Nenhum dos Silveira, entre os mortos
e os vivos, soube informar como meu pai, um agricultor analfabeto nascido em
Baturité, no Ceará, tornou-se seringalista. Nem como se envolveu com a
Revolução Acreana merecendo a pensão de veterano de guerra. Aldery, minha irmã
mais velha (éramos 12), narrava a aventura familiar com lapsos de memória
difíceis de suprir com outras fontes. A história que ouvi dela em rápidas
visitas a Icoaraci, cidadezinha próxima a Belém, no Pará, onde morreu em 2006
me autoriza a escrever: Francisco Martins da Silveira foi um dos protagonistas
da saga amazônica de mais de um século que gerou o planeta Acre.
João Martins da Silveira, irmão
instruído de nosso pai, veio do Ceará para a Amazônia no final do século 19
estabelecendo-se no alto rio Acre – provavelmente, no seringal Empresa (hoje
Rio Branco, capital do Estado) – para onde atraiu os irmãos Otávio, Francisco e
José. Após a revolução de 1903 e por conta da crescente valorização da
borracha, subiu o rio Iaco e abriu o seringal Potiguar que transferiu, anos
depois, a Francisco e Otávio. O terceiro irmão, José, aventurou-se pelo vale do
Juruá, só retornando ao Iaco décadas após. Ele e os filhos se tornaram
seringueiros em Nova Olinda, seringal adquirido pelos irmãos.
O Potiguar era pobre de seringa,
mas tinha solo fértil. Chico, experiente agricultor, aproveitou-se disso para
produzir alimentos para os seringais vizinhos, entre os quais o Nova Olinda,
que pertenceu ao abastado Alfredo Vieira. Na década de vinte, com a borracha em
estado de falência, o seringalista lhe transferiu a propriedade em declínio por
uma ninharia.
Francisco Martins e Maria de Nazaré,
ou seu Chico e dona Lelé, formavam um casal incomum. Ele era um tipo rude,
destemido, e ao mesmo tempo amoroso e honesto, que se rendia com facilidade aos
fenômenos míticos e imponderáveis da floresta. Quando se dirigia ao roçado que
cultivava sozinho, o que contrastava com sua condição de seringalista,
imaginava encontrar pelo caminho alguns mortos a quem, embora com sobrosso,
fazia questão de cumprimentar: “Bom dia, compadre”! Dona Lelé, vinte anos mais
nova, carregava no semblante uma timidez indígena, atribuída à sua origem
paraense; mas tinha atitudes justificadas pelo sobrenome de solteira, Marques
de Andrade, de sangue europeu. Falava pouco, não se alarmava, mas aplicava um
olhar fulminante nos casos de reprovação.
Ela não era uma matriarca de seringal
como as que aparecem nos romances ou nas teses de mestrado e doutorado que
tratam do primeiro ciclo da borracha (1890-1914). Lelé foi uma trabalhadora da
floresta, cozinhava para seringueiros que vinham do centro da floresta para
resolver problemas de aviamento ou de doença na sede do seringal, na margem do
rio. Lavava e passava roupa, criava galinhas e patos, tratava dos filhos com
remédios caseiros e nas horas vagas, os alfabetizava com o conhecimento do
curso primário feito no Ceará. Algumas vezes, ouvi dela relatos de sua
adaptação à vida na floresta. Temia as onças e as cobras ao lavar roupa num
igarapé dentro da mata. Seu Chico, como tratava o marido, tinha que
acompanhá-la e permanecer de cócoras no local, com um rifle na mão, até que ela
encerrasse o serviço.
Dona Lelé e seu Chico
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
pegou a família unida em Nova Olinda. A borracha voltara a ter valor por conta
do Acordo de Washington que criou um fundo para reativar os seringais
amazônicos, e por alguns anos viveu-se a expectativa de um novo surto econômico
da borracha. Mas a decisão era apenas uma contingência da guerra: a indústria
norte-americana de pneus, artefatos cirúrgicos e outros produtos de látex ficou
sem a matéria-prima produzida na Ásia porque os japoneses, aliados do nazismo,
bloquearam o abastecimento. Daí a convocação dos “soldados da borracha” no
nordeste brasileiro para protagonizar o efêmero segundo ciclo da borracha na
Amazônia.
Eu não tinha noção do que isso representava
tampouco me dava conta de que morávamos no casarão deixado por Alfredo Vieira
com sinais (apodrecidos) de uma arquitetura requintada. No período da guerra,
meu pai e tio Otávio viveram alguma prosperidade: o armazém se encheu de
mercadorias, as pélas de borracha chegavam dos centros e seguiam rio abaixo
para Manaus e Belém. O casarão, que até então não conhecia a energia elétrica,
ganhou um gerador para ocasiões especiais e acolheu “extravagâncias” como
biscoito e bombons europeus.
As casas
aviadoras estrangeiras com prepostos em Belém e Manaus esvaziavam seus
depósitos de produtos industrializados e supérfluos impondo aos seringalistas
produtos não solicitados. Lembro-me de uma vitrola RCA Victor, do tamanho de um
freezer horizontal, que foi desencaixotada em Nova Olinda. Chegou acompanhada
de uma pilha de discos de música clássica e alguns xotes e baiões. O aparelho
era impulsionado por uma manivela lateral, à qual se “dava corda” para girar o
toca-discos, em cujo braço se prendia uma agulha grossa, de aço, parecendo um
prego curto sem cabeça. Em pouco tempo o extravagante aparelho foi abandonado
num canto da sala, sem uso, embora eu tenha ouvido Mozart e outros clássicos
sem imaginar como eram produzidos sons tão belos.
O casarão ficava acima do chão mais
de um metro, apoiado sobre esteios de maçaranduba e acapu. Tinha pé direito
alto, com varanda, portas e janelas entalhadas, o assoalho desenhado com
lâminas de madeira formando gregas. Uma escada metálica, de cobre, com corrimão
dourado que teria pertencido a um navio naufragado dava acesso à varanda e à
sala de estar. Entre esta e o local das
refeições, onde se estendia uma mesa comprida com bancos corridos, havia um
escuro corredor central com três quartos de cada lado. E, lá no fundo, a
cozinha com paredes e piso de paxiúba.
Num dos quartos à direita – que certamente
teria sido ornado com colchas e rendas no começo do século 20 – meu pai
amontoava folhas de tabaco para serem enroladas em molhos, como ainda hoje se
faz em alguns seringais. Outro quarto era utilizado pelo velho Biu, um negro
viúvo que se tornara membro da família. Ele cultivava roçado, ordenhava vacas,
fazia pão de milho, cozinhava macaxeira e carregava água da cacimba para
abastecer a cozinha. Sofria de uma hérnia na virilha, o que o forçava a
utilizar um instrumento feito de sola para segurar os testículos. Seu quarto
parecia impenetrável, dispondo de uma rede, um baú velho, calças e blusões de
mescla azul estendidos numa corda. Pequenas porções de tabaco migado e um
cachimbo sobre uma mesa tosca completavam o arranjo, ao mesmo tempo bucólico e
estranho.
Sua fala era um resmungo quase
inaudível, que ele complementava com gestos enquanto fixava os olhos em algo
invisível. Demonstrava, entretanto, possuir audição aguçada para os sons da
floresta e do rio. Previa com dois dias
de antecedência (pela batida do motor) a chegada de um batelão ao seringal.
Sabia distinguir a lancha do Jorge Antônio, navegador pioneiro do Iaco, de
qualquer regatão. As queixadas (porcos do mato) que reviravam seu roçado de
macaxeira, e os japós, pássaros de bico grande que comiam parte do seu bananal
o irritavam. Quando a família deixou o seringal ele foi junto, até o Amapá,
onde morreu de velhice.
Imagino que o casarão no qual vivi
a infância era apenas uma sombra do que havia sido durante o primeiro ciclo da
borracha. Na versão do meu tempo não existia banheiro nem sanitário interno.
Para o banho e a lavagem de roupa todos recorriam a uma cacimba natural
localizada a 200 metros, ladeira abaixo, com paredes e cobertura de palhas de
jarina. A “sentina” (sanitário) ficava nos fundos, a 50 metros, fora da cerca
de arame farpado que protegia o quintal. Constava de um buraco cavado no chão
em volta do qual foi construída uma “casinha” de paxiúba com um caixão no
centro. A pessoa fazia suas necessidades fisiológicas de cócoras, naquele
caixote fétido e ao som das varejeiras.
No quintal, animais domésticos e
outros apanhados na floresta somavam mais de uma centena. Porcos, carneiros,
patos, jacus e jacamins se acomodavam à noite debaixo do casarão. As galinhas
dormiam em galinheiro, protegidas contra mucuras (gambás). Na falta da carne de
caça podiam ir para a panela. Com o
mesmo objetivo criavam-se pombos misturados a nambus e rolinhas. E por dentro
de casa circulavam bichos de estimação como paca, macaco, papagaio e corujas
que voavam entre os caibros catando mariposas.
O chamado segundo ciclo da borracha
foi efêmero. E tão distinto do primeiro, que as histórias e situações não cabem
iguais nos relatos. Os pesquisadores bem que podiam estudar sobre a mudança
ocorrida na floresta. Quem sabe iam descobrir que o “centro” e a “margem” dos
seringais inverteram papéis em decorrência da desvalorização da borracha.
Acredito que muitos seringalistas saíram da floresta porque não sabiam viver
dela enquanto base de recursos não mercantis. É possível citar exemplos
eloqüentes dessa inversão: eu, filho de seringalista, morria de inveja dos
filhos de seringueiros que vinham nos visitar, percebendo que eram maduros e
hábeis com as armas, falavam de bichos e plantas com detalhes e encantos que eu
desconhecia.
Minha mãe vivia a nos alertar:
“Cuidado! Tem onça rondando as galinhas e ovelhas no acero da mata”. O alerta
fazia sentido. Certa noite de lua cheia, uma pintada veio buscar a porca
Xandoca que estava em via de parir debaixo do casarão. Acordamos com os gritos
dela, o latido incomum dos cachorros e o alvoroço dos patos e galinhas. Meu
irmão mais velho, Walter, disparou um tiro de espingarda doze na agressora,
quando ela tentava transpor a cerca de quase dois metros de altura com a presa
entre os dentes. O animal ganhou a mata e fomos ver o estrago: além da porca
mãe agonizando com a barriga aberta, restavam cerca de dez embriões de
bacorinhos espalhados em poças de sangue.
Cresci ouvindo e até testemunhando
casos trágicos ou de assombração protagonizados por seringueiros ou por meus
irmãos e irmãs. Ouvia também histórias de almas penadas narradas por meu pai.
Esse mundo mágico não é, percebo agora, para principiantes. Ou seja, não pode ser
compreendido por quem não se entrega para fazer parte dele disposto a viver o
inverossímil como fato do cotidiano. As pessoas que se adaptam a ele vivem em
parelha com o perigo, salvando-se por adestramento natural. E nem sempre é o
mais forte quem vence.
O toque de resistência, arrisco
dizer, é o espírito. O espírito que se rende ao esturro da onça mais que ao
confronto com o animal; o espírito que nega explicar o agouro da guariba e o
espírito que se entrega ao encantamento da jiboia faminta sabendo que pode
desfazê-lo com alguma magia da floresta.
N.E - Este texto publicado hoje integra uma coletânea de crônicas e artigos organizadas pelo autor do Almanacre. Como neta de seu Chico Martins, aproveitei o fato de ser agora responsável pela atualização do blog para prestar minha homenagem ao grande jornalista e pai, Elson Martins. Feliz Dias dos Pais! (Vássia Silveira)
Vássia que maravilha!
ResponderExcluirImpossível comentar sem fazer uma referência a leitura que fiz hoje pela manhã da II Leitura da Liturgia diária (Hebreus, 11,1-2.8-19 ou 1-2.8 -12)
“Leitura da carta aos Hebreus - Irmãos, a fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem. Foi a fé que valeu aos antepassados um bom testemunho. Foi pela fé que Abrão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como herança e partiu sem saber para onde ia” e continua...
Que Elson continue esta narrativa tão deliciosa de ler...e vc não desista da sua,- que espero esteja só adormecida.
Angela de carvalho
Nossa!!! Texto maravilhoso, com direito à aula de história dos seringueiros sofridos da amazônia. Muito bem lembrado pela sra. Angela Carvalho, o texto da carta aos Hebreus, em seu cap 11, pois tal como ocorreu a Abraão, seu Chico foi um guerreiro, destemido que, como aquele, poderia ser chamado o "Pai da fé" em nossos dias.
ResponderExcluirParabéns, Elson! Parabéns Vássia! Vocês nos encantam com suas crônicas/narrativas.