terça-feira, 3 de setembro de 2013

Parto Impossível

* Elson Martins

Na Vila Icoaracy, nas proximidades de Belém, Estado do Pará, vive um artesão acreano, especialista em entalhe em madeira e na produção de cerâmica marajoara. Trata-se do José Maria Pinho, nascido no Seringal Nova Olinda, no alto Rio Iaco. Ele tem 60 anos (2007) ou quase isso, é casado e possui duas filhas bonitas: uma delas é formada em medicina, a outra é comissária da companhia aérea Tam.

A história do Zé Maria  poderia começar com um espanto: “É um milagre que tenha nascido”!  Sua mãe (minha irmã) Aldery viveu 45 anos no alto rio Iaco, no seringal Nova Olinda, e faleceu em Icoaracy com mais de 80 anos. Na década de quarenta, ela casou  em Sena Madureira com Salomão Pinho, um “arigó” (nordestino que migrava para a Amazônia atraido pela economia da borracha). Alfaiate de profissão, ele costurou calças e blusões de mescla azul para seringueiros, mas, a partir de 1950, passou a viver na cidade (Sena Madureira, depois Rio Branco) vestindo a elite seringalista. Na capital, sua alfaiataria funcionou no segundo distrito, nas proximidades do histórico Hotel Madrid, numa época em que o “fato” (terno) de linho branco ou de casimira Aurora azul impunha-se em todas as solenidades, e até no dia-a-dia das repartições públicas.

Morando com o casal, durante muito tempo eu fui o “cristo” que saindo do cruzamento da avenida Ceará com a rua Marechal Deodoro, junto ao campo do Rio Branco Futebol Clube, no primeiro distrito da cidade, levava seu almoço até a alfaitaria no segundo distrito. Fazia uma longa caminhada a pé, tendo que atravessar o rio Acre de catraia. Muitas vezes, por conta da travessia, o cunhado recebia a comida fria, porque, para sobrar dinheiro para o picolé e sem que ele soubesse, eu aguardava o Jabuti, uma catraia grande e modorrenta que mantida pelo governo fazia a travessia de graça.

Aldery tinha o útero pequeno, e por isso não devia engravidar. Mas só descobriu o risco na primeira gestação, que terminou por abortar. Como não havia, à época, nem preservativos nem campanhas para limitação de filhos, engravidou uma segunda vez. Aí, a familia providenciou para que fosse atendida onde a medicina oferecia mais recursos. A escolha foi Fortaleza, capital cearense aonde chegou de navio, precisando retirar o feto que estava morto no útero.

“A senhora não vai sobreviver a uma terceira gravidez”, advertiu o médico que a atendeu. Mas, imagina se não ia acontecer de novo! E dessa vez ela foi recomendada a um especialista de Goiânia, que confirmou o risco e a desenganou: morreriam mãe e filho durante o parto.

Aflita, mas conformada, Aldery retornou a Sena Madureira decidida a morrer no meio da família. Subiu o rio Iaco e passou a morar num casebre no topo de um morro no seringal Nova Olinda,  a um quilômetro da casa dos pais. Separava-os apenas um descampado com ladeiras e arbustos.

Quando não estava costurando calças de mescla azul para os seringueiros e os parentes, o marido Salomão se enfiava no mato ou montava numa canoa para caçar e pescar. A mulher o aguardava no barracão da família. Ao retornar, ele soprava (apitava) um cartucho seco avisando, ao que Aldery respondia soprando outro cartucho.

Assim, chegou o dia em que Salomão apitou, apitou, sem resposta. Aldery estava sentindo as dores do parto e nossa mãe, Lelé, tinha mandado alguém buscar a parteira Maria Carneiro numa colocação do Centro (nas entranhas da mata onde vivem e trabalham os seringueiros). O comboieiro havia partido na burra chamada Ligeira, com a recomendação para trazê-la na garupa, voando. Enquanto isso, o desespero tomava conta dos irmãos e das comadres, e as crianças foram levadas para longe da casa, para pescar mandi no igarapé ou brincar numa ponta de praia em frente.

Como a parteira demorava chegar, uma outra pessoa pegou o varadouro (caminho aberto na floresta ligando a sede do seringal às colocações dos seringueiros) para ver o que tinha acontecido. Não tardou a descobrir que o  primeiro emissário montava a burra e dona Maria Carneiro, coitada, um “tiquim” de gente vinha a pé com lama no joelho. A situação foi corrigida e a burrinha irrompeu na margem, finalmente, com sua carga preciosa.

A essa altura, uma senhora de nome Palmira, amiga da familia, tentava ajudar recorrendo a métodos supostamente utilizados pelos índios para fazer o parto: amarrou uma toalha molhada em volta da barriga da parturiente,  pedindo a esta que ficasse de cócoras sobre uma caixa de sabão Zebu, de forma que o bebê pudesse ser despejado no caixote.  Palmira acreditava ser útil soltar umas baforadas com cigarro “porronca” em volta da cena insólita.
           
Zé Maria em foto recente (2013), com mais de 60 anos, mora em Coaracy, próximo a Belém (PA).

Ah, pra quê! Quando a miúda Maria Carneiro viu aquilo foi logo esbravejando: “que diabo de marmota é essa”? Desamarrou a toalha, chutou a caixa de sabão para longe e começou novo procedimento deitando a parturiente na cama, examinando-a com sua sabedoria de parteira. O braço do menino estava de fora; ela o empurrou para dentro, em seguida preparou um chá e banho quente com ervas; rezou baixinho, depois tranquilizou a todos com o informe de quem domina o que faz :

 - O menino (seria adivinhação?) vai nascer, mas só daqui a umas seis horas.
 Nem mais nem menos, o Zé Maria nasceu; só que veio ao mundo sem a placenta, ficando roxo e sem chorar o choro da vida. Pelo menos a mãe estava salva, pensou a família, enquanto Maria Carneiro, incrivelmente calma, tentava palmadinha, sopro na boca, pressões no ventre do bebê...Como ultimo recurso, perguntou se existia na casa algum vinho, mesmo aberto e encostado? Com a resposta positiva, pediu que esquentassem um pouco numa xícara, pegou uma colherinha com a bebida e enfiou na garganta da criança que ”esgoelou”, provocando alívio geral. O avô (meu pai) disparou os três tiros de espingarda apara avisar que o seringal tinha mais um homem.

Enquanto os tiros ecoavam na floresta, a curiosa Palmira acompanhou, com total encantamento, Maria Carneiro retirar a placenta de dentro do útero da Aldery, uma tarefa complicada mesmo para um especialista em medicina. E a percebeu reconfortada, por ter colocado em prática, com êxito, suas habilidades.

Só então a pequenina parteira saiu do quarto. De forma acanhada, cumprimentou a todos na cozinha e aceitou um café. Depois, discretamente, escolheu um canto para ficar sozinha. E, discretamente, começou a chorar.

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