de Nazaré Moreira Nunes, Bia para os íntimos, tem 64. Em comum, possuem olhos asiáticos, são afáveis e valorizam as tradições provindas da floresta. Domingo passado nos encontramos num almoço patrocinado pela Andrea Zílio, secretária de comunicação, e mantivemos uma conversa sobre cupins. Bia não se fez de rogada para ensinar a preparar o lambedor:
-É simples: basta ferver por meia hora, com água, um bom pedaço da casa do cupim com os insetos dentro, vivos. Em seguida, coar a mistura em pano leve (murim); e no líquido coado, adicionar meio quilo de açúcar voltando a ferver até o ponto de mel grosso. Pronto: toma-se três colheres das pequenas (de chá) ao dia.
Bia descende de família tradicional de Sena Madureira, município onde nasceu e permaneceu até os 18 anos. O pai, Raimundo Moreira Cavalcante, morou em vários seringais dos rios Caetés e Iaco; já a mãe, cujo nome Porcina lembra personagem de novela, admirava as habilidades do marido e repassava aos filhos parte do seu conhecimento. “Meu pai gostava muito do mato, conhecia tudo quanto era planta e raízes; foi seringalista, mateiro e curandeiro” – informa Bia.
Ao se transferir para Rio Branco, Bia fez curso de enfermagem e passou a trabalhar na Fundação Hospitalar do Estado, onde ficou 30 anos como auxiliar de operações cirúrgicas até se aposentar.
Na relação entre Marcia e a avó transparece a existência de algo excepcional na história dessa família: a diferença de quase meio século na idade das duas, por exemplo, não as impediu de olhar na mesma direção com solidariedade e afeto. Bia, aliás, vê a neta como “um presente que Deus me deu” !
Dúvida – Bia não explicou, mas presumo que na segunda fervura do lambedor colocou alguma pitada do cupim vivo! Digo isso porque percebi, de um dia para o outro, no copo de plástico com a porção recebida, a presença de alguns bichinhos se arrastando pelas paredes internas. Claro que fiquei intrigado: como sobreviveram a tanta fervura? Não sei, mas isso me convenceu de que os cupins possuem alguma propriedade resistente e medicamentosa.
Ao vê-los misturados ao mel, num esperneio sobrenatural, apelei para a abstração para não repugná-los. Primeiro, porque o risco maior era a pneumonia. Mas tinha também algum sentimento de vingança: afinal, eles não estavam comendo meu acervo? Pois agora eu…
Brincadeira à parte, o que vale mesmo é valorizar os remédios advindos de uma vivencia secular na floresta. No caso, um produto da tradição acreana que precisa ser explicado pela ciência. Nos dias atuais, 80% da população do mundo utiliza produtos que se originam de plantas medicinais como tratamento e prevenção de doenças. Cerca de 25.000 espécies são usadas por tribos indígenas e comunidades amazônicas. Mas a ciência conhece menos de 1%, ainda, da riqueza que existe na natureza.
Meu pai, como o pai da Bia viveu meio século nas matas do rio Iaco, e também conhecia lambedores e unguentos com os quais socorria os filhos na hora das doenças graves do seringal. Lembro que em noite de lua cheia ele colocava no quintal, ainda cedo, uma bacia de gomos de cana Caiana descascados, e nos acordava à meia-noite para chupá-los. Era remédio contra a Coqueluche. Na cozinha, junto ao pote de água de beber, tinha um copo de osso aproveitado do gogó do Capelão (o maior macaco da Amazônia) pra gente usar sem cerimônia contra a tosse de um modo geral.
Valeu, Bia e Marcia! Estou alardeando a história do lambedor na esperança de que mais pessoas se sintam estimuladas a falar de suas ricas experiências de vida nas entranhas da floresta.

Realeza protegida

Os isópteros (cupins), conforme li num site de produtos inseticidas, se organizam numa sociedade de castas onde cada integrante possui uma função no ataque a propriedade e aos bens, sejam móveis ou imóveis. Eles se multiplicam em colônias a partir de um casal com um rei e uma rainha, cujas únicas funções são acasalar e produzir ovos. A rainha (bem protegida) vive de 25 a 50 anos.
Com uma vida tão longa (para um inseto), podendo botar milhares de ovos ao ano, imaginem quanto essa família real vai crescer tendo cupins-operários para cuidar dela! Após saírem dos ovos, em duas semanas, os bebes-cupins assumem posição nas castas, desenvolvem órgãos sexuais e asas, e a um sinal da natureza deixam a colônia para iniciar novos focos de ataque.

Respeitem nosso gentílico!

*Elson Martins

“Não somos um povo perdido, sem chão, mas uma gente heroica que escolheu sua pátria, assim como seu gentílico. Então, sejamos altaneiros em defesa do nome que designa às pessoas nascidas sob o brilho do sol, da lua e das estrelas que ornamentam o céu do Acre”!
A afirmação lapidar está no artigo da professora e doutora em Língua Portuguesa Luísa Galvão Lessa Karlberg, e foi publicado no jornal A Gazeta de 24 de junho passado. Alguém precisava ter escrito isso, e que bom que foi ela, porque seu currículo e certidão de nascimento (nasceu nas cabeceiras do Igarapé Humaitá, afluente do rio Murú, distante 8 dias de barco da cidade de Tarauacá) bastam. O currículo é mais que suficiente para desbancar os filólogos que posam de sabidos, mas elegem Tiriricas e hipopótamos para nos representar no Congresso Nacional.
No Novo Acordo Ortográfico que os “sabidos” propuseram em 2009 ficou dito e escrito que nós, nascidos no Acre, não somos acreanos, mas acrianos com “i” no lugar do “e”. E desde então um bando de tolos e tolas se apressam em cumprir a nova regra ortográfica ainda em discussão. Vejam o que diz a muruense recém-eleita presidente da Academia Acreana de Letras:
“Um gentílico não se muda por força de Acordo, Decreto, Lei. Um gentílico pertence à população do lugar, é nome sagrado que se guarda como tesouro raro, que dá voz ao adjetivar um povo”.
Do alto de um currículo invejável, Luísa Lessa lembra autores consagrados que ditaram rumos seguros para o trilhar de um idioma. Um deles é Charles Bally, para quem uma palavra torna-se usual em duas oportunidade principais: 1) quando designa algo indissoluvelmente ligado à vida de um grupo linguístico; e 2) quando se dá a qualquer membro do grupo linguístico a impressão de que isso não se diz assim, isso deve ser dito assim, isso sempre foi e será dito assim. E mesmo que tais assertivas contradigam a expectativa de constante evolução da linguagem, elas se constituem em realidade absoluta, sem a qual seria impossível descrever um estado de língua.
Bom, nossa linguista ensina que no caso acreano é fundamental olhar dois lados: o histórico e o linguístico. “O histórico assegura a manutenção de acreano, pela consagração do uso da forma ao longo de 188 anos. Do lado linguístico, deve-se considerar que o próprio Acordo está repleto de concessões ou exceções que permitem dupla grafia, palavras com acento agudo ou circunflexo, palavras com consoantes mudas, entre as muitas quebras de unidade entre o cânone europeu e o brasileiro”.
Como não sou versado em letras, muito menos em acordos ortográficos, desde 2009 venho adotando regrinhas intuitivas e básicas para perceber o que está por trás da mudança imposta ao nosso gentílico. Primeiro, considero que quem aceita escrever acreano com “i” é um desalmado, um desavergonhado que não se importa de abaixar as calças para quem se diverte ao colonizar os fracos.
A doutora Luísa Lessa dá uma enorme lição a esses fracos: fala como cientista do nosso idioma e, ao mesmo tempo, como acreana dos igarapés, dos grotões e dos cipoais, como aqueles que nos anos 1970 e 1980, chamados de sub-letrados, se organizaram para defender o Acre, suas florestas e seu povo transformando o estado numa referencia global de sustentabilidade. De outra maneira, mas com o mesmo efeito do artigo, eles disseram não aos agressores que queriam derrubar e queimar as florestas, a história, a cultura e nossas tradições mais caras.
É a doutora Luísa Galvão Lessa Karlberg quem afirma: “Acreano é o gentílico amazônico do Acre. E nesse sentido, nenhum Acordo é mais imperioso que os costumes, a história, a tradição do lugar”.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Não índios ameaçam reserva Apurinã

*Elson Martins

Aldeias Apurinã de Boca do Acre, no vizinho Estado do Amazonas, mesmo demarcadas pela Funai estão sendo invadidas por fazendeiros e madeireiros da região. Na reserva do Km 45 da BR-317, de 32 mil hectares, onde vivem 19 famílias com 200 pessoas, a derrubada da floresta para vender madeira e abrir pastos para o gado virou rotina, e conta com a cumplicidade crescente de indígenas. A estratégia dos invasores é casar com mulheres indígenas e passar a morar na aldeia introduzindo novos hábitos e preferencias culturais. Na margem esquerda do Rio Acre, no fundo da reserva, os madeireiros avançam ameaçando destruir os “barreiros” de caça. O Estatuto do Índio vem sendo descumprido o tempo todo, mas a Funai não liga!

Quem faz a denúncia é Manuel Apurinã, de 67 anos, uma velha liderança do Km 45 (BR-317) que veio a Rio Branco com a mulher, Raimunda Cruz, a tratamento de saúde, mas também procura por alguma autoridade que possa ajudar a salvar seu povo. O casal tem 11 filhos e 50 netos, e sobrevive a uma longa história de luta contra os não índios. Nos anos 70 sofreu ataques violentos do grileiro João Sorbile, o ”cabeça branca”, que com a ajuda de policiais e jagunços vindos de Manaus queimou seu barraco, fuzilou animais de criação e obrigou a família a fugir pela mata com os filhos pequenos, doentes de sarampo.

Manoel Apurinã e Raimunda Cruz temem pela perda da identidade indígena na Reserva Apurinã – Fotos: Elson Martins

Grilagem e esperteza


A agonia dos apurinã da BR-317 começou em 1972, quando o aventureiro Sorbile chegou a região dizendo ter comprado parte do seringal Aripuanã tradicionalmente ocupado pelos indígenas. Com a ajuda do cartório e da Prefeitura de Boca do Acre, o grileiro esticou 5 mil ha que dizia ter comprado, até 300 mil ha, invadindo terras indígenas do Km 45. Ele formou um latifúndio que retalhou em pequenas parcelas e vendeu a pequenos colonos do leste e do sul do país. Quando estes chegaram, com suas famílias, trataram de ocupar a terra entrando em conflito com os apurinã.

Na época, o lider José Miranda Apurinã explicou como o grileiro Sorbile agia:


“Ele chegou por estas terras com três mudas de roupa, 60 mil cruzeiros (cerca de 6 mil reais hoje) e uma camionete C-10 emprestada ou roubada. Só sei que o dono veio buscar o veículo. Ele chegou prometendo construir 40 casas com assoalho de tabuas, cobertas de zinco, tudo feito carreirinha como na cidade pra nós morar. Daí ele foi agradando o pessoal com um quilinho de açúcar, um pouco de café…acabou construindo a casa dele do lado. Então começou a abrir caminho para dentro da mata e cresceu o bicho lá, querendo ser dono de tudo” (declaração feita ao jornal Varadouro, edição de dezembro de 1981).

Na outra ponta, um dos colonos recém-chegados do Paraná, Plinio Bertoldo, já contrariado com o que viu, declarou: “Eu já vi essa estrada de Boca do Acre a Rio Branco asfaltada (na verdade não tinha asfalto, mas muita lama), em fotografia, na cidade de Cascavel onde eu morava. Nós viemos do Paraná por causa da propaganda que faziam lá e por incentivo do governo. Nós tínhamos 6 alqueires, aqui temos 150. Compramos essa terra do Danilo Nogueira Farias, sócio do João Sorbile (Varadouro)”.

Na medida em que os colonos como Bertoldo iam chegando, os apurinã eram forçados a abandonar o local onde viviam para ceder aos recém-chegados. Quando tentavam resistir, como Manoel e José Miranda, eram reprimidos com violência por “cabeça branca” e seus jagunços. Numa nova manobra, Sorbile desmanchou as 40 casas e ofereceu 10 alqueires para cada um dos indígenas, que não aceitaram a proposta.

A partir daí, Sorbile apostou na briga entre colonos e indígenas jogando uns contra os outros, ao mesmo tempo em que intensificava a violência contra os verdadeiros donos da terra. Foi aí que estes se juntaram e decidiram agir com base no Estatuto do Índio. E como o Estado do Amazonas representava ameaça, eles procuraram e encontraram apoio nos antropólogos, na imprensa, no governo e na sociedade do vizinho Acre que, na época, começava a discutir a União dos Povos da Floresta, eliminando antigas desavenças entre extrativistas brancos e indígenas.

Sorbile, que no fim dos anos 1970 tinha construído uma serraria dentro da reserva do Km 45, teve sua estrutura sequestrada pela Polícia Federal e acabou “capando o gato” de volta para suas origens, naturalmente, com bastante dinheiro em sua conta bancária. No Acre, a galera da resistência montou a peça “A grilagem do cabeça” no Teatro de Arena do Sesc e saiu exibindo o trabalho pelos bairros, parece que até fora do Estado. “Cabeça Branca” foi o apelido que os apurinã colocaram em Sorbile porque ele tinha cabelos e barba brancos, parecendo um albino.

Infelizmente, “o tempo dos direitos” que beneficiou a maioria dos grupos indígenas do Acre não chegou de forma completa aos apurinã. Eles tiveram suas terras demarcadas, receberam apoio para a produção, saúde e educação, mas a autonomia indígena continuou ameaçada, como advertem Manoel e Raimunda. Nem os não índios extrativistas da região de Boca o Acre estão livres das armadilhas montadas por fazendeiros e madeireiros em conluio com o poder local.
E agora?

Num documento que apresentou à C.R.Alto Purus – Funai, cujo recebimento aparece carimbado com data de 30 de abril de 2014, Manuel Apurinã afirma em português claro: “Estamos enfrentando sérios problemas com os brancos vindos de outros lugares e de assentamentos do Incra para se alojar dentro da nossa terra”.

Manuel envia denuncias à Funai desde 2012, mas nenhuma providência aparece. Num documento de 18 de Março daquele ano ele afirma: “Aqui tem uma família (indígena) que já vendeu terra duas vezes, e quem compra cria gado de fazendeiro dentro da reserva. O nome do comprador é Francisco Souza de Amorim”. Num outro documento, de 18 de Junho, cinco signatários indígenas denunciam que “Francisco está trazendo a família dele para dentro da terra indígena” ; e o acusam de estar “arrendando nossa terra para fazendeiros da região”.

Em documento mais recente, Manuel Apurinã esclarece que parceleiros do Incra vendem seu lote no assentamento e se introduzem na aldeia levando maus procedimentos para seu povo. Tem exemplos de drogado e até criminoso na terra indígena.

Boca do Acre possui quatro reservas Apurinã , três das quais ficam próximas à BR-317: a comunidade do Km 124, a do Km 137, e a do Km 45. Na parte do fundo elas fazem limite com o Rio Acre.

Colega de classe


Na época do conflito entre fazendeiros e apurinã acompanhei algumas vezes o representante da Funai no Acre, Porfirio de Carvalho, em visitas à Boca do Acre, e por orientação dele eu me hospedava no hotel Rosa do Acre com o nome de Orlando Villas-Boas, para não levantar suspeitas. Numa dessas vezes, alertado por um fazendeiro vereador (Adão Nunes), o juiz Francisco de Lima Neto mandou me prender por estar fotografando pelas ruas da cidade. Dois policiais me levaram até uma delegacia e arrancaram o filme que registrava cenas para ilustrar matéria que eu encaminharia para o jornal O Estado de S. Paulo, do qual era correspondente. Depois me levaram para uma sala próxima a do juiz, com um policial na porta. Só fui libertado no fim da tarde, após avisar que tinha sido colega de classe do magistrado.

Bom, o juiz tinha sido meu colega de classe no Colégio Acreano, nos anos cinquenta, e me pediu mil desculpas pelo constrangimento. Fez questão que eu o acompanhasse até sua casa e me ofereceu almoço (quase janta), mostrando álbuns da família, após o que providenciou transporte para me levar de volta a Rio Branco. Infelizmente, não pude evitar que o colega aparecesse na matéria sobre o conflito de Boca do Acre como suspeito de ajudar fazendeiros e grileiros a infernizar a vida de indígenas e posseiros.