segunda-feira, 23 de maio de 2011

Agradáveis imprevistos no Juruá

Nosso barco ancorado em Valparaíso, no rio Juruá

Na quarta-feira, 20 de abril, aproveitei uma das promoções da empresa aérea Gol e viajei com parte da família (Irizete e Yasmim) para passar a Semana Santa em Cruzeiro do Sul. Seguindo orientação do amigo Pedro Negreiro, que já foi prefeito do município, fiz reserva no Nosso Hotel. Ele explicou: “É um hotelzinho pequeno e barato, bem simples, oferece internet, o quarto é limpo, o café da manhã é bom”. Comprovamos tudo isso. Paguei  90 reais de diária pela família.

Ainda bem, pois a outra opção, que alias fica em frente ao Nosso Hotel, na mesma rua, era o Swamy. Como fazia tempo que eu não ia a Cruzeiro (desde 2006), imaginava que o Swamy era só um pouquinho melhor e mais caro. Estava por fora: é um espigão de 10 andares e no térreo tem um baita restaurante, de luxo, que não tem igual em Rio Branco. Não é para o bico de qualquer um.

Fui conhecer o restaurante e pedi uma moqueca de filhote e vinho seco para acompanhamento. Fiquei aliviado ao saber que o vinho pode ser servido em doses, não precisa o cliente comprar a garrafa. Durante a janta, vi um senhor de meia idade, baixo, moreno, com uma mascara higiênica sobre o nariz e a boca, conversando com funcionários do hotel. Era o dono.

Seu Arlindo Queiroz explicou que teve problema com os dentes, por isso a máscara. Não parece rico, mas progrediu financeiramente como dono de uma ótica. Somente há três anos entrou no ramo de hotelaria. Entrou , presumo, para ficar, pois o investimento com empréstimo do Basa é grande. O seu Swamy  opera com diárias que oscilam entre 200 e 300 reais.

Perguntei ao recepcionista do hotelzinho em que eu estava,  se o hotelzão do seu Arlindo lotava.  “Marrapaz!” – respondeu – isso nem no verão. É muito caro!”. Concluo, então, que seu Arlindo age como cruzeirense da gema, com a ousadia de quem não gosta de ”tiquim”. Trocando uma palavrinha com ele, ouvi que aposta nas mudanças que virão com a conclusão da estrada (BR-364) até o final de 2011.

Mas o Swamy não é nada, comparado com outro projeto de hotelaria e turismo em construção na cidade. Não tive tempo de ir ver, mas, quem viu, me informou que é coisa de cinema e que os proprietários são religiosos. O empreendimento se chamaria Vila Betânia. Fiquei curioso.

Que mudanças?

Quando ouço falar em “mudanças”, neste lado da Amazônia, sinto arrepios. Será, indago a mim mesmo, que Cruzeiro do Sul vai virar uma Rio Branco do Juruá? Faz sentido. Aqui no  Vale do Acre, perdemos mais que ganhamos nessa “viração”. Ganhamos carne, supermercados, pontes, uma enxurrada de carros novos, alguns prédios grandes e muita, muitíssima violência. E o que perdemos?

Do ponto de vista da acreanidade, perdemos terras, os melhores empregos, as melhores casas, o horário, alguns pratos típicos, algum tipo de música, enfim, perdemos paz e cultura. E quem duvida perde a vida. Ou seja: Cruzeiro do Sul tem muito a perder, se o progresso que chegar pela estrada e atravessar sua magnífica ponte sobre o rio Juruá, não tiver coração para enxergar suas belezas naturais e humanas.

Sem programa
Com uma vida inteira de repórter no lombo, estou acostumado à improvisação e à imprevisibilidade amazônicas. Por isso, cheguei à Cruzeiro, na quarta, sem um roteiro sobre o que fazer até domingo. Ainda em Rio Branco, pensei em alugar um barco e visitar a localidade do Crôa, que só conheço por fotos e vídeos. Mas pintou outra idéia: o Bertuca, membro de tradicional família cruzeirense, comprara um barco grande e programou uma ida ao seringal Valparaiso, oito horas Juruá acima. Um casal amigo nosso, Alíce/Carlinhos, nos convenceu a embarcar com eles.

Mesa de pôquer divertia a turma no barco do Bertuca

Saímos de Rio Branco com um pé atrás, quanto a isso. Mas, no bonito e funcional aeroporto de Cruzeiro, melhor que o da capital, encontramos o Bertuca convincente como nunca. Ele dava notícias de que na boca do rio ou igarapé Valparaiso, as matrinchãs (peixe saboroso da região) brincavam de pira. Devíamos sair na quinta feira bem cedo, na sua baleeira (lancha), que permite armar 26 redes ao longo dos 30 metros de comprimento (por 4 de largura) da embarcação, cujo motor é um Mercedes  de 114 cavalos de força (HP).

Ainda na noite de quarta, porem, surgiu o primeiro imprevisto: Yasmim, 11 anos, que viajara meio molezinha, passou a sentir febre alta (39 graus) e dor nas pernas. Tomou um comprimido de Dipirona, mas amanheceu com a mesma febre. A essa altura – passava das 8 horas da manhã de quinta - já tínhamos desistido da viagem. Fomos ao novo hospital do município e em curto tempo Yasmim foi atendida. A médica disse que era uma virose, passou medicação e não contraindicou a viagem. Partimos às 10 horas, com três de traso. 

A natureza compensa

Pu, pu, pu...Começamos a subir o rio. Passamos por baixo da majestosa ponte que cruzeirense nenhum desmerece. Na parte da frente do barco, foi montada uma mesa de baralho. A 1 real a ficha, rolaram Pôquer, Pife-pafe e 31. A bordo tinha 22 pessoas, entre crianças e adultos. Todos admiravam a pujança do rio que começava vazar, saindo da alagação que desalojara famílias em Cruzeiro. É incrível a movimentação de barcos e canoas motorizadas pra cima e pra baixo, o transporte definitivo de uma raça forte. Mulheres conduzem suas crianças em pequeníssimas canoas,  a remo, com o rio lambendo o beiço da embarcação. E parecem tão serenas!

Pu,pu,pu...8 horas, o dia acabou e a situação ficou, literalmente, preta. O gerador não funcionava, a navegação seguia sob a luz parca das estrelas, e não mais que de repente, o motorzão de 114 HP pifou. Ai, os embarcadiços começaram a dar palpites. Lima e Rui, irmãos do Bertuca, o filho Tiago, que é médico, os operadores de máquina e leme que, entretanto, não conheciam aquele trecho, todos  divergiam sobre em qual barranco encostar para consertar a máquina. Estávamos a um estirão da boca do Valparaiso, mas nem a Alice, que nasceu na região, sabia identificar o local.

Bom, os anjos ajudaram e a gente chegou lá, para satisfação das carapanãs. Felizmente, com a experiência de quem viveu no Amapá, indicamos a todos o óleo de andiroba como repelente. Funcionou contra os carapanãs, e melhor ainda contra os piuns que nos atacaram no dia seguinte.

Ah, o dia seguinte! Os ribeirinhos que passavam davam conta de que não existia peixe nenhum em Valparaiso. Sendo assim, ia faltar comida. Foi então que dona Marisa, outra irmã do Bertuca por parte de pai, deu seu jeito na cozinha realizando o milagre dos pães com algumas piabas. Dois enormes isopôres com gelo, sem finalidade, foram doados ao pescador da região, seu Marmoud, que conseguiu as piabas.

A essa altura, com os piuns sob controle, quem precisou tomar banho ou ir ao banheiro recorreu à escola municipal de Valparaiso, Alfredo Said, que se encontrava  vazia no feriado. E aos poucos, a criançada abriu caminho para o banho na água fria do igarapé.

Final feliz
Quando todos se preparavam para a descida, o Juruá ofereceu uma cena que comoveu a todos. Vários barcos pequenos começaram a chegar transportando crianças para uma reunião da Pastoral, na escola. Eram mais de 100, e vinham todas com um colete salva-vidas vermelho, parecendo um belo bando de guarás (pássaro). Apinharam o barranco verde com sua alegria e curiosidade.

Finalmente, às12h40, zarpamos de volta, com a certeza de que, na descida, levaríamos menos tempo para chegar a Cruzeiro do Sul. O motorzão ainda ameaçou falhar, duas ou três vezes, mas às 17 horas, passamos de volta sob a ponte. E Bertuca fez a pergunta obvia:

- Valeu o passeio, apesar dos mosquitos e da fome?

Claro que valeu, respondemos em coro. Eu, convencido de que sem esses imprevistos, muito da graça da viagem teria se perdido. Não acredito que o previsível tenha o mesmo encanto do imprevisível, acrescentei cá com os meus botões.

Bertuca riu à larga com essa cumplicidade amazônica.


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