terça-feira, 13 de agosto de 2013

É inevitável o incêndio da biblioteca da floresta?

Ennio Candotti (*)


1. De ribeirinhos e  hidroaviões     


Os ribeirinhos, que encontramos às margens de rios e igarapés em toda a Amazônia, são  parte do problema ou da solução da questão da defesa, da produção de conhecimentos científicos de botânica e zoologia, da conservação ambiental e do desenvolvimento econômico e social da região?

Se a resposta for que eles são parte do problema, deveríamos pensar em removê-los para núcleos urbanos e oferecer a eles oportunidades de trabalho, educação, moradia e cuidados de saúde, direitos da cidadania.

Se a resposta for que são parte da solução, uma vez que é dever do Estado estar presente em todo o território nacional, eles são muito importantes para monitorar o movimento de pessoas e animais e o trânsito das  mercadorias pelos rios, apoiar como guias e conhecedores da floresta a coleta de material para pesquisa (sementes, resinas e amostras de fauna e flora) e colaborar nas diferentes etapas na construção dos conhecimentos no campo e nos laboratórios dos centros de ciência e tecnologia.


Podem também colaborar com os trabalhos de monitoramento do clima, da fauna, da flora e do nível e velocidade das águas. Adequadamente treinados, poderiam participar, quando necessário, de ações de defesa do território.



Candotti: "No dia em que demonstrarmos o valor  da ‘biblioteca’ ninguém mais desmatará"

O Vietnam foi um exemplo de como os ribeirinhos dos rios e igarapés das florestas tropicais ofereceram decisivo apoio ao exército vietnamita que derrotou em 1972 o exército de ocupação dos Estados Unidos.


Neste caso deveríamos valorizar sua presença ao longo dos rios, reconhecer seus direitos de posse das terras tradicionalmente ocupadas[1], e observar com maior atenção as soluções técnicas e de organização social que eles encontraram para trabalhar, se alimentar, plantar, pescar, construir casas, fabricar barcos e canoas, cuidar mesmo que precariamente da saúde e da educação  dos filhos, além de oferecer apoio a viajantes e embarcações que transitam pelos rios.


Deveríamos pensar e contribuir para implementar uma política específica de apoio a estas comunidades. Os instrumentos e diretrizes usuais de assistência e serviços públicos não têm funcionado.  Como aliás não têm funcionado também para as vilas e aglomerados urbanos do interior  (um Sedex enviado de S.Gabriel da Cachoeira para Manaus leva de 8 a 15 dias para chegar, são raros nas cidades dos interior os postos de gasolina certificados, os foros de justiça, etc.).


O meio mais eficiente para prover uma assistência regular para estas comunidades é através de hidroaviões. Contam-se porém em pouco mais de uma dezena os hidroaviões que operam na região. Seria interessante  conhecer as razões que impedem seu amplo uso. Solução simples, adotada por exemplo em condições ambientais mais severas do que as Amazônicas para assistência às comunidades das áreas dos grandes  lagos do Canadá.


Enquanto aguardam a adoção de um sistema de transporte e comunicação rápido, centenas de milhares de ribeirinhos podem contar apenas com a visita irregular dos barcos de assistência e comércio, raros e lentos no percurso das tortuosas hidrovias.


2. O incêndio da ‘biblioteca’ 


Nos últimos anos, na Amazônia,  tem se investido nos Institutos de C&T, renovaram-se os equipamentos dos laboratórios e acelerou-se a formação de recursos humanos. Falta, no entanto, definir um foco, uma prioridade na qual concentrar as forças científicas, de industria e defesa para alcançar resultados em áreas estratégicas  e criar competências do mais elevado nível, segundo padrões nacionais e internacionais, definindo tempos e modos para atingi-los. 


A floresta é uma imensa ‘biblioteca’ em que estão registrados segredos e tesouros do conhecimento que aguardam ser decifrados. A conservação desta biblioteca, impedir que ela seja incendiada,  depende da demonstração pública e reconhecida por todos, que o hectare de floresta com sua vida e segredos, com as árvores em pé, tem valor de mercado maior do que o hectare de terra desmatada, cultivada com soja, cana ou utilizada para o pasto de duas cabeças de gado. 


Isso é evidente para quem teve a oportunidade de aprender a ler e interpretar alguns dos códigos inscritos nos livros desta ‘biblioteca’, mas obviamente não é evidente para quem desmata e ocupa a terra com plantios e gado.


No dia em que demonstrarmos o valor científico e  de mercado da ‘biblioteca’ ninguém mais desmatará. A repressão aos desmatadores e o controle armado da integridade da floresta, por sua extensão e condições operacionais não conseguem protegê-la, o valor de mercado da terra desmatada (e os créditos bancários associados) comanda, é ele que devemos combater.


Surge então a pergunta: por onde começar, qual seria o foco, quais são os segredos da ‘biblioteca’ que mais nos interessam e poderiam interessar ao mercado? Creio que os mais importantes deles estão nas plantas e no micromundo de microrganismos, fungos, toxinas, enzimas, que degradam folhas e árvores caídas e os transformam nos nutrientes  que  alimentam a exuberância da floresta. Uma floresta que em sua maior extensão ocupa solos pobres.


Que microrganismos são esses? Quais são as toxinas,  os fungos e as resinas que têm sólido valor de mercado e que poderíamos estudar e extrair da floresta, isolar e sintetizar nos laboratórios, sem comprometer os ciclos de sua reprodução?


Preocupa-nos saber que após inúmeras tentativas de implantar na região institutos de microbiologia e biotecnologia os resultados permanecem modestos (a Embrapa possui na Amazônia apenas seis dos sessenta centros instalados no país e o CBA, o Centro de Biotecnologia da Amazônia, passados dez anos de sua criação e despendidos recursos para o equipamento de seus laboratórios ainda não funciona regularmente por falta de um estatuto jurídico de consenso entre Brasilia (Min Ind e Comercio) e Manaus (Suframa).


Curiosamente as atenções das organizações nacionais e internacionais de conservação da natureza (como p.e. o WWF e  o Fundo Amazônia) voltam-se para programas preocupados em evitar o desmatamento (e as emissões de CO2) mas não priorizam a formação de pesquisadores, microbiologistas, botânicos, entomólogos e o fomento de programas de pesquisa e interpretação do micro e macro mundo registrado na grande ‘biblioteca’.


Surge nesse ponto a questão de como defender a soberania nacional e proteger a propriedade do patrimônio genético registrados nos ‘livros’ da floresta. 

Estudando, interpretando o que está escrito nos ‘livros’ que encontramos na biblioteca, antes que outros o façam. “Conhecer ainda que tarde” o “cognoscere quae sera tamen” deveria estar escrito nas bandeiras da batalha amazônica.


Não há outro caminho para combater a biopirataria no micro ou no macromundo. O proibir, fiscalizar, controlar a coleta e o transporte de amostras do material genético, não defende os nossos interesses e nem  oferece proteção eficaz ao nosso patrimônio. Uma vez que é difícil distinguir nessas amostras as que tem de fato algum valor, de mercado ou científico e as que não se sabe se tem algum valor, por não terem sido ainda estudadas.

Trata-se de um tesouro codificado através de ‘bites’ de informação,  que podem circular a ‘cavalo’ das ondas eletromagnéticas, nas redes internautas ou ser transportados, ‘in natura’,  fisicamente em amostras microscópicas. Um universo  de informações inscritas em amostras de dimensões micrométricas  (10
-6 m) dificilmente detectáveis por humanos atentos ou mesmo por instrumentos especializados. Lembro a título de exemplo que há mais de 100 mil microrganismos em uma gota de nossas salivas, todos eles portadores de informações significativas em seus códigos genéticos!

Para estudar o micromundo da floresta são necessários laboratórios equipados e técnicos de alta especialização, além de financiamentos significativos. Sabemos que o retorno, que pode ocorrer em um caso em dez dos compostos estudados, compensa as despesas realizadas para estudar os dez. 


O extrativismo voluntário, desarmado de instrumentos, sem a assistência de laboratórios equipados não é sustentável social e economicamente, pode prover sustento para as famílias que a ele se dedicam, mas dificilmente pode retirá-las da pobreza.

3. As margens irregulares da floresta inundada    



Há obviamente outros tesouros  na floresta, outros alvos que clamam por nossa  atenção pesquisa e entendimento. Entre eles menciono: 

1. as  férteis terras pretas de índio que ao que tudo indica têm origem antrópica (10% das terras de floresta);
2. o imenso aquífero que se estende no subsolo profundo das florestas e rios do Atlântico aos Andes;
3. as jazidas de minerais;
4. os ecossistemas da foz de água doce e salgada. 

Antes porém de examinar os pontos acima quero mencionar uma questão que revela o tratamento dado pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional à floresta amazônica na elaboração do Código Florestal.


Em um dos primeiros Artigos (o de número três) do Código é introduzido um novo conceito, o de ‘margem média’ dos rios em substituição às margens altas (a média dos níveis máximos das últimas cinco cheias) que tradicionalmente (desde 1823) definiam os limites do território de propriedade (e proteção) da União às margens dos rios.


Estima-se que a área ocupada na Amazônia pelas águas em época de cheia é de 500 mil km2. [2] Com a nova definição das margens ‘médias’, a área de propriedade da União recuará para aproximadamente 350 mil km2.  Isto é a União cedeu (pelo novo Código) aos proprietários de terras às margens dos rios cerca de 150 mil km2, 15 milhões de hectares periodicamente inundados!


O que significa também que deixará aos novos proprietários a responsabilidade pela proteção e monitoramento dessas extensas áreas ( e seus ‘livros’ ainda indecifrados)  submersos em boa parte do ano. Hoje a ocupação urbana e/ou o plantio nestas áreas depende de autorizações e avaliações realizadas caso a caso pela União através da SPU.


Se a nova definição, na maioria dos rios encaixados, planaltinos recua de poucas dezenas de metros as margens tradicionais e os limites das responsabilidades e propriedades da União, no caso amazônico este recuo propicia a alienação da propriedade da União de centenas de milhares de quilômetros quadrados. Estima-se em 300 000 km2 a diferença entre a área delimitada pela margem alta na época da cheia e pela margem baixa na época da sêca dos rios amazônicos. Esta grande extensão se deve em grande parte ao fato que a diferença entre o nível mais alto e o nível mais baixo das águas dos rios é também muito grande, variando anualmente  de 12 a 15 metros!


No Código não há sequer uma menção à diferença entre as florestas alagadas e as florestas ‘secas’ planaltinas.  É bom lembrar que a extensão das áreas das florestas alagadas amazônicas, mais as terras também alagadas do Pantanal, é da ordem de grandeza das demais florestas de todo o país.


Do ponto de vista dos ecossistemas e do patrimônio genético é nessa área de floresta alagada que se concentram os segredos mais importantes da ‘biblioteca’ amazônica, uma vez que se trata de ecossistemas particulares, que por serem periodicamente inundados obrigou os seres que lá vivem, plantas e animais, fungos e microrganismos a encontrar soluções engenhosas e bem sucedidas de adaptação e sobrevivência (vale notar por exemplo que a floresta quando submersa suspende a sua respiração não absorvendo mais CO
2).


A questão das margens dos rios no Código Florestal revela que há uma significativa distância entre a prática política e o discurso emocionado dedicados pelas diferentes instâncias de Governo e do Congresso Nacional à Amazônia.

Vamos examinar agora os quatro pontos mencionados acima: terras pretas, aquíferos, minérios e os ecossistemas da foz onde a água doce dos rios encontra a salgada do oceano.
1) As terras pretas de índio são terras muito férteis que se encontram espalhadas pelo território amazônico (encontram-se em cerca de 10% do território) e que, segundo as mais recentes pesquisas têm origem antrópica.  O seu estudo procura revelar a sua composição e permitir assim a sua reprodução em laboratório ou em natura, o que propiciaria a possibilidade de produzir terras férteis para a agricultura. 


Por outro lado os estudos ao revelarem a origem antrópica desta terra , uma vez que é encontrada em locais ocupados também por sítios arqueológicos, demonstram que a ocupação indígena da floresta foi numerosa e intensa em extensas áreas de floresta, o que sugere que a floresta, pelo menos em parte, foi manejada pelos povos que a habitaram, e a habitam, desde tempos muito antigos. 
[3]

As terras pretas, junto com os  fragmentos cerâmicos e líticos dos sítios arqueológicos nelas encontrados, revelam uma história de mais de 9000 anos. Culturas de povos antigos adaptados aos ambientes florestinos, que encontraram técnicas próprias e eficientes de caça e pesca, navegação, agricultura e sistemas de convivência social. 

Fatos estes que justificam plenamente as políticas que buscam proteger os territórios e valorizar as culturas indígenas ainda presentes na região, testemunhas e registros vivos de sistemas sociais bem sucedidos na convivência com a floresta e defesa frente aos agressivos patógenos, ainda hoje não controlados (ex. malária).  

2) Com o segundo ponto quero chamar atenção para outra dimensão submersa da Amazônia:  a existência de um extenso aquífero de Manaus aos Andes, estimado em 2,5 milhões de km2 com uma profundidade de mil a três mil metros  (foram destinados para seu mapeamento cerca de 5 milhões de Reais no fim de 2010).  Esse aquífero se soma ao do Alter do Chão (que se estende do Atlântico ate Manaus), [4] melhor conhecido e mapeado, e influencia a carga e escoamento dos rios amazônicos, interferindo portanto  nos equilíbrios ambientais de superfície. 

Observo também que se trata de vasto campo de pesquisa hidrológica e geofísica, com influência no estudo do papel climático da bacia amazônica, além de ser potencial fonte de água potável para uma população (e uma indústria)  que vive às margens de rios cuja água não é potável. 

A dinâmica das águas e seus movimentos verticais (entre o subsolo e a superfície) e horizontais deveria ser melhor explorada. São raros ou inexistentes os centros de pesquisa voltados ao seus estudo. Não há, por exemplo, um instituto de hidráulica e recursos hídricos da Amazônia ocidental, equipado com tanques de provas – e equipes competentes - para estudo da dinâmica do movimento das águas e sedimentos, a exemplo do tanque oceânico instalado na COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ.

3) Quanto às ricas jazidas minerais, frequentemente mencionadas, pode se afirmar que  não estão completamente localizadas e nem dimensionadas. Sabemos também que não contribuíram para elevar os baixos índices de IDH ou propiciaram o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da região onde foram ou estão sendo exploradas ( ver por exemplo a mineração de bauxita em Trombetas no município de Oriximiná).  O que é agravado pelo fato que a exploração mineral, em muitos casos, tem sido responsável por significativos  e irrecuperáveis danos  ambientais, como no caso dos garimpos de ouro em Serra Pelada e a exploração da bauxita pela INCOME no Amapá.

Os grandes projetos de mineração não fixaram na região, em escala proporcional ao volume dos lucros auferidos, uma significativa competência técnica e gerencial dos sistemas de mineração.  

Nos investimentos programados pelo PAC para a próxima década em mineração, portos, hidroelétricas não há notícias da previsão de que uma porcentagem dos recursos será destinada a promover a consolidação da competência local de gerenciamento, manutenção das instalações de engenharia de projetos e de consultoria para a preparação de novos empreendimentos. 

A criação e fixação na região de competências locais na área de engenharia teria influência na atração e fixação de quadros em outras áreas estratégicas para o desenvolvimento da Amazônia uma vez que dificilmente se consegue atrair e formar quadros de elevada especialização em áreas restritas. 

O processo de fixação e desenvolvimento de competência local requer a formação na região e a atração de profissionais de múltiplas áreas, por vezes complementares e principalmente em áreas básicas ( física, matemática, química, geologia ) que permitem a reprodução da competência instalada (o que dificilmente ocorre nas áreas tipicamente aplicadas como as engenharias, importantes para a execução, mas lentas na reprodução).

4) O ecossistema foz do Amazonas é único no planeta pelo volume de água doce que adentra por cerca de  300 km no oceano Atlântico e pelo volume de sedimentos transportados pelas águas e que se depositam na foz.  Inúmeras espécies de plantas e animais encontraram nos ecossistemas da foz formas de sobrevivência em ambientes  salgados e doces. O estudo dos fenômenos biológicos e podológicos poderá nos levar a desvendar importantes segredos da natureza (um dos grandes desafios da agricultura é descobrir plantas alimentares que possam ser irrigadas com água salgada). 

Não há no entanto um só Instituto da Foz, nacional,  dedicado a estudar a fauna e flora e os ambientes que ocorrem nesse canto inexplorado da ‘biblioteca’. Inexplorado em termos, uma vez que a prospecção do subsolo tem sido uma exceção, revelando que ele é rico  em petróleo. Observe-se também que a França está construindo na Guyana Francesa um instituto de pesquisas biológicas, hídricas e podológicas e destina a ele importantes quantias de recursos financeiros e humanos.

      4. O  PAC não conhece o PAS

Um exemplo das ambiguidades dos interesses que cercam os investimentos do PAC em infraestrutura na Amazônia foi descrito em recente seminário promovido pelo BNDES[5], contabilizado-o como investimento do PAC ( Programa de Aceleração do Crescimento) na Amazônia: o linhão Santo Antônio (Ro) – Araraquara (SP).

Cabe a pergunta:  quem se beneficiará com este investimento? É a rede (nacional) de abastecimento elétrico que se ramifica  a partir de Araraquara (ou proximidades). São Paulo, ou o Estado de Rondônia? O IDH de Rondônia melhorará com o linhão?

Basta verificar se melhorou (em taxas acima do crescimento médio do país) nos últimos dez anos o IDH da região próxima a hidroelétrica de Tucuruí para obter a resposta.

Considerando que o consumo de energia elétrica recolhe impostos nos estados onde ele ocorre, pouca riqueza restará para a região detentora da fonte energética (água e seu desnível) onde está instalada a ‘usina’ hidroelétrica.

Pode-se também perguntar se as compensações ambientais pagas aos Estados de origem da eletricidade respondem por uma fração do valor da energia fornecida à rede de consumo, correspondente  aos royalties do barril de petróleo (para equivalentes de energia produzida) atualmente pagos aos estados produtores.

O próprio Governo deu resposta às ambiguidades das diretrizes que orientam o PAC  ao preparar, na mesma época em que ele foi elaborado, o PAS o Plano Amazônia Sustentável. No PAS se traçam diretrizes voltadas a promover um desenvolvimento da Amazônia, atento às três dimensões da sustentabilidade dos empreendimentos: social, econômica e ambiental, além da formação e fixação de recursos humanos especializados e a criação de uma infraestrutura que permita ao Estado Nacional estar presente nos povoados e pequenas cidades do interior.

Não há notícias quanto à implementação das diretrizes e programas propostos pelo PAS, mas têm sido confirmados os investimentos de cerca de 200 bilhões de reais nos próximos dez anos em obras do PAC ( principalmente hidroeletricas, portos, mineração e linhões).

Questiona-se a efetiva contribuição destas obras para elevar o IDH da  região e de seus povoados do interior ou mesmo para fomentar a pesquisa cientifica que permita decifrar os códigos inscritos nos ‘livros’ da floresta ou promover a fixação no interior de empresas e recursos humanos especializados.

Cabe aqui lembrar uma história que retrata a dificuldade de resolver o conflito entre o poder central, onde se decidem os projetos,  e a periferia amazônica.

Menciono uma célebre página do livro de Samuel Benchimol, “Amazônia um pouco Antes e além depois “ [6]  em que escreve:  ”... Como experiência pioneira a partir dos anos 60 os Bancos Oficiais dos Estados e suas Comissões de Desenvolvimento representam uma nova tendência de regionalizar e descentralizar o processo de desenvolvimento em resposta aos reclamos das unidades federadas que passaram a ter a oportunidade de construir o seu próprio núcleo de decisão política, econômica e financeira.  É pena...que o nosso projeto (de incentivos fiscais para capitalizar bancos dos Estados) apresentados na 1ª reunião dos investidores e empresários Brasileiros .... em 1966 ...foi torpedeado pelo segundo escalão hierárquico....essa derrota atrasou a Amazônia Interior pelo menos vinte anos...

A partir dessa denúncia os empresários usaram em seus projetos políticos o lema ‘não é importante quem decide, mas onde se decide’  e defenderam a ideia de criação de órgãos de financiamento regionais com poder de decisão local .

Dos reclamos do grupo de pressão formado por empresários e professores da Universidade surgiu a SUDAM, a Zona Franca e outros instrumentos de desenvolvimento da região, mas a questão do quem e onde se decide ainda não encontrou equilibrada resposta: o Fundo Amazônia tem sede  no BNDES, no Rio de Janeiro!

Por outro lado, passados quarenta anos, o que se produz na Zona Franca  ainda não responde a projetos de concepção e desenho local. Não há uma só industria que explore os produtos naturais da floresta. Os executivos das empresas instaladas em Manaus respondem às matrizes no exterior ou em S.Paulo. Nada se decide aqui.

Pergunta-se o que fariam as empresas instaladas em Manaus se os incentivos da ZF fossem suspensos? Onde estão sendo projetados os portos que serão construídos na Amazônia? Portos capazes de resistir às severas condições ambientais causados pela variação de 15 metros no nível das águas!

E a manutenção dos linhões das usinas hidroelétricas será efetuada e planejada por escritórios de engenharia instalados em Manaus, em Porto Velho ou Belém?  Quem orienta e realiza a construção dos barcos que navegam pela maior rede de rios do planeta e hoje transportam centenas de milhares de amazonenses?  Os hidroaviões, tão necessários, quem os desenharia e fabricaria?

Os reclamos de 1966 ainda são atuais, desde então novos desafios e oportunidades abriram-se para a Amazônia. Passados cinquenta anos as decisões sobre o que importa para a Amazônia ainda são tomadas longe daqui.

É um desafio promover um efetivo desenvolvimento social associado aos empreendimentos que exploram as riquezas minerais e energéticas. Acreditava-se naquela época que elevar os índices de IDH seria consequência natural dos investimentos produtivos. A previsão se revelou equivocada. A indefinição das relações entre centro e periferia comprometeram a equilibrada distribuição dos benefícios.

Por outro lado um novo portal de oportunidades abriu-se com o papel climático e geopolítico da Amazônia no planeta e sobretudo com as novas técnicas de exploração das riquezas da biodiversidade, que na época ainda não se revelavam com todo seu potencial.

A riqueza do ‘patrimônio’ genético da floresta amazônica multiplicou-se, mas a capacidade de explorá-la no interesse da ciência e para benefício do povo que aqui vive não se multiplicou com a mesma velocidade. Acelerar o crescimento é o desafio desta década. Recuperar o PAS  e temperar o PAC acrescentando - lhe um A,  de Amazônia são os desafios políticos que encontramos na mesa das negociações do papel da Amazônia no ainda inconcluso projeto de construção da Nação. Negociações locais e nacionais.

 (*) Ennio Candotti é diretor-presidente do Museu da Amazônia, em Manaus; e vice-diretor nacional do CNPq.






[1] Alfredo Wagner Breno de Almeida, Terras Tradicionalmente ocupadas, Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Manaus, PGSCA UFAM, 2008
[2]  J.M Melack, J.L.Hess  Remote sensing of the distribution and extent of wetlands  in the  Amazonian basin,  in  W.Junk et alii,  Amazonian floodplains,  Ecological Studies, Springer 2010

[3] Eduardo Goes Neves, O Lugar dos Lugares: Escala e Intensidade dasMmodificações Paisagisticas na Amazônia Central pre Colonial em Comparaçào com a Amazonia Contemporânea.  Ciencia e Ambiente 31  jul dez 2005, UFSM.
[4] Paulo Henrique Ferreira Galvão e outros, Hidrogeologia e geometria dos aquíferos das formações cretáceas Içá e Solimões, Bacia Paleozoica do Solimões, na região de Urucu, Amazonas,  Revista Brasileira de Geociências 42(Suppl 1): 142-153, dezembro de 2012

[5] Ennio Candotti,  É sustentável o desenvolvimento da Amazônia?, em  Um Olhar Territorial para o Desenvolvimento: reflexões sobre a atuação do BNDES na Região Norte do Brasil, Ed. Helena Lastres e outros, BNDES, Rio de Janeiro 2013
[6] pg. 562, Calderaro, Manaus 1977




N.E - Este texto foi escrito para o encontro do VII ENABED  ( Estudos da Defesa), realizado de 4 a 7 de agosto, em Belém.  A apresentação foi feita em mesa redonda sobre Ciência&Tecnologia e a defesa da Amazônia. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário