* Elson Martins
Na Vila Icoaracy, nas proximidades de Belém, Estado do Pará,
vive um artesão acreano, especialista em entalhe em madeira e na produção de
cerâmica marajoara. Trata-se do José Maria Pinho, nascido no Seringal Nova
Olinda, no alto Rio Iaco. Ele tem 60 anos (2007) ou quase isso, é casado e
possui duas filhas bonitas: uma delas é formada em medicina, a outra é
comissária da companhia aérea Tam.
A história
do Zé Maria poderia começar com um
espanto: “É um milagre que tenha nascido”!
Sua mãe (minha irmã) Aldery viveu
45 anos no alto rio Iaco, no seringal Nova Olinda, e faleceu em Icoaracy com
mais de 80 anos. Na década de quarenta, ela casou em Sena Madureira com Salomão Pinho, um
“arigó” (nordestino que migrava para a Amazônia atraido pela economia da
borracha). Alfaiate de profissão, ele costurou calças e blusões de mescla azul
para seringueiros, mas, a partir de 1950, passou a viver na cidade (Sena
Madureira, depois Rio Branco) vestindo a elite seringalista. Na capital, sua
alfaiataria funcionou no segundo distrito, nas proximidades do histórico Hotel
Madrid, numa época em que o “fato” (terno) de linho branco ou de casimira
Aurora azul impunha-se em todas as solenidades, e até no dia-a-dia das
repartições públicas.
Morando com o casal, durante muito tempo eu fui o “cristo” que saindo do cruzamento da avenida Ceará com a rua Marechal Deodoro, junto ao campo do Rio Branco Futebol Clube, no primeiro distrito da cidade, levava seu almoço até a alfaitaria no segundo distrito. Fazia uma longa caminhada a pé, tendo que atravessar o rio Acre de catraia. Muitas vezes, por conta da travessia, o cunhado recebia a comida fria, porque, para sobrar dinheiro para o picolé e sem que ele soubesse, eu aguardava o Jabuti, uma catraia grande e modorrenta que mantida pelo governo fazia a travessia de graça.
Aldery tinha o útero pequeno, e por isso não devia engravidar. Mas só descobriu o risco na primeira gestação, que terminou por abortar. Como não havia, à época, nem preservativos nem campanhas para limitação de filhos, engravidou uma segunda vez. Aí, a familia providenciou para que fosse atendida onde a medicina oferecia mais recursos. A escolha foi Fortaleza, capital cearense aonde chegou de navio, precisando retirar o feto que estava morto no útero.
“A senhora não vai sobreviver a uma terceira gravidez”, advertiu o médico que a atendeu. Mas, imagina se não ia acontecer de novo! E dessa vez ela foi recomendada a um especialista de Goiânia, que confirmou o risco e a desenganou: morreriam mãe e filho durante o parto.
Aflita, mas conformada, Aldery retornou a Sena Madureira decidida a morrer no meio da família. Subiu o rio Iaco e passou a morar num casebre no topo de um morro no seringal Nova Olinda, a um quilômetro da casa dos pais. Separava-os apenas um descampado com ladeiras e arbustos.
Quando não estava costurando calças de mescla azul para os seringueiros e os parentes, o marido Salomão se enfiava no mato ou montava numa canoa para caçar e pescar. A mulher o aguardava no barracão da família. Ao retornar, ele soprava (apitava) um cartucho seco avisando, ao que Aldery respondia soprando outro cartucho.
Assim, chegou o dia em que Salomão apitou, apitou, sem resposta. Aldery estava sentindo as dores do parto e nossa mãe, Lelé, tinha mandado alguém buscar a parteira Maria Carneiro numa colocação do Centro (nas entranhas da mata onde vivem e trabalham os seringueiros). O comboieiro havia partido na burra chamada Ligeira, com a recomendação para trazê-la na garupa, voando. Enquanto isso, o desespero tomava conta dos irmãos e das comadres, e as crianças foram levadas para longe da casa, para pescar mandi no igarapé ou brincar numa ponta de praia em frente.
Como a parteira demorava chegar, uma outra pessoa pegou o varadouro (caminho aberto na floresta ligando a sede do seringal às colocações dos seringueiros) para ver o que tinha acontecido. Não tardou a descobrir que o primeiro emissário montava a burra e dona Maria Carneiro, coitada, um “tiquim” de gente vinha a pé com lama no joelho. A situação foi corrigida e a burrinha irrompeu na margem, finalmente, com sua carga preciosa.
A essa altura, uma senhora de nome Palmira, amiga da familia, tentava ajudar recorrendo a métodos supostamente utilizados pelos índios para fazer o parto: amarrou uma toalha molhada em volta da barriga da parturiente, pedindo a esta que ficasse de cócoras sobre uma caixa de sabão Zebu, de forma que o bebê pudesse ser despejado no caixote. Palmira acreditava ser útil soltar umas baforadas com cigarro “porronca” em volta da cena insólita.
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Zé Maria em foto recente (2013), com mais de 60 anos, mora em Coaracy, próximo a Belém (PA). |
Ah, pra quê! Quando a miúda Maria Carneiro viu aquilo foi logo esbravejando: “que diabo de marmota é essa”? Desamarrou a toalha, chutou a caixa de sabão para longe e começou novo procedimento deitando a parturiente na cama, examinando-a com sua sabedoria de parteira. O braço do menino estava de fora; ela o empurrou para dentro, em seguida preparou um chá e banho quente com ervas; rezou baixinho, depois tranquilizou a todos com o informe de quem domina o que faz :
- O menino (seria adivinhação?) vai nascer, mas só daqui a umas seis horas.
Nem mais nem
menos, o Zé Maria nasceu; só que veio ao mundo sem a placenta, ficando roxo e
sem chorar o choro da vida. Pelo menos a mãe estava salva, pensou a família,
enquanto Maria Carneiro, incrivelmente calma, tentava palmadinha, sopro na
boca, pressões no ventre do bebê...Como ultimo recurso, perguntou se existia na
casa algum vinho, mesmo aberto e encostado? Com a resposta positiva, pediu que
esquentassem um pouco numa xícara, pegou uma colherinha com a bebida e enfiou
na garganta da criança que ”esgoelou”, provocando alívio geral. O avô (meu pai)
disparou os três tiros de espingarda apara avisar que o seringal tinha mais um
homem.
Enquanto os tiros ecoavam na floresta, a curiosa Palmira acompanhou, com total encantamento, Maria Carneiro retirar a placenta de dentro do útero da Aldery, uma tarefa complicada mesmo para um especialista em medicina. E a percebeu reconfortada, por ter colocado em prática, com êxito, suas habilidades.
Só então a pequenina parteira saiu do quarto. De forma acanhada, cumprimentou a todos na cozinha e aceitou um café. Depois, discretamente, escolheu um canto para ficar sozinha. E, discretamente, começou a chorar.
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