sábado, 10 de maio de 2014

BR 364: Acreana por excelência

* Elson Martins

No feriadão da Semana Santa, entre 17 e 21 de abril, percorri os 650 km da BR-364 de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, num carro pequeno (um Fiat Siena 1.0), para ver se é verdade o que alguns políticos que desdenham das coisas do Acre dizem da estrada. Não é. Ela pode parecer imperfeita, mas  não oferece riscos, e tem qualidades que a torna fundamental para a sustentabilidade do Estado.
  
Saí na madrugada de quinta-feira, 17, de carona com um casal cruzeirense. Paramos para algumas fotos e para comer uma farofa num restaurante na beira do Rio Gregório. Não demoramos mais que 9 horas na ida, e também na volta. Afirmo com todas as letras que a estrada não é o inferno que alardeiam. Eu até me preveni, induzido pelo agouro, optando por um tênis velho e uma calça esgarçada para empurrar o Fiat, escapar de algum atoleiro, afora os riscos de trombar com veículos pesados que nos jogassem pro meio do mato.

Fui preparado para enfrentar o pior a partir de Sena Madureira. Sabia que de Rio Branco até o município, passando pelo Bujari, os solavancos persistem desde que o trecho foi asfaltado, no inicio dos anos 90. Não importa! Há pelo menos duas décadas, tem sido possível trafegar sem interrupção, e isso vale muito. Quantas vezes, mais atrás, quis visitar minha irmã Altinha, que mora lá com uma reca de filhos e netos, mas teria que escolher a opção avião, já que a estrada passava a maior parte do tempo interrompida. Então, pensava na pista de pouso que tem lá e desistia!

A estrada de 650 km tem mais de 30 pontes sobre
rios e igarapés, quatro acima de 300 m e uma,
sobre o Rio Juruá, de 550 metros. (Foto: Elson Martins)

Nos anos 1970, participei como jornalista da Operação Amizade, que contou com aviões e helicópteros de países da América Latina para sobrevoar o espaço aéreo do Acre, levando serviços médicos aos seringueiros e ribeirinhos em áreas remotas. Embarquei num Bandeirante da FAB, com escala em Sena Madureira, e o piloto era o brigadeiro Protásio de Oliveira, da Aeronáutica, um pioneiro da aviação na Amazônia que calculou mal o pouso e teve que arremeter a aeronave causando arrepios nos passageiros. Imaginem se não fosse um brigadeiro!

Agora, no pequeno Fiat, mantive olhos e ouvidos abertos. Sabia que o fantasma do Rio Madeira obrigara o governo a escancarar o trecho  até Cruzeiro, vulnerável no inverno, para trazer combustível e gás de cozinha comprados em Manaus, o que me pareceu uma baita provocação à temida tabatinga existente entre Manoel Urbano e Feijó. Na verdade, esperava encontrar a estrada em frangalhos, e me aborrecia ter que concordar com políticos boquirrotos que não gostam do Acre e por isso vivem a esculhambar com nossas dificuldades e tradições.

Em 1986, fiz a primeira viagem pela BR, ainda sem asfalto, do jeito que o 7o. BEC (Batalhão de Engenharia e Construção) do Exército a deixou, em 1975. Naquele ano (86), o jovem engenheiro Flaviano Melo, que tinha entrado na politica como prefeito biônico de Rio Branco, nomeado pelo Presidente da República na ditadura militar, se lançou candidato ao Governo do Estado pelo PMDB. Como fez boa gestão na capital, os acreanos (eu inclusive) acreditavam que seria também um bom Governador. Ele, entretanto, conhecia pouco da efervescência política do  Estado, na época,  e tanto quanto outros que o antecederam temia a belicosa “bancada do Juruá” na Assembleia legislativa, numerosa, mas nem sempre edificante.

Já se respirava a volta dos militares aos quarteis e no Acre começavam pesar fatores eleitorais fortes à esquerda: além dos oito sindicatos de trabalhadores rurais fundados pela Contag, e a Igreja de Dom Moacyr Grechi, com mais de mil Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e o Partido dos Trabalhadores (PT)  engatinhando no caminho das urnas. Longe das encrencas locais, porque vivia no Rio de Janeiro, Flaviano, amparado politicamente pelo pai deputado Raimundo Melo (PMDB), considerado “o pai dos pobres”, precisava de luz própria. Por isso, sua equipe de campanha recomendou que enfiasse o pé na BR-364, no rumo do Juruá.

Afinal, como engenheiro da Construtora Mendes Junior que ajudou a construir a ponte Rio-Niterói , o candidato poderia realizar o sonho dos acreanos de asfaltar a estrada. Montou uma caravana com três ônibus novos da Viação Rio Branco, mais três a quatro camionetes F-1000 com tração nas quatro rodas, colocadas à sua disposição, além de alguns veículos menos adequados,, de puxa-sacos de plantão, e seguiu em cortejo embalado pela musiquinha de campanha: “O que o povo quer será”!

Após cinco dias de atoleiro e pernoites mal dormidos, a caravana chegou a Cruzeiro em festa, causando um “frisson” na cidade. Os atropelos da viagem e também o acanhamento do candidato estreante, contudo, não atrapalharam a estratégia eleitoral. Foi eleito governador com votos dos vales do Acre e do Juruá em clima esperançoso. Mas o que o povo queria de verdade – a conclusão da estrada com asfalto - só aconteceria três décadas e meia depois, em 2013, no governo  da Frente Popular. E coube ao governador Tião Viana cortar a fita.


Acreanidade vence os agouros

Famílias oriundas da floresta ocupam a beira da estrada e acenam
aos passantes dando boas vindas (Foto: Elson Martins)

Com a cadernetinha de repórter e esferográfica em punho, passei a fazer anotações. Em Sena Madureira começa o pior trecho, que vai até o rio Caeté, na direção de Manoel Urbano. Em vários pontos tem buracos, afundamento no asfalto e desmoronamento nas laterais, mas nada que prudência e velocidade reduzida não resolvam. E logo aparecem duas belas e sólidas pontes construídas sobre os rios Caetés (175 m)  e Purus (407 m) que animam. Até Cruzeiro, são mais de trinta, das quais são imponentes as que atravessam, além do Purus, os rios Envira (300 m), Tarauacá (300 m) e Juruá (550 m), em concreto armado, com investimento de R$ 245 milhões.

Na sequência vem o trecho mais temido, de Manoel Urbano a Feijó, que até  surpreende: a profunda tabatinga que parecia intransponível deu lugar a toneladas de brita, pedra e cimento importados da Colômbia, restando um leito sólido com pequenos afundamentos pelo tráfego pesado. Sem exagero, dá pra falar em tapete sobre a tabatinga. Outro trecho ruim, só vai aparecer nos 46 km entre Feijó e Tarauacá, que é meio antigo e demanda recapeamento. Daí pra frente a viagem flui cada vez melhor. Ou seja, dos 650 km do percurso, apenas 80, se muito,  vão exigir reparos no próximo verão.

Logo, percebi que a estrada tem importância especial para os acreanos, os “nascidos” e os “de coração”. Pode parecer imperfeita, presumo, para quem não consegue enxergar os traços de acreanidade que existe nela, nem valoriza seu perfil histórico, ambiental e cultural. Ela não se parece, por exemplo, com a BR-317, Rio Branco-Brasileia, porque nas suas margens não tem cerca de arame farpado, nem pastos imensos afastando a floresta, nem mansões coloniais vigiadas por vaqueiros e capangas. Também não se vê o boi tomando o lugar do homem, como tão bem registrou o nosso magistral pintor primitivo, Hélio Melo .

O que se vê na BR-364 é a união dos extremos do Acre, um traço paralelo à Linha Cunha Gomes que faz divisa com Rondônia e Amazonas ao norte; e ao sul, amarra os rios que levam às comunidades das cabeceiras, onde convivem extrativistas e ribeirinhos com grupos indígenas em reservas que, somando com os parques nacionais e áreas protegidas, desenham um corredor ecológico na fronteira internacional com a Bolivia e o Peru. Com a estrada, mesmo imperfeita, os vales do Purus, do Juruá e do Acre podem ser considerados uma coisa só, alimentando a ideia de um futuro com florestania.

Ao longo dos 650 km aparecem sítios e casinhas com excelência acreana: varais estendidos com roupas coloridas, pequenos açudes, bananais, roça de mandioca e cana Caiana, para fazer açúcar mascavo e alfinim. Também se vê muitas crianças e a família inteira na janela, acenando, dando boas vindas. No cruzamento de rios e igarapés, que ganharam pontes reforçadas, nascem as vilas com povos da floresta. Anotei sinais (plaquinhas) dessa cultura desarmada e original privilegiando a simplicidade e o afeto: “Pensão da Tia”, “Aqui tem café com bolo”, “Temos açaí de Feijó”...

Não consegui por a mão, ainda, num projeto detalhado que o governo tem para ocupar e desenvolver a região da rodovia. Sei, entretanto, que a ideia é apostar nos sitiantes tradicionais para plantar cocos, açaí, café e outras espécies, bem como incentivar a criação de peixes, galinhas e suínos. Também prevê hortas e um pouco de gado leiteiro. As famílias assentadas já contam com a propriedade da terra e com a energia do programa Luz para Todos. Falta melhorar o transporte, mantendo ônibus novos em circulação. Os poucos que vi estão sucateados e oferecem riscos que não podem ser atribuídos à estrada.

Na travessia do Rio Gregório, paramos num restaurante da pequena vila que brota no lugar e almoçamos a farofa que levamos, feita com carne de sol. A dona do estabelecimento, sorridente, cedeu os pratos e os talheres, e mandou que uma jovem nos atendesse sem cobrar pelo atendimento. Isso é um gesto generoso, tipicamente, da cultura da floresta.


Uma epopeia

Já se vão mais de 40 anos desde que a BR-364 Rio Branco-Cruzeiro do Sul começou a ser aberta pelo 7o. BEC, do Exercito,  com duas frentes de trabalho: uma partindo de Cruzeiro até o Rio Gregório; outra na direção contrária, saindo de Rio Branco. Carlinhos, o condutor do Fiat em que viajávamos, era do batalhão e participou da primeira equipe de 14 homens que entrou na mata bruta em 1971 para uma permanência de dois meses na frente pioneira. Ele disse que parte dos alimentos era lançada de avião, em paraquedas,  e os militares completavam o rancho com a caça, o peixe e frutos colhidos na floresta. Havia fartura: o soldado Do Vale matou, de uma só vez, 12 pacas.

Em meados dos anos setenta o Batalhão largou a estrada, cabendo ao desestruturado Departamento de Estradas de Rodagem do Acre operar o milagre de manter o que estava feito. Assim se passaram os anos até o início de 2001, quando o então governador Jorge Viana se interessou em avançar com a melhoria dos trechos mais complicados. Conhecendo o histórico da estrada e ouvindo horrores sobre a tabatinga, Viana chegou a pensar em estrada de ferro como alternativa. Mas a ideia não vinga. É forte no Congresso Nacional o lobby que defende o transporte rodoviário.

Ou seja, a alternativa era conseguir recursos de Brasília para finalizar a estrada problema. O ex-governador Orleir Cameli (falecido), antes do Jorge Viana, tentou isso, mas o buraco era mais embaixo. Como dono de construtora, asfaltou alguns trechos, ganhou dinheiro e se aquietou. Jorge foi além porque contou com o mestre e tutor politico Luís Inácio Lula da Silva para abrir o cofre federal. No seu Governo da Floresta, cujo logotipo era uma arvorezinha daquelas que se vê enfeitando cadernos escolares, o Acre ganhou estatura ecológica. Digamos que fez o dever de casa: produziu o ZEE (Zoneamento Econômico Ecológico) e ajudou a formar um corredor de áreas protegidas junto a fronteira internacional com Peru e Bolivia. O Parque Nacional da Serra do Moa, a Reserva Extrativista do Juruá, , as terras indígenas, incluindo a dos Isolados e o Parque Estadual do Chandless, entre outras, passaram a fazer parte desse corredor.

Cada trecho pronto foi uma festa para o governo, parlamentares,
técnicos e moradores da beira da estrada (Foto: Secom)

O ex-governador (hoje senador) saiu com o irmão Tião Viana, atual governador (na época senador) para arrancar recursos do PAC e convencer o DNIT, o órgão gestor das estradas federais,  a enxergar sua responsabilidade nesta ponta ocidental da Amazônia. Coube ao historiador e professor Binho Marques, sucessor de Jorge no governo (2006-2010), com dinheiro em caixa promover a conclusão do trecho acreano. Nunca se viu tanto rebuliço no império da tabatinga: seis empresas construtoras, 1500 máquinas pesadas, 3 mil e quinhentos homens metendo a mão na massa, montanhas de terra, brita, areia, cimento e ferro sendo removidas de um lado para outro, tudo acontecendo sobre a critica insensata dos pregoeiros do Apocalipse.

Binho passou o bastão ao Tião Viana que enfrentou um contingenciamento de verbas em Brasilia, mas o superou, após remover a tabatinga de alguns gabinetes. Nos anos 2011, 2012 e 2013, as seis empresas que tocavam a obra abandonaram os canteiros e coube o Deracre, mais uma vez, garantir sobrevida à BR. O engenheiro Marcus Alexandre, atual prefeito de Rio Branco, então na direção do departamento, com seus funcionários e 100 empresas terceirizadas na execução concluiu a rodovia em 2013.

“Eu fui ao Acre e vi que, realmente, a construção da BR-364 no estado é uma epopeia”- declarou o ministro do Transportes, César Borges, ano passado. Que bom que ele viu!

Riqueza da floresta

A BR-364 entre os extremos do Acre tem no entorno da parte sul um potencial natural ainda pouco conhecido, mas que já se sabe enorme. A estrada é  quase uma linha reta de 520 quilômetros contados a partir de Sena Madureira, ou de 440 quilômetros se contados a partir de Manoel Urbano. No entorno se estende o complexo florestal do Mogno e Liberdade (referencia ao Rio Liberdade), onde se acha a maior concentração de mogno na Amazônia. Da linha em zigue-zague da fronteira com o Peru e a Bolivia descem rios poderosos como Purus, Envira, Tarauacá e Juruá correndo no sentido  transversal, com mistérios e tesouros a serem desvendados.

A informação parte de quem tem a responsabilidade de cuidar desse patrimônio ambiental no Estado: o titular da Secretaria de Indústria e Comércio e do Desenvolvimento Florestal, Edvaldo Magalhães, e seu secretário –adjunto  Fábio Vaz. Os dois trocam experiências enriquecedoras com as comunidades tradicionais que ocupam as margens da rodovia e, na medida do possível, vão adequando a linguagem técnica aos anseios dos sábios da floresta.

Até agora, a estrada tem sido ocupada por ex-seringueiros e ribeirinhos, além dos indígenas cujas aldeias acompanham 20 quilômetros da rodovia nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Isso impõe, de algum modo, um diálogo entre saberes, entre as tecnologias do planejamento governamental e as praticas tradicionais.

Levei algum tempo conversando com os dois na quinta-feira passada. Edivaldo lembrou um encontro que manteve com moradores sobre a formação de vilas ao longo da BR-364 que poderão se transformar em cidades no futuro. Uma senhora de nome Aparecida fez um discurso que ficou gravado e o deixou emocionado:

-Ela disse que queria uma vila com cara de floresta. E essa vila está nascendo na beira do Rio Gregório. Construímos casas de madeira como a comunidade quer, e até o coordenador do projeto foi escolhido entre eles.  A coisa funciona rápido e simples quando são eles que escolhem como fazer.

Segundo o secretário, vários projetos estão em andamento nas cidades de Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, e todos estão relacionados às possibilidades de desenvolvimento sustentável envolvendo famílias extrativistas. Em Feijó, por exemplo, foi criado um projeto de fruticultura com uma despolpadora de frutos e empacotamento de grãos, prevendo o crescimento da produção de açaí. Já foram plantados 2 mil hectares  da espécie. E está previsto em curso, também, a produção de bananas prata, maça e comprida, e 115 moradores desenvolvem a criação de peixe em açudes.

Outro projeto considerado promissor é o manejo comunitário de madeira com 200 famílias já contratadas. O secretário garante que o manejo será feito “do jeito deles”, com serraria portátil e modo tradicional de arrasto. “Vamos legalizar a prática deles, tradicionalmente sustentável”. A atividade será fortalecida, segundo Edvaldo, com polos moveleiros montados em Tarauacá  e Cruzeiro do Sul. Neste município já existem 15 industrias trabalhando.

Considerada capital do Vale do Juruá, Cruzeiro tem uma população com característica empreendedora invejável. Há décadas se ouve falar bem da farinha local, considerada a melhor do país (e quiçá do mundo); do pó de guaraná, do biscoito de goma, dos barcos que eles constroem por lá e do refrigerante de guaraná. Edivaldo, que é cruzeirense, se orgulha de contar a história da “Vó Didi” (falecida há cerca de um mês, com 90 anos), que trouxe do Ceará a receita do biscoito de goma. A mágica é simples: o biscoito só presta se for secado ao sol.

Pois uma fábrica de biscoitos será inaugurada na cidade no próximo dia 10 de maio, com 12 secadores de sol. Várias mulheres que receberam a receita como herança de Vó Didi organizaram a cooperativa Cooperbiscoitos e vão tocar a fábrica construída pelo governo com financiamento ambiental. Outra novidade vem de uma família que constrói barcos em Cruzeiro. Trata-se da “Bajola”, uma voadeira com motor de “rabo” que bate os modelos de metal em velocidade e estabilidade. Certamente, também no preço. Tem mais: Os filhos do senhor Zinho  (falecido), tradicional plantador  e industrial do guaraná, decidiram manter a atividade do pai e acabam de lançar o refrigerante “Cruzeirense”, produzido numa fábrica que em julho  começa a funcionar em escala regional.

Todos esses produtos made in Vale do Juruá, como preveem Edivaldo Magalhaes e Fabio Vaz, poderão sair pela estrada e conquistar mercados com protagonismo e cultura diferenciada. Quem sabe, substituindo gostos, práticas e conceitos bolorentos.   


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