terça-feira, 2 de outubro de 2012


O tesouro e a floresta
                                                                   Ennio Candotti  (*)

Os Reitores das Universidades da região Norte apresentaram no Senado, no dia 28 de agosto último, em audiência convocada pelo Senador João Capiberibe (AP), um programa de desenvolvimento acelerado da capacidade de pesquisa e de formação a nível de pós graduação na Amazônia.

A proposta prevê a criação de uma Bolsa de fixação de pesquisadores na Amazônia de R$ 3000 mensais, a ser paga durante os primeiros cinco anos de contrato com uma instituição acadêmica ou de pesquisa na região. Os reitores pensaram em um programa de dez anos, com uma meta de  atrair dez mil pesquisadores para  a região. 

Por outro lado o projeto apresentado ao Senador e ao Ministro da Ciencia e Tecnologia M.A.Raupp, presente na audiência, propõe também ampliar as bolsas oferecidas a pesquisadores já em atuação na região. Em dez anos o investimento para este programa de bolsas seria de R$ 1,7 bilhões.

Obviamente se deveria pensar em equipar os laboratórios dos Institutos e Universidades, de modo que o sangue novo injetado no sistema de pesquisas revigore braços e mentes  empenhadas em agregar inteligência aos planos de desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Durante os debates, que se seguiram à apresentação do projeto, sugeriu-se também utilizar as bolsas do Programa Ciência sem Fronteiras para convidar cientistas estrangeiros para colaborar em pesquisas e formação de jovens pós graduandos nos Institutos e Universidades da Amazônia.

Os projetos são oportunos e mesmo imperativos, ainda  que o propósito de incentivar a fixação de quadros técnicos especializados na região vem sendo reafirmado há décadas, sem sucesso. Apesar de tímidos progressos  devidos principalmente às perseverantes ações das Fundações de Apoio à Pesquisa Estaduais, são poucos, muito poucos, os laboratórios de excelência existentes na Amazônia. Pesquisadores do mais alto nível na classificação do CNPq atuantes na região, contam-se ainda nos dedos.

Qual seria então, para além dos incentivos financeiros, o ingrediente necessário para garantir a desejável fixação na região dos pesquisadores jovens ou menos jovens? Arrisco algumas hipóteses:

1.Precisamos antes de mais nada de um projeto nacional de desenvolvimento social e economico para a Amazônia. O que existe hoje, o Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC , trata a região Norte como os paises centrais tratam o Brasil: um fornecedor de grãos, minérios e energia.

2.Não há no PAC preocupação com o desenvolvimento sustentável da Amazônia. E tanto menos com a ampliação do conhecimento científico e tecnológico
necessários para promover a exploração da biodiversidade, microrganismos, toxinas e produtos naturais da floresta. 

3.Os  projetos  de mineração, construção de hidrelétricas, portos, ferrovias, linhões que  encontramos no PAC/Norte, aos quais se dedicarão investimentos de mais de 200 bilhões de reais nos próximos dez anos não atendem a esta necessidade. Pergunta-se quanto destes recursos se destinam a P&D ou politicas públicas necessárias para promover uma mudança significativa na qualidade de vida da região?

4.Enquanto existir crédito abundante para plantar soja e criar gado na terra desmatada  e forem regateados os necessários investimentos em laboratórios e indústrias de biotecnologia e microbiologia, o quadro de dependência e subordinação política da região norte ao poder do Centro Sul se perpetuará. E  não haverá bolsas e incentivos financeiros que consigam fixar quadros técnicos e jovens talentos  (como havia dificuldade de fixá-los no Brasil até poucos anos atrás).

5.Dever-se-ia também pensar em criar na região, empreendimentos de base tecnológica equipados para realizar esta tradução e transferência dos processos e produtos naturais e microbiologicos dos laboratórios para a indústria. 

6.Cabe, enfim, observar que os conhecimentos existentes que possam dar origem a produtos de interesse de mercado são ainda muito escassos. Será preciso muito trabalho de pesquisa e inventário para que as possibilidades aplicativas se multipliquem até níveis capazes de mover a economia da região. Para tanto, os dez mil (ou mais) quadros técnicos de bom talento, empenhados em pesquisas e desenvolvimentos realizadas em laboratórios equipados são essenciais.

7.O que desconhecemos supera de muito o que conhecemos e não adianta, como querem alguns ‘pragmaticos’, abrir a galinha dos ovos de ouro para dela extrair o ouro. O tesouro se encontra na caminhada, floresta adentro. Cuidado, porém! Precisamos de guias para entrar e sair da floresta com vida. Já sabemos como formá-los? Sabemos sim que sem eles não haverá tesouro, encontraremos apenas galinhas. 

(*) Museu da Amazônia


 

Resistência na Floresta
Elson Martins

O Acre dos anos 1970 vivia em reboliço. Na capital e nas principais cidades do interior só se falava em venda de seringais, compra de terras e criação de gado. Pessoas estranhas surgiam em Rio Branco, Xapuri, Brasiléia, Sena Madureira, Feijó e Tarauacá anunciando progresso para a região. Mas, na verdade, vinham para desmatar a floresta e colocar o boi no lugar tradicionalmente ocupado pelos seringueiros.
Há pelo menos 50 anos, a borracha amazônica que representara a segunda maior riqueza do país (no começo do século 20) decaia perdendo mercado para os seringais de cultivo da Malásia. Nem os esforços promovidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) conseguiram resgatar a “belle époque” dos seringalistas do passado.
Terminada a guerra, muitos seringalistas com suas famílias abandonaram os seringais e os seringueiros. Estes, sem opção, permaneceram na floresta procurando sobrviver de pequena produção de borracha, castanha, caça e agricultura. Em alguns seringais a figura do arrendatário procurou manter o antigo regime de trabalho. Em outros, os seringueiros se tornaram autônomos.
Com a chegada dos fazendeiros, a partir de 1970, veio a mudança mais radical e ameaçadora. Alegando terem comprado as terras para instalar grandes fazendas para criação de boi, eles davam prazo para as famílias dos seringueiros saírem, pois estes não teriam direito de posse assegurado por lei.
O processo de expulsão avançou rápido. Com a ajuda de policiais civis e militares, e de advogados, juizes e políticos conservadores os fazendeiros - que chegaram a adquirir um terço dos seringais acreanos em uma década - empregaram jagunços, motosserra e fogo para “limpar” as áreas pretendidas. Desprevenidas e desamparadas, muitas famílias tiveram que buscar sobrevivência nas cidades acreanas ou fugir para a Bolívia.
Embora desamparados pela legislação trabalhista e desassistidos pelos governos federal e estadual, a maior parte dos acreanos (70%) vivia na e da floresta. Mas, em situação semelhante a dos índios que eles ajudaram a expulsar para as cabeceiras dos rios nos tempos áureos da borracha.
Agora o regime militar tentava promover a mudança do extrativismo para a pecuária com dinheiro público aplicado de forma ilícita e perversa. Os sulistas ditos grandes empresários eram espertos, porque sabiam mexer com papeis e pegar o recurso sem precisar justificar sua aplicação. Ou seja, o progresso anunciado para o Acre e toda Amazônia era uma farsa, um conluio das elites brasileiras com aval militar.
A primeira resistência a essa farsa partiu das comunidades eclesiais de base, da igreja do Acre e Purus, cujo bispo Dom Moacir Grechi, assessorado por Leonardo Boff  seguia as diretrizes da Teologia da Libertação. As 520 CEBs organizadas por ele discutiam a questão da terra e denunciavam através do boletim “Nos Irmãos” os casos de expulsão.
A resistência foi ampliada com a chegada da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) em 1975. A entidade organizou, em menos de dois anos, oito sindicatos de trabalhadores rurais na região, incluindo o de Boca do Acre no Estado do Amazonas.
O delegado da Contag no Acre, João Maia da Silva Filho, sociólogo e economista rural com experiência nos quibutzes de Israel e nas ligas camponesas em Pernambuco, defendia a permanência dos seringueiros em suas colocações na condição de posseiros, e os organizou em sindicatos a partir das comunidades eclesiais da igreja.
Os seringueiros precisavam dessa organização, pois estavam tendo que abandonar as colocações para enfrentar uma vida de aperreio na cidade. De fato, os que não resistiram passaram a formar um cinturão de miséria nas áreas urbanas. Tiveram que passar fome e morar mal, viver de subemprego, sem educação e sem saúde, expondo os filhos à prostituição. 
Além do jornalzinho “Nós irmãos”, não tinha nada que os amparasse na mídia local. O jornal “O Rio Branco”, a TV Acre e a rádio Novo Andirá, da iniciativa privada, defendiam o progresso a qualquer preço que chegava do centro-sul do país. A Rádio Difusora e o semanário O Jornal, de propriedade do Governo, seguiam a linha militarizada do governo federal e ignoravam as denúncias dos perseguidos.
Foi então que pessoas da cidade começaram a pensar na criação de um jornal comprometido com a luta dos seringueiros e que tivesse maior inserção dentro da sociedade. Assim surgiu o jornal “Varadouro” com financiamento inicial da igreja de Dom Moacir, que emprestou dinheiro para fazer as seis primeiras edições. Com esse recurso e uma crescente solidariedade entre pessoas e instituições foram produzidas 24 edições em quatro anos (1977-l981).
O “Varadouro” apoiou quem lutava contra o desmatamento da floresta acreana e se opôs à bovinização do Acre. Nessa frente atuaram juntos a Contag, a Igreja, os sindicatos, as ONGs (entidades não governamentais), as associações de moradores e também os índios,  que se preparavam para retornar às suas antigas aldeias tomadas pelos seringalistas.
No calor da resistência foram cunhadas expressões como “florestania”, “povos da floresta” “acreanidade” e “aliança dos povos da floresta”. E, finalmente, “governo da floresta”.
A Contag foi muito atuante nos anos 1975 a 1980, introduzindo a noção do direito entre os povos da floresta. Seu advogado Pedro Marques da Cunha Neto jogou duro contra delegados de policia do interior que ajudavam os fazendeiros no processo de expulsão das famílias seringueiras. Com base no Estatuto da Terra e no Código Civil brasileiro, ele fez valer para os seringueiros sindicalistas a condição de posseiros com direito è terra ou indenização.
Os líderes Wilson Pinheiro e Chico Mendes - ambos assassinados por fazendeiros - foram instruídos sobre esses direitos. A organização que eles lideraram também forçou os governos da época a rejeitarem a substituição do extrativismo pela pecuária, que representava alto custo social. Os governadores Geraldo Mesquita e Joaquim Macedo tiveram que argumentar junto ao governo federal sobre a necessidade de respeitar o extrativismo e dar um basta aos predadores da natureza.
Com a criação do Partido dos Trabalhadores (1980), a idéia de desenvolver o Acre sem descartar sua tradição extrativista ganhou força e poder político para assegurar o crescimento com justiça social e preservação ambiental, o que o estado procura manter até os dias de hoje.