No feriadão da Semana Santa, entre 17 e 21
de abril, percorri os 650 km da BR-364 de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, num
carro pequeno (um Fiat Siena 1.0), para ver se é verdade o que alguns políticos
que desdenham das coisas do Acre dizem da estrada. Não é. Ela pode parecer
imperfeita, mas não oferece riscos, e
tem qualidades que a torna fundamental para a sustentabilidade do Estado.
Saí
na madrugada de quinta-feira, 17, de carona com um casal cruzeirense. Paramos
para algumas fotos e para comer uma farofa num restaurante na beira do Rio
Gregório. Não demoramos mais que 9 horas na ida, e também na volta. Afirmo com
todas as letras que a estrada não é o inferno que alardeiam. Eu até me preveni,
induzido pelo agouro, optando por um tênis velho e uma calça esgarçada para
empurrar o Fiat, escapar de algum atoleiro, afora os riscos de trombar com
veículos pesados que nos jogassem pro meio do mato.
Fui
preparado para enfrentar o pior a partir de Sena Madureira. Sabia que de Rio
Branco até o município, passando pelo Bujari, os solavancos persistem desde que
o trecho foi asfaltado, no inicio dos anos 90. Não importa! Há pelo menos duas
décadas, tem sido possível trafegar sem interrupção, e isso vale muito. Quantas
vezes, mais atrás, quis visitar minha irmã Altinha, que mora lá com uma reca de
filhos e netos, mas teria que escolher a opção avião, já que a estrada passava
a maior parte do tempo interrompida. Então, pensava na pista de pouso que tem
lá e desistia!
A estrada de 650 km tem mais de 30 pontes sobre rios e igarapés, quatro acima de 300 m e uma, sobre o Rio Juruá, de 550 metros. (Foto: Elson Martins) |
Nos
anos 1970, participei como jornalista da Operação Amizade, que contou com
aviões e helicópteros de países da América Latina para sobrevoar o espaço aéreo
do Acre, levando serviços médicos aos seringueiros e ribeirinhos em áreas
remotas. Embarquei num Bandeirante da FAB, com escala em Sena Madureira, e o
piloto era o brigadeiro Protásio de Oliveira, da Aeronáutica, um pioneiro da
aviação na Amazônia que calculou mal o pouso e teve que arremeter a aeronave
causando arrepios nos passageiros. Imaginem se não fosse um brigadeiro!
Agora,
no pequeno Fiat, mantive olhos e ouvidos abertos. Sabia que o fantasma do Rio
Madeira obrigara o governo a escancarar o trecho até Cruzeiro, vulnerável no inverno, para
trazer combustível e gás de cozinha comprados em Manaus, o que me pareceu uma
baita provocação à temida tabatinga existente entre Manoel Urbano e Feijó. Na
verdade, esperava encontrar a estrada em frangalhos, e me aborrecia ter que
concordar com políticos boquirrotos que não gostam do Acre e por isso vivem a
esculhambar com nossas dificuldades e tradições.
Em
1986, fiz a primeira viagem pela BR, ainda sem asfalto, do jeito que o 7o.
BEC (Batalhão de Engenharia e Construção) do Exército a deixou, em 1975.
Naquele ano (86), o jovem engenheiro Flaviano Melo, que tinha entrado na
politica como prefeito biônico de Rio Branco, nomeado pelo Presidente da
República na ditadura militar, se lançou candidato ao Governo do Estado pelo
PMDB. Como fez boa gestão na capital, os acreanos (eu inclusive) acreditavam
que seria também um bom Governador. Ele, entretanto, conhecia pouco da
efervescência política do Estado, na
época, e tanto quanto outros que o
antecederam temia a belicosa “bancada do Juruá” na Assembleia legislativa,
numerosa, mas nem sempre edificante.
Já
se respirava a volta dos militares aos quarteis e no Acre começavam pesar
fatores eleitorais fortes à esquerda: além dos oito sindicatos de trabalhadores
rurais fundados pela Contag, e a Igreja de Dom Moacyr Grechi, com mais de mil
Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e o Partido dos Trabalhadores (PT) engatinhando no caminho das urnas. Longe das
encrencas locais, porque vivia no Rio de Janeiro, Flaviano, amparado
politicamente pelo pai deputado Raimundo Melo (PMDB), considerado “o pai dos
pobres”, precisava de luz própria. Por isso, sua equipe de campanha recomendou
que enfiasse o pé na BR-364, no rumo do Juruá.
Afinal,
como engenheiro da Construtora Mendes Junior que ajudou a construir a ponte
Rio-Niterói , o candidato poderia realizar o sonho dos acreanos de asfaltar a
estrada. Montou uma caravana com três ônibus novos da Viação Rio Branco, mais
três a quatro camionetes F-1000 com tração nas quatro rodas, colocadas à sua
disposição, além de alguns veículos menos adequados,, de puxa-sacos de plantão,
e seguiu em cortejo embalado pela musiquinha de campanha: “O que o povo quer
será”!
Após
cinco dias de atoleiro e pernoites mal dormidos, a caravana chegou a Cruzeiro
em festa, causando um “frisson” na cidade. Os atropelos da viagem e também o
acanhamento do candidato estreante, contudo, não atrapalharam a estratégia
eleitoral. Foi eleito governador com votos dos vales do Acre e do Juruá em
clima esperançoso. Mas o que o povo queria de verdade – a conclusão da estrada
com asfalto - só aconteceria três décadas e meia depois, em 2013, no
governo da Frente Popular. E coube ao
governador Tião Viana cortar a fita.
Acreanidade vence os agouros
Famílias oriundas da floresta ocupam a beira da estrada e acenam aos passantes dando boas vindas (Foto: Elson Martins) |
Com a
cadernetinha de repórter e esferográfica em punho, passei a fazer anotações. Em
Sena Madureira começa o pior trecho, que vai até o rio Caeté, na direção de
Manoel Urbano. Em vários pontos tem buracos, afundamento no asfalto e
desmoronamento nas laterais, mas nada que prudência e velocidade reduzida não
resolvam. E logo aparecem duas belas e sólidas pontes construídas sobre os rios
Caetés (175 m) e Purus (407 m) que
animam. Até Cruzeiro, são mais de trinta, das quais são imponentes as que
atravessam, além do Purus, os rios Envira (300 m), Tarauacá (300 m) e Juruá (550
m), em concreto armado, com investimento de R$ 245 milhões.
Na
sequência vem o trecho mais temido, de Manoel Urbano a Feijó, que até surpreende: a profunda tabatinga que parecia
intransponível deu lugar a toneladas de brita, pedra e cimento importados da
Colômbia, restando um leito sólido com pequenos afundamentos pelo tráfego
pesado. Sem exagero, dá pra falar em tapete sobre a tabatinga. Outro trecho
ruim, só vai aparecer nos 46 km entre Feijó e Tarauacá, que é meio antigo e
demanda recapeamento. Daí pra frente a viagem flui cada vez melhor. Ou seja,
dos 650 km do percurso, apenas 80, se muito,
vão exigir reparos no próximo verão.
Logo,
percebi que a estrada tem importância especial para os acreanos, os “nascidos”
e os “de coração”. Pode parecer imperfeita, presumo, para quem não consegue
enxergar os traços de acreanidade que existe nela, nem valoriza seu perfil
histórico, ambiental e cultural. Ela não se parece, por exemplo, com a BR-317,
Rio Branco-Brasileia, porque nas suas margens não tem cerca de arame farpado,
nem pastos imensos afastando a floresta, nem mansões coloniais vigiadas por
vaqueiros e capangas. Também não se vê o boi tomando o lugar do homem, como tão
bem registrou o nosso magistral pintor primitivo, Hélio Melo .
O
que se vê na BR-364 é a união dos extremos do Acre, um traço paralelo à Linha
Cunha Gomes que faz divisa com Rondônia e Amazonas ao norte; e ao sul, amarra
os rios que levam às comunidades das cabeceiras, onde convivem extrativistas e
ribeirinhos com grupos indígenas em reservas que, somando com os parques
nacionais e áreas protegidas, desenham um corredor ecológico na fronteira
internacional com a Bolivia e o Peru. Com a estrada, mesmo imperfeita, os vales
do Purus, do Juruá e do Acre podem ser considerados uma coisa só, alimentando a
ideia de um futuro com florestania.
Ao
longo dos 650 km aparecem sítios e casinhas com excelência acreana: varais
estendidos com roupas coloridas, pequenos açudes, bananais, roça de mandioca e
cana Caiana, para fazer açúcar mascavo e alfinim. Também se vê muitas crianças
e a família inteira na janela, acenando, dando boas vindas. No cruzamento de
rios e igarapés, que ganharam pontes reforçadas, nascem as vilas com povos da
floresta. Anotei sinais (plaquinhas) dessa cultura desarmada e original
privilegiando a simplicidade e o afeto: “Pensão da Tia”, “Aqui tem café com
bolo”, “Temos açaí de Feijó”...
Não
consegui por a mão, ainda, num projeto detalhado que o governo tem para ocupar
e desenvolver a região da rodovia. Sei, entretanto, que a ideia é apostar nos
sitiantes tradicionais para plantar cocos, açaí, café e outras espécies, bem
como incentivar a criação de peixes, galinhas e suínos. Também prevê hortas e
um pouco de gado leiteiro. As famílias assentadas já contam com a propriedade
da terra e com a energia do programa Luz para Todos. Falta melhorar o
transporte, mantendo ônibus novos em circulação. Os poucos que vi estão
sucateados e oferecem riscos que não podem ser atribuídos à estrada.
Na
travessia do Rio Gregório, paramos num restaurante da pequena vila que brota no
lugar e almoçamos a farofa que levamos, feita com carne de sol. A dona do
estabelecimento, sorridente, cedeu os pratos e os talheres, e mandou que uma
jovem nos atendesse sem cobrar pelo atendimento. Isso é um gesto generoso,
tipicamente, da cultura da floresta.
Uma epopeia
Já
se vão mais de 40 anos desde que a BR-364 Rio Branco-Cruzeiro do Sul começou a
ser aberta pelo 7o. BEC, do Exercito, com duas frentes de trabalho: uma partindo de
Cruzeiro até o Rio Gregório; outra na direção contrária, saindo de Rio Branco.
Carlinhos, o condutor do Fiat em que viajávamos, era do batalhão e participou
da primeira equipe de 14 homens que entrou na mata bruta em 1971 para uma
permanência de dois meses na frente pioneira. Ele disse que parte dos alimentos
era lançada de avião, em paraquedas, e
os militares completavam o rancho com a caça, o peixe e frutos colhidos na
floresta. Havia fartura: o soldado Do Vale matou, de uma só vez, 12 pacas.
Em
meados dos anos setenta o Batalhão largou a estrada, cabendo ao desestruturado
Departamento de Estradas de Rodagem do Acre operar o milagre de manter o que
estava feito. Assim se passaram os anos até o início de 2001, quando o então
governador Jorge Viana se interessou em avançar com a melhoria dos trechos mais
complicados. Conhecendo o histórico da estrada e ouvindo horrores sobre a
tabatinga, Viana chegou a pensar em estrada de ferro como alternativa. Mas a
ideia não vinga. É forte no Congresso Nacional o lobby que defende o transporte
rodoviário.
Ou
seja, a alternativa era conseguir recursos de Brasília para finalizar a estrada
problema. O ex-governador Orleir Cameli (falecido), antes do Jorge Viana,
tentou isso, mas o buraco era mais embaixo. Como dono de construtora, asfaltou
alguns trechos, ganhou dinheiro e se aquietou. Jorge foi além porque contou com
o mestre e tutor politico Luís Inácio Lula da Silva para abrir o cofre federal.
No seu Governo da Floresta, cujo logotipo era uma arvorezinha daquelas que se
vê enfeitando cadernos escolares, o Acre ganhou estatura ecológica. Digamos que
fez o dever de casa: produziu o ZEE (Zoneamento Econômico Ecológico) e ajudou a
formar um corredor de áreas protegidas junto a fronteira internacional com Peru
e Bolivia. O Parque Nacional da Serra do Moa, a Reserva Extrativista do Juruá,
, as terras indígenas, incluindo a dos Isolados e o Parque Estadual do
Chandless, entre outras, passaram a fazer parte desse corredor.
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Cada trecho pronto foi uma festa para o governo, parlamentares, técnicos e moradores da beira da estrada (Foto: Secom) |
O
ex-governador (hoje senador) saiu com o irmão Tião Viana, atual governador (na
época senador) para arrancar recursos do PAC e convencer o DNIT, o órgão gestor
das estradas federais, a enxergar sua
responsabilidade nesta ponta ocidental da Amazônia. Coube ao historiador e
professor Binho Marques, sucessor de Jorge no governo (2006-2010), com dinheiro
em caixa promover a conclusão do trecho acreano. Nunca se viu tanto rebuliço no
império da tabatinga: seis empresas construtoras, 1500 máquinas pesadas, 3 mil
e quinhentos homens metendo a mão na massa, montanhas de terra, brita, areia,
cimento e ferro sendo removidas de um lado para outro, tudo acontecendo sobre a
critica insensata dos pregoeiros do Apocalipse.
Binho
passou o bastão ao Tião Viana que enfrentou um contingenciamento de verbas em
Brasilia, mas o superou, após remover a tabatinga de alguns gabinetes. Nos anos
2011, 2012 e 2013, as seis empresas que tocavam a obra abandonaram os canteiros
e coube o Deracre, mais uma vez, garantir sobrevida à BR. O engenheiro Marcus
Alexandre, atual prefeito de Rio Branco, então na direção do departamento, com
seus funcionários e 100 empresas terceirizadas na execução concluiu a rodovia
em 2013.
“Eu
fui ao Acre e vi que, realmente, a construção da BR-364 no estado é uma epopeia”-
declarou o ministro do Transportes, César Borges, ano passado. Que bom que ele
viu!
Riqueza da floresta
A
BR-364 entre os extremos do Acre tem no entorno da parte sul um potencial
natural ainda pouco conhecido, mas que já se sabe enorme. A estrada é quase uma linha reta de 520 quilômetros
contados a partir de Sena Madureira, ou de 440 quilômetros se contados a partir
de Manoel Urbano. No entorno se estende o complexo florestal do Mogno e
Liberdade (referencia ao Rio Liberdade), onde se acha a maior concentração de
mogno na Amazônia. Da linha em zigue-zague da fronteira com o Peru e a Bolivia
descem rios poderosos como Purus, Envira, Tarauacá e Juruá correndo no
sentido transversal, com mistérios e
tesouros a serem desvendados.
A
informação parte de quem tem a responsabilidade de cuidar desse patrimônio
ambiental no Estado: o titular da Secretaria de Indústria e Comércio e do
Desenvolvimento Florestal, Edvaldo Magalhães, e seu secretário –adjunto Fábio Vaz. Os dois trocam experiências
enriquecedoras com as comunidades tradicionais que ocupam as margens da rodovia
e, na medida do possível, vão adequando a linguagem técnica aos anseios dos
sábios da floresta.
Até
agora, a estrada tem sido ocupada por ex-seringueiros e ribeirinhos, além dos
indígenas cujas aldeias acompanham 20 quilômetros da rodovia nas proximidades de
Cruzeiro do Sul. Isso impõe, de algum modo, um diálogo entre saberes, entre as
tecnologias do planejamento governamental e as praticas tradicionais.
Levei
algum tempo conversando com os dois na quinta-feira passada. Edivaldo lembrou
um encontro que manteve com moradores sobre a formação de vilas ao longo da
BR-364 que poderão se transformar em cidades no futuro. Uma senhora de nome Aparecida
fez um discurso que ficou gravado e o deixou emocionado:
-Ela
disse que queria uma vila com cara de floresta. E essa vila está nascendo na
beira do Rio Gregório. Construímos casas de madeira como a comunidade quer, e
até o coordenador do projeto foi escolhido entre eles. A coisa funciona rápido e simples quando são
eles que escolhem como fazer.
Segundo
o secretário, vários projetos estão em andamento nas cidades de Feijó, Tarauacá
e Cruzeiro do Sul, e todos estão relacionados às possibilidades de
desenvolvimento sustentável envolvendo famílias extrativistas. Em Feijó, por
exemplo, foi criado um projeto de fruticultura com uma despolpadora de frutos e
empacotamento de grãos, prevendo o crescimento da produção de açaí. Já foram
plantados 2 mil hectares da espécie. E está
previsto em curso, também, a produção de bananas prata, maça e comprida, e 115 moradores
desenvolvem a criação de peixe em açudes.
Outro
projeto considerado promissor é o manejo comunitário de madeira com 200
famílias já contratadas. O secretário garante que o manejo será feito “do jeito
deles”, com serraria portátil e modo tradicional de arrasto. “Vamos legalizar a
prática deles, tradicionalmente sustentável”. A atividade será fortalecida,
segundo Edvaldo, com polos moveleiros montados em Tarauacá e Cruzeiro do Sul. Neste município já existem
15 industrias trabalhando.
Considerada
capital do Vale do Juruá, Cruzeiro tem uma população com característica
empreendedora invejável. Há décadas se ouve falar bem da farinha local,
considerada a melhor do país (e quiçá do mundo); do pó de guaraná, do biscoito
de goma, dos barcos que eles constroem por lá e do refrigerante de guaraná.
Edivaldo, que é cruzeirense, se orgulha de contar a história da “Vó Didi”
(falecida há cerca de um mês, com 90 anos), que trouxe do Ceará a receita do
biscoito de goma. A mágica é simples: o biscoito só presta se for secado ao sol.
Pois
uma fábrica de biscoitos será inaugurada na cidade no próximo dia 10 de maio,
com 12 secadores de sol. Várias mulheres que receberam a receita como herança
de Vó Didi organizaram a cooperativa Cooperbiscoitos e vão tocar a fábrica construída
pelo governo com financiamento ambiental. Outra novidade vem de uma família que
constrói barcos em Cruzeiro. Trata-se da “Bajola”, uma voadeira com motor de
“rabo” que bate os modelos de metal em velocidade e estabilidade. Certamente,
também no preço. Tem mais: Os filhos do senhor Zinho (falecido), tradicional plantador e industrial do guaraná, decidiram manter a
atividade do pai e acabam de lançar o refrigerante “Cruzeirense”, produzido
numa fábrica que em julho começa a
funcionar em escala regional.
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