domingo, 7 de novembro de 2010

Labre passou pelo Acre em 1887

Coluna publicada no Jornal Página 20 | 7nov2010
Escrito por Alceu Ranzi - Instituto Histórico e Geográfico do Acre


Antes do início da construção da Ferrovia Madeira Mamoré e antes também da idéia da ferrovia Transacreana de Euclides da Cunha, o Cel. Labre - fundador da cidade de Lábrea, na margem direita do Rio Purus, no Amazonas - idealizou a ligação ferroviária do Rio Madre de Diós na Bolívia ao Rio Aquiry, hoje Rio Acre. O pioneiro coronel deixou relatos de suas explorações entre o Rio Ituxi e o Rio Madeira.
Em nossos estudos sobre os geoglifos, foi a Dra. Denise Schaan que percebeu a importância desse artigo para a história, a geografia, a antropologia e a arqueologia do Acre. Abaixo o leitor terá um resumo (comentado) da viagem de reconhecimento do Cel. Labre, desde a margem esquerda do Rio Madre de Diós (Pando-Bolivia) até a margem direita do Rio Aquiry (Acre):

No dia 11 de agosto de 1887 partiram a pé da margem esquerda do Rio Madre de Dios, acima da atual cidade de Riberalta (Bolivia) e começaram a caminhada pelos varadouros indígenas na direção do Rio Acre.
Dia 14 chegaram na localidade Budha, no Rio Orton, possivelmente nas proximidades na atual cidade de Puerto Rico (Bolivia), confluência com o Manuripe.
No dia 15 pernoitaram na aldeia Nabedheçada, cujo chefe se chamava Tatachuma. Segundo a descrição do Coronel Labre, essa aldeia, dos índios Araúnas, tinha ídolos e templos.
No dia 17 chegaram na aldeia Mamuyeçada, com aproximadamente 200 habitantes da tribo dos Araúnas. Nessa aldeia Labre percebeu alguma forma de chefia organizada, templos e rituais. As mulheres eram proibidas de entrar nos templos, participar das cerimônias e saber a forma e os nomes dos ídolos. Os ídolos eram representados por figuras geométricas, polidas, feitas de madeira. O pai dos deuses era chamado Epymará, sua imagem tinha uma forma elíptica de aproximadamente 40 cm de altura. Também existiam ídolos de pedra de diferentes tamanhos. Nos chama a atenção os ídolos de formato geométrico, o que nos remete a pensar nos geoglifos acreanos.
No dia 19 chegaram em uma aldeia abandonada chamada Cuyneputhsúa. Essa aldeia ainda tinha uma boa casa, um pequeno templo, com um jardim de forma circular. Nesse local se encontraram com um cacique chamado Tata Runa, acompanhado de suas duas esposas e dois filhos, que estava no lugar, entre outras coisas, para visitar o templo. Aqui o templo, com um jardim circular também nos remete aos geoglifos.
No dia 24 chegaram na margem direita do Abunã (ainda na Bolivia), onde pernoitaram. No dia 25 cruzaram o Abunã e ao final do dia chegaram em uma aldeia abandonada, chamada Huatchaputhsua. Apesar de abandonada, essa aldeia ainda tinha uma grande casa, em bom estado de preservação e um templo com duas portas. Dentro do templo ainda havia vários ídolos, ornamentos e armas. Possivelmente essa aldeia esteja relacionada aos campos do Gavião, nas proximidades da atual cidade de Capixaba (Acre).
No dia 27, próximo do meio dia, passaram por uma grande clareira (campo da natureza) de mais de 5 km de diâmetro, tendo, no meio, duas grandes casas abandonadas, onde encontraram duas grandes vasilhas, de argila queimada, com aproximadamente 1 metro de altura e muitos ornamentos dentro de alguns jamaxis. Nesse local estava um índio, guardando a plantação de coca, a qual era bastante consumida. Esse poderia ser o nosso conhecido Campo Esperança, próximo do Gavião?
No dia 28, viajaram por uma boa estrada (varadouro), passaram por três aldeias com boas casas e agricultura. Ao final do dia chegaram à Canarana. Segundo o mapa que acompanha o diário de Labre, essa aldeia, estaria localizada entre as atuais cidades de Capixaba e Senador Guiomard (Quinari).
No dia 29, após passarem por duas aldeias de Apurinãs, eles chegaram ao local chamado Brejo da Ponte, uma colocação de centro, com seringueiros brasileiros, de propriedade de um senhor chamado Manoel Joaquim (pelo nome, possivelmente um Português). Lembrar que estávamos em 1887, e Labre estava trilhando território boliviano.
No dia 30 de agosto de 1887, saíram às 5 da manhã do Brejo da Ponte e ao meio dia atingiram o Rio Acre, na sede do seringal Flor do Ouro, propriedade de Geraldo Correia Lima. Na época, apesar da região pertencer à Bolívia percebe-se a forte influência brasileira, pelos nomes das colocações e pelo nome dos seus proprietários.
Essa localidade, Flor do Ouro, como se verifica no documento “Navegação do Rio Acre” de Plácido de Castro de 1907, situa-se acima do Riozinho do Rola e abaixo do Benfica. Na época da morte de Plácido de Castro, em 1908, Flor do Ouro, em frente à boca do Igarapé Distração, pertencia a Alexandrino José da Silva, o assassino.
No mapa que acompanha o relato da travessia do Coronel Labre, nota-se que o Rio Acre já era conhecido por Aquiry. Labre certamente conhecia os relatos da viagem de Chandless pelo Rio Aquiry, realizada em 1865. Pelos índios Canarana era também chamado por Muchanguy, no mapa o nome foi anotado (entre parênteses).
Para Fawcett o nosso Rio Acre originalmente se chamaria Macarinara, corruptela de Magarinarran, na língua dos índios Araúnas (Araonas). Para o mesmo Rio Acre ainda vamos encontrar as denominações de Yasiri, Uwakuru, Uaquiry e Enosagua - rio de águas amarelas.
Causa estranheza que no mapa anexo ao artigo, não há referências à localidade Volta da Empreza, sede do Seringal Empreza que teria sido estabelecido em 1882 por Neutel Maia, portanto cinco anos antes da chegada do Cel. Labre ao Rio Acre.
De outra parte, no mapa, que acompanha o artigo do Coronel Labre, está plotada a localidade Nova York como ponto inicial da ferrovia proposta. Surge então uma pergunta: Seria Nova York o primeiro nome da nossa atual Rio Branco?

Fontes:

- Castro, Genesco de. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro Excerptos Históricos. Senado Federal, Brasília, 2002.
- Castro, Plácido de. Navegação do Rio Acre. Typ. Do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., Rio de Janeiro, 1907.
- Chandless, W. Notes no the River Aquiry, the principal affluent of the River Purus. Journal of the Royal Geographical Society, 36:119-128, London, 1866.
- Fawcett, P.H. Exploration Fawcett. Phoenix Press, London, 312 p. 2001.
- Labre, A.R.P. Viagem exploratória do Rio Madre de Diós ao Acre. Rev. Soc. Geográfica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 4 (2):102-106, 1888.
- Labre, A. R. P. Colonel Labre’s explorations in the region between the Beni and the Madre de Dios Rivers and the Purus. Proceedings of the Royal Geographical Society and Monthly Record of Geography, Vol.11, Nº 8 (Aug.1889), pp.496-506, London, 1889.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pela estrada rumo aos Andes

Coluna publicada no Jornal Página 20 | 31out2010


Escrito por Por Fernanda Birolo


Apesar da proximidade geográfica, somente nestes últimos anos nós brasileiros, e especialmente os acreanos, estamos de fato nos “acercando” do vizinho Peru. No turismo, grandes facilidades surgiram recentemente, com uma linha regular de ônibus que sai de Rio Branco rumo ao país andino, e a partir deste ano também um voo internacional que liga a capital do Acre à do Peru (Lima) e à capital do Império Inca (Cuzco).
Mas aos mais aventureiros não se pode negar que o melhor caminho é mesmo pela estrada. Desfrutar das belíssimas paisagens, deixar que o corpo se adapte lentamente ao clima e apreciar a passagem da planície amazônica para as montanhas faz valer todo esforço de uma longa viagem.
Saindo de Rio Branco, no Acre, são 1.130 quilômetros de estrada até Cuzco, num passeio que dura quase dois dias. A primeira etapa do trajeto é em território brasileiro, até a pequena cidade de Assis Brasil. Este é o ponto de fronteira entre os dois países, onde se chega pela BR-317, percorrendo 344 quilômetros desde a capital. Daí em diante se ingressa na Amazônia peruana.
Um pernoite pelo caminho é obrigatório para uma viagem segura, e a cidade de Puerto Maldonado, a 230 quilômetros da fronteira, é o local mais apropriado. Até lá a estrada é completamente asfaltada, e enquanto a ponte da cidade não está terminada, a travessia do rio Madre de Dios é feita em balsas - pequenas ou grandes, a gosto do freguês.
Chegando cedo a Maldonado, é grande a tentação de seguir a viagem, pela curiosidade e para se sentir mais perto do destino. E aí o viajante desprevenido pode ter surpresas, pois não encontrará mais um local com boa estrutura no caminho. A melhor pedida é ficar, experimentar uma deliciosa pizza peruana e ter um bom descanso para os desafios do dia seguinte.


Chegando às montanhas
Após cruzar a fronteira, as pessoas, as casas, os costumes já nos deixam visível que estamos em outro país. Mas é depois de Puerto Maldonado que se começa a perceber as mudanças de paisagem. Aos poucos aparecem as subidas, e logo o corpo sente que a altitude aumenta.

Em apenas um dia, saímos de cerca de 200 metros acima do nível do mar e chegamos a quase cinco mil metros, na passagem pelo ponto mais alto da estrada, próximo à pequena cidade de Marcapata. Essa enorme variação é um convite para o chamado “soroche”, ou “mal da altitude”, que aos pouco acostumados provoca dores de cabeça, tontura, dificuldade na respiração, e até mesmo uma certa “lentidão” no raciocínio.

Mas séculos antes de nós os moradores dos Andes já conheciam uma boa solução para esse mal. Nas cidades e vilarejos do caminho se podem comprar, a baixo preço, saquinhos deste remédio. A folha de coca (que não é droga), colocada na boca para que seu sumo seja ingerido aos poucos, traz quase como milagre um alívio desses sintomas. Não à toa já era considerada planta sagrada pelos Incas.
Além dos nossos corpos, também os equipamentos percebem a diferença da altitude e do frio que vai aumentando. Máquinas fotográficas, filmadoras e até mesmo o veículo pode manifestar algum “desagrado” com o novo clima. Também os produtos embalados como cremes, desodorantes e perfumes sentem a pressão, e podem chegar a vazar. Mas isso não chega a ser razão para preocupação, e sim para estar atento aos efeitos.


Nas curvas do caminho
O melhor programa no passeio é admirar as paisagens. As imagens vistas a cada curva parecem pintura à mão, feitas com todo capricho. Rebanhos de ovelhas e lhamas lembram imagens de filmes. E os picos nevados, tão próximos, fazem parecer que estamos, talvez, noutro continente.

Mas quando as montanhas se aproximam, aí está uma boa razão para ficar em estado de alerta. Misturadas à exuberância dos Andes, as curvas da estrada viram parte da beleza das paisagens, e, por outro lado, representam também o perigo maior da viagem, exigindo uma velocidade reduzida e muita atenção do condutor.

A estrada, no seu trecho peruano, está quase concluída, e é de uma qualidade incomparável mesmo às melhores rodovias brasileiras. Uma espessa e consistente camada de asfalto, boa proteção na beira das montanhas e adequada sinalização trazem mais segurança aos viajantes que por ali passam.

Alguns trechos ainda estão em obras, e os trabalhos correm dia e noite quase sem parar. Mesmo quando o sol se põe, gigantes holofotes iluminam os locais para que os trabalhadores possam continuar seu serviço. E há sempre o risco de se deparar com uma paralisação no caminho, quando alguns trechos são interditados, de dia, até mesmo durante horas. Então é preciso reajustar os planos de horários, e paciência para esperar.

Não havendo nenhum imprevisto, a viagem de Puerto Maldonado a Cuzco, sem pressa e com paradas para contemplar as paisagens, dura de dez a doze horas. Saindo cedo da manhã, é possível chegar em tempo de apreciar o deslumbrante pôr-do-sol por entre as montanhas. E afinal, entrar em Cuzco e ver suas luzes e seu encanto renova as energias para seguir desfrutando de tantas outras maravilhas do Peru.


E meu carro chega lá?
Muita gente ainda acha que só carro grande e com tração é capaz de enfrentar o desafio de subir os Andes. Engano. E digo por experiência: chegamos tranquilamente a Cuzco em um carro de passeio, motor 1.6. Na estrada, mesmo nos desvios e nos trechos que ainda não estão prontos, já não há motivos para temer.
Preocupação com o veículo deve ser para a entrada no país. Uma série de papéis é exigida na fronteira, como documento do veículo, carteira internacional de motorista do condutor, autorização autenticada do proprietário para que o condutor entre no país com seu veículo - no caso de não ir em carro próprio - e, claro, o passaporte ou outro documento apresentado na entrada do país.