domingo, 12 de dezembro de 2010

Casarão da resistência acreana


Coluna publicada no Jornal Página 20 | 12dez2010
Este é o novo Casarão inaugurado sexta-feira:
ponto histórico da resistência acreana

O governo revitalizou o prédio e vai entregá-lo a um grupo de “amigos do Casarão” que possa cuidar dele como centro de cultura, em convênio com o departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da Fundação Elias Mansour. Claro, com um boteco funcionando lá dentro. A inauguração aconteceu sexta-feira, com a presença do governador Binho Marques, do senador eleito Jorge Viana e muitos dos antigos freqüentadores. Teve show, cerveja de graça e muita saudade. É um resgate, em termos, do bar que fez história a partir de 1980, como espaço de conspiração e lazer de ativistas políticos, artistas e intelectuais de Rio Branco. E que só pode reviver, com o charme e a inquietude do passado, na memória dos que o tinham como reduto. Entretanto, temos agora um símbolo da acreanidade valorizando o centro (av. Brasil entre Getúlio Vargas e Marechal Deodoro) com sua memória de resistência cultural, social e política.

A história do Casarão começa com a Anistia aos presos e perseguidos políticos no ano de 1979, como relata um de seus fundadores, o sociólogo, escritor e professor universitário Pedro Vicente da Costa Sobrinho: “Naquele ano, retornaram ao país muitos brasileiros que se encontravam no exílio e os que estavam presos nos cárceres da ditadura ou na clandestinidade. Eles foram soltos ou voltaram a circular, e puderam assim tentar reconstruir suas vidas. Nelson Rodrigues Filho, o Nelsinho, filho do dramaturgo Nelson Rodrigues, saiu da prisão onde cumpria uma longa pena sob a acusação de terrorismo, juntou alguns trocados e associou-se com mais dois amigos para abrir um Bar no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Por sua cultivada barba na prisão, os amigos e sócios nomearam o bar de ‘O Barbas’. O Barbas passou a ser o espaço alternativo por excelência, para onde uma intelectualidade de esquerda se dirigia e batia o ponto varando a noite em conversas e reuniões, regadas a cerveja e caipirinhas. O Barbas mantinha jornal mural, disponibilizava livros, jornais e revistas; música ao vivo ou mecânica com repertório de boa qualidade; e promovia palestras, conferências etc. sobre literatura e artes, e também política.

Numa viagem que fez ao Rio, Pedro Vicente, que dirigia o SESC como ponto de efervescência cultural em Rio Branco, foi visitar “O Barbas” e conversou com Nelsinho, seu proprietário e gerente. Ele lhe passou quase tudo que fizera no espaço: programação cultural, perfil da clientela, controle e administração. O sociólogo ficou entusiasmado com o projeto e, ao voltar a Rio Branco, mais que depressa procurou contatar os possíveis parceiros para juntos tentar viabilizar um projeto semelhante ou parecido com “O Barbas”.

“A velha casa residencial da família Fontenelle- narra Pedro Vicente- logo me pareceu o local ideal para instalação da iniciativa, só com um impedimento: lá já funcionava um barzinho decadente e de escassa freqüência. Conversei inicialmente com meus amigos Elson Martins e Miguel Ortiz, e eles de rápido se convenceram da idéia. Todos se convenceram que o espaço ideal seria a velha casa residencial dos Fontenelle, pela sua beleza e funcionalidade. Em outras conversas nós envolvemos o indigenista José Carlos Meireles, que tinha sido demitido da Funai. Meireles sugeriu que o nome de fantasia do bar fosse “O Casarão”, e a coisa pegou. Pouco tempo depois, o barzinho que lá funcionava faliu, e Elson Martins assumiu a tarefa de falar com Darci, o herdeiro que ocupava e administrava a velha casa. Resolvido a questão da locação, tomamos a iniciativa de por em prática o projeto”.

Não foi difícil convencer Darci Fontenele sobre o nosso projeto. Eu o conhecia desde os anos 50, no Colégio Acreano, até freqüentei sua casa construída nos anos 30, toda em madeira de lei, e tomei banho na piscina, a primeira da capital e talvez do Acre. Ele até se mostrou feliz com a idéia.

Era o ano de 1980. Iniciamos pequena reforma da velha casa mantendo a mesma estrutura. Se o projeto era novo, não poderíamos mobiliar o espaço com mesas e cadeiras de plástico como era costume em Rio Branco. Assumimos o trabalho de confeccionar as cadeiras e mesas com madeira. Meireles e Miguel, com o auxílio de um marceneiro, fizeram todo o trabalho. Do projeto constou: jornal mural; espaço para se deixar recados; um local para que as pessoas que freqüentavam o espaço pusessem assinaturas; decoração com gravuras de artistas; equipamento de som com repertório musical variado e rigorosamente selecionado; além de programa de música ao vivo, uma vez por semana. Constava também a realização de debates, palestras etc. No projeto agregamos uma Livraria e pequena galeria de arte para exposições de artistas locais, nas duas salas situadas no piso inferior. No segundo piso, as salas foram cedidas para a Comissão Pró-Índio e movimentos sociais. A livraria foi instalada e no espaço da galeria, apenas Hélio Melo expôs seus quadros.

Durante um pouco mais de dois anos (1980/82), na sua primeira fase de existência, o Casarão funcionou regularmente, atraindo intelectuais, estudantes, sobretudo de esquerda, e mais um eclético público de freqüentadores. Pedro Vicente teve acesso a um dossiê da Polícia Federal e dos órgãos de informação relacionado às suas atividades políticas e diz: “ O Casarão é mencionado como local freqüentado principalmente por homossexuais, prostitutas, drogados e pessoal de esquerda. Para os órgãos de segurança era um lugar maldito”.

Em 1982, o Casarão foi assumido pelo casal Walter e Graça. Eles deram uma nova vida ao projeto, ampliando o bar e o transformando em restaurante. Um público muito maior foi incorporado como freqüentadores; a esquerda e uma juventude rebelde às convenções tradicionais da época tornou-se cliente do bar por excelência. Graça e Walter lhes deram aproximadamente, mais vinte anos de sobrevida.

Sócio ou cliente? - Quando Pedro Vicente me convidou para sócio do Casarão, eu comandava com o Silvio Martinelo o diário ”A Gazeta do Acre” que funcionava no bairro da Cerâmica. O jornal pertencera a um grupo de Porto Velho que, não conseguindo sobreviver por aqui, abandonou o maquinário num prédio na rua Benjamim Constant, em frente a Rádio Difusora Acreana. De Porto Velho, o editor João Teixeira me mandou um telex oferecendo-me a condução do jornal por conta e risco. Eu, Sílvio, Arquilau (hoje desembargador), Suede Chaves e mais alguns, estávamos encerrando a experiência com o jornal Varadouro e topamos a parada. Entretanto, numa certa manhã fui surpreendido com o advogado dos fazendeiros, João Branco, sentado à minha mesa. Ele fora anunciar, com seu jeito arrogante, que o empresário Wilson Barbosa tinha comprado o jornal e este teria nova linha editorial, com aproveitamento de nossa equipe.

Prometemos voltar à tarde com uma resposta, mas não voltamos. O jornal circulou uns dois dias e parou. Então, o Wilson nos chamou para conversar. Disse que gostava do nosso trabalho e que tinha comprado o jornal contando com a gente. João Branco, segundo explicou, era apenas o advogado contratado para cuidar da transação. Aceitamos voltar, mas com uma condição: o advogado representante da UDR ficaria proibido de aparecer na redação. Com este acerto, nos mudamos para um prédio de Wilson Barbosa no bairro Cerâmica e vivemos uma fase de bom jornalismo, com razoável independência editorial. Não recebíamos verba do governo, e o dono do jornal, embora pagasse parte das despesas, não interferia na redação. Esse namoro durou até as eleições de 1982, quando as divergências políticas afloraram.

Bom, vibrei com a proposta do Pedro Vicente e me tornei sócio do bar, mas não tinha tempo a não ser depois que fechava a edição do jornal. Era melhor ser apenas freqüentador. Lembro que escolhia uma mesa dos fundos, próxima da administração do bar, mas sentava de costas para a Ana, esposa do Pedro Vicente,evitando um possível olhar de reprovação dela que ficava no Caixa e podia solicitar ajuda. Pelo menos, eu fazia questão de pagar minhas despesas, geralmente umas caipirinhas e caldo de feijão como tira-gosto. Saía do jornal direto pro Casarão sabendo que encontraria por lá as figuras mais interessantes de Rio Branco. Ouvia música popular de qualidade, participava de conchavos ideológicos e criticava os maus políticos. Tarde da noite, gostava de ver os grupos de teatro que chegavam caracterizados transformando o Casarão num palco.

Por uma questão de justiça, passei minhas quotas para o Pedro e o Miguel assumindo melhor a condição de cliente. E como tal testemunhei a ampliação e diversificação da freqüência, vendo que o Casarão, aos poucos, passou a ser preferência também de fazendeiros, políticos conservadores e até agentes da Polícia Federal. Estes, certamente, interessados em ouvir conversas estimuladas pelo ambiente que os ajudassem identificar inimigos do regime militar.

Nos jornais, as referências ao Casarão eram sempre favoráveis, mas o melhor marketing, forte e precioso, partia voluntariamente do Toinho Alves com suas crônicas sobre Jack Fontenelle, pesonagem que ele encontrou no quintal do coronel governador. Jack era um jacaré: apareceu na velha piscina desativada e ficou por lá, pegando sol durante o dia, urbano e sereno, aguardando as sobras de comida da noite. Toinho filosofava com o bicho, de tal forma, que era possível imaginá-lo, a exemplo dos botos, subindo ao bar, altas horas, para namorar, beber, escrever poesia, deixar recados... Ou seja, ampliando a resistência naqueles tempos amargos e perigosos, mas tão necessários e tão apaixonantes!

Aqui se discutia tudo, da feijoada
à criação de um partido politico


O Casarão virava Teatro na madrugada

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