Resistência na Floresta
Elson Martins
O Acre dos anos 1970 vivia em reboliço. Na capital e nas
principais cidades do interior só se falava em venda de seringais, compra de
terras e criação de gado. Pessoas estranhas surgiam em Rio Branco, Xapuri,
Brasiléia, Sena Madureira, Feijó e Tarauacá anunciando progresso para a região.
Mas, na verdade, vinham para desmatar a floresta e colocar o boi no lugar
tradicionalmente ocupado pelos seringueiros.
Há pelo menos 50 anos, a borracha amazônica que
representara a segunda maior riqueza do país (no começo do século 20) decaia
perdendo mercado para os seringais de cultivo da Malásia. Nem os esforços
promovidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) conseguiram resgatar a
“belle époque” dos seringalistas do passado.
Terminada a guerra, muitos seringalistas com suas famílias
abandonaram os seringais e os seringueiros. Estes, sem opção, permaneceram na
floresta procurando sobrviver de pequena produção de borracha, castanha, caça e
agricultura. Em alguns seringais a figura do arrendatário procurou manter o
antigo regime de trabalho. Em outros, os seringueiros se tornaram autônomos.
Com a chegada dos fazendeiros, a partir de 1970, veio a
mudança mais radical e ameaçadora. Alegando terem comprado as terras para
instalar grandes fazendas para criação de boi, eles davam prazo para as
famílias dos seringueiros saírem, pois estes não teriam direito de posse
assegurado por lei.
O processo de expulsão avançou rápido. Com a ajuda de
policiais civis e militares, e de advogados, juizes e políticos conservadores
os fazendeiros - que chegaram a adquirir um terço dos seringais acreanos em uma
década - empregaram jagunços, motosserra e fogo para “limpar” as áreas
pretendidas. Desprevenidas e desamparadas, muitas famílias tiveram que buscar
sobrevivência nas cidades acreanas ou fugir para a Bolívia.
Embora desamparados pela legislação trabalhista e
desassistidos pelos governos federal e estadual, a maior parte dos acreanos
(70%) vivia na e da floresta. Mas, em situação semelhante a dos índios que eles
ajudaram a expulsar para as cabeceiras dos rios nos tempos áureos da borracha.
Agora o regime militar tentava promover a mudança do
extrativismo para a pecuária com dinheiro público aplicado de forma ilícita e
perversa. Os sulistas ditos grandes empresários eram espertos, porque sabiam
mexer com papeis e pegar o recurso sem precisar justificar sua aplicação. Ou
seja, o progresso anunciado para o Acre e toda Amazônia era uma farsa, um conluio
das elites brasileiras com aval militar.
A primeira resistência a essa farsa partiu das comunidades
eclesiais de base, da igreja do Acre e Purus, cujo bispo Dom Moacir Grechi,
assessorado por Leonardo Boff seguia as
diretrizes da Teologia da Libertação. As 520 CEBs organizadas por ele discutiam
a questão da terra e denunciavam através do boletim “Nos Irmãos” os casos de
expulsão.
A resistência foi ampliada com a chegada da Contag (Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) em 1975. A entidade organizou, em
menos de dois anos, oito sindicatos de trabalhadores rurais na região, incluindo
o de Boca do Acre no Estado do Amazonas.
O delegado da Contag no Acre, João Maia da Silva Filho,
sociólogo e economista rural com experiência nos quibutzes de Israel e nas
ligas camponesas em Pernambuco, defendia a permanência dos seringueiros em suas
colocações na condição de posseiros, e os organizou em sindicatos a partir das
comunidades eclesiais da igreja.
Os seringueiros precisavam dessa organização, pois estavam
tendo que abandonar as colocações para enfrentar uma vida de aperreio na
cidade. De fato, os que não resistiram passaram a formar um cinturão de miséria
nas áreas urbanas. Tiveram que passar fome e morar mal, viver de subemprego,
sem educação e sem saúde, expondo os filhos à prostituição.
Além do jornalzinho “Nós irmãos”, não tinha nada que os
amparasse na mídia local. O jornal “O Rio Branco”, a TV Acre e a rádio Novo
Andirá, da iniciativa privada, defendiam o progresso a qualquer preço que
chegava do centro-sul do país. A Rádio Difusora e o semanário O Jornal, de
propriedade do Governo, seguiam a linha militarizada do governo federal e
ignoravam as denúncias dos perseguidos.
Foi então que pessoas da cidade começaram a pensar na
criação de um jornal comprometido com a luta dos seringueiros e que tivesse maior
inserção dentro da sociedade. Assim surgiu o jornal “Varadouro” com
financiamento inicial da igreja de Dom Moacir, que emprestou dinheiro para
fazer as seis primeiras edições. Com esse recurso e uma crescente solidariedade
entre pessoas e instituições foram produzidas 24 edições em quatro anos
(1977-l981).
O “Varadouro” apoiou quem lutava contra o desmatamento da
floresta acreana e se opôs à bovinização do Acre. Nessa frente atuaram juntos a
Contag, a Igreja, os sindicatos, as ONGs (entidades não governamentais), as
associações de moradores e também os índios,
que se preparavam para retornar às suas antigas aldeias tomadas pelos
seringalistas.
No calor da resistência foram cunhadas expressões como
“florestania”, “povos da floresta” “acreanidade” e “aliança dos povos da
floresta”. E, finalmente, “governo da floresta”.
A Contag foi muito atuante nos anos 1975 a 1980, introduzindo
a noção do direito entre os povos da floresta. Seu advogado Pedro Marques da
Cunha Neto jogou duro contra delegados de policia do interior que ajudavam os
fazendeiros no processo de expulsão das famílias seringueiras. Com base no
Estatuto da Terra e no Código Civil brasileiro, ele fez valer para os
seringueiros sindicalistas a condição de posseiros com direito è terra ou
indenização.
Os líderes Wilson Pinheiro e Chico Mendes - ambos
assassinados por fazendeiros - foram instruídos sobre esses direitos. A
organização que eles lideraram também forçou os governos da época a rejeitarem
a substituição do extrativismo pela pecuária, que representava alto custo
social. Os governadores Geraldo Mesquita e Joaquim Macedo tiveram que
argumentar junto ao governo federal sobre a necessidade de respeitar o
extrativismo e dar um basta aos predadores da natureza.
Com a criação
do Partido dos Trabalhadores (1980), a idéia de desenvolver o Acre sem
descartar sua tradição extrativista ganhou força e poder político para
assegurar o crescimento com justiça social e preservação ambiental, o que o
estado procura manter até os dias de hoje.
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