sábado, 28 de agosto de 2010

REGATÃO: herói atípico da Amazônia

Coluna publicada no Jornal Página 20 | 28ago2010
Em batelões como este os regatões ajudaram a escrever a história da Amazônia


No século XIV ele já batia à porta dos consumidores medievais da Europa oferecendo alimentos a retalho. Comprava no campo mais barato para vender em miúdo e caro na cidade. Era um comerciante ambulante, um mascate. Durante a colonização do Brasil ele apareceu nas emergentes metrópoles brasileiras com a mesma atividade medieval. Era início do século XIX, e a atividade foi dominada por jovens judeus marroquinos que migravam para o país. Na segunda metade desse século, atraídos pela economia da borracha os jovens mascates árabes migraram em massa para a Amazônia, onde passaram a ser chamados de regatões.
Historicamente, o regatão da Amazônia é o pequeno comerciante que entra nos rios e igarapés com sua pequena embarcação carregada de miudezas, oferecendo esses produtos aos moradores dos rincões da região.Troca – mais que vende – produtos industrializados por espécies valiosas da floresta. Durante o primeiro ciclo da borracha (1870 a 1913), enfrentaram dificuldades com os seringalistas por venderem coisas diretamente aos seringueiros fazendo concorrência ao barracão, de onde os extrativistas recebiam o aviamento que deveria ser pago com borracha. Mesmo assim, eles conseguiam furar o bloqueio. Em parte porque a exemplo dos donos de seringais, muitos também tinham relações comerciais com as casas aviadoras francesas e inglesas, ou com os prepostos destas em Belém e Manaus,Sem contar que nenhum barracão jamais conseguiu competir com o fascínio despertado pelos pequenos mascates com seus batelões maravilhosos, cujas prateleiras exibiam pequenas e fascinantes novidades. De fato, além de armas e munições, querosene, sal, açúcar, sabão e charque - essenciais para a subsistência do seringueiro, - o regatão oferecia deslumbramento para sua alma: eram cortes de lamê e tafetá coloridos e macios, os perfumes baratos de cheiro ativo, as brilhantinas, as chitas estampadas e as rendas, as pulseiras e brincos, as linhas e agulhas, os cintos, os sapatos, os batons e pós de rosto, os biscoitos e bombons, os sabonetes, as anáguas...
 Impunha-se através do regatão um gosto e uma tolerância amazônicos por excelência, quebrando a lógica do capital e do lucro.
Após o primeiro ciclo da borracha - e excetuando o curto período histórico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) - a importância do regatão ou o reconhecimento de sua importância na construção das sociedades da floresta cresceu. Ele passou a ser o único fornecedor das famílias remanescentes dos seringais abandonados pelos seringalistas, e assim foi se tornando compadre, padrinho, sócio ou patrão.
Um aspecto ainda pouco conhecido do personagem regatão - esse típico herói amazônida - é sua contribuição nas lutas de resistência dos caboclos da região. A história registra sua participação em movimentos importantes como a Cabanagem no Pará, dos quilombolas no Maranhão, Pará e Amapá, e dos índios no Amazonas, aos quais ajudou com o transporte ou fornecimento da armas e alimentos. As transformações promovidas na Amazônia pelo Golpe Militar de 1964 também levaram os regatões a ter um lado político: eles, negócios à parte ou não, ficaram do lado da resistência das populações tradicionais.
 A partir dos anos setenta, quando seringueiros, ribeirinhos e índios do Acre se mobilizaram contra a transformação dos seringais em enormes fazendas para criação de boi, o regatão reapareceu com nova roupagem. Tinha trocado o barco e circulava por estradas lamacentas no volante de um caminhão. Como em décadas passadas, mas agora sobre rodas, o regatão fazia sua parte: comprava a produção agrícola ou extrativista, fazia o aviamento das famílias e, novidade, transportava trabalhadores para “empatar” o desmatamento. Também sabemos que, nos dias de hoje, o regatão continua com sua intensa e perigosa atividade negociando com os índios que decidiram planejar e gerir o desenvolvimento sustentável de suas aldeias.
Enfim, os personagens que fizeram e fazem a história da Amazônia ainda não foram descritos com exatidão. Os historiadores e estudiosos da região terão que perscrutar melhor, por exemplo, a alma de um regatão.



CARTAS


Paula seguiu a trilha do pai
Saudades do meu Rio D´Ouro!
Paula Meireles*

Hoje me deparo com uma realidade contraria da que eu tinha quando vivia no D´ouro. Atualmente, estou trabalhando num escritório, ar condicionado, salto alto e maquiagem no rosto. No D´ouro meu ar era a brisa que soprava fresca bagunçando meus cabelos, minha sandália de borracha, me levava ao banco da mentira onde me perdia no tempo a observar o pôr-do-sol e meu rosto era pintado com as tintas de jenipapo e urucum dos kaxinawas.
Não reclamo, estou vivendo uma nova fase de minha vida, estou reaprendendo coisas novas, sou uma camaleoa, me adapto ao ambiente, mas confesso que essa vida não me atrai por muito tempo, como a vida que eu tinha na foz do D´ouro. Ê saudade.
Saudade do meu amigo querido seu Zé Sena a me contar causos, parceiro dos serras do dia de domingo, saudade daquele povo humilde, simples, mas que tem mais sabedoria do que muita gente da cidade, saudades de ver os rios se encontrando na sua fúria, nos seus repiquetes; saudades das viagens pelo rio Tarauacá, das varações para o rio Envira, das noites dormidas nas praias, enfim, saudades...
Sei que minha alma não mais pertence a esse mundo, a essa selva de pedra onde cada um está mais preocupado com sua vida do que com o coletivo, em breve voltarei ao Rio D´ouro para saciar e matar toda minha saudade.

*Paula Meireles é filha do indigenista José Carlos Meireles. Até 2008 ela comandava a Frente de Proteção de índios Isolados nas cabeceiras do rio Tarauacá, no afluente rio D’Ouro, no Vala do Juruá (AC).

Um comentário:

  1. Que belo depoimento Paula, como você mesma disse, somos orgânicos, é bom
    ser vivente.

    daniel de andrade
    www.saitica.blogspot.com

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