
Músicos excelentes, instrumentos altamente instigadores, muita criatividade e sensibilidade formam o grupo mineiro Uakti, personagem de uma lenda amazônica materializado por Arthur Andrés, Décio Ramos, Paulo Santos e Marco Antônio Guimarães, fundador do grupo e principal idealizador dos instrumentos simples e exóticos que tornam Uakti referência mundial na música instrumental.
Os três músicos passaram 15 dias em Rio Branco, dando uma oficina de música instrumental aos alunos dos cursos de música, teatro e artes plásticas da Usina de Arte João Donato, auxiliados por João, assistente do grupo.
O Uakti existe há 30 anos, tendo gravado 11 CDs e 1 DVD neste período, e participado do trabalho de diversos outros artistas consagrados como Milton Nascimento e Philip Glass, em trilhas sonoras para balés e filmes, sendo o trabalho mais recente a trilha do longa Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meirelles.
Com este currículo dá para notar que não estão aqui para brincadeira. São músicos compenetrados que passam além de didática específica para o estudo rítmico, uma noção de concentração e envolvimento com a música, além do respeito com os instrumentos. Estes, por sua vez, são de tirar o fôlego de qualquer um. Por menor conhecimento musical que se tenha, é impossível não se admirar com a sonoridade produzida a partir de tubos de PVC afinados para serem batidos, assoprados, tocados com a mão ou pedaços de borracha encapados com meia soquete. Para não falar das marimbas de vidro e madeira que podem levar seus ouvintes aos recantos mais inusitados de sua imaginação, tamanha a transcendência alcançada pela sensível sonoridade produzida pelas teclas nas mãos de seus tocadores.
Nem por isso, este trio de virtuoses é sisudo e esnobe. Com grande humildade e graciosidade, ensinaram os oficineiros a ler as figuras geométricas, que são um tipo de partitura rítmica criada por eles, através de dinâmicas e brincadeiras, levando todos às gargalhadas inúmeras vezes. Com cerca de 50 participantes na oficina, em sua maioria não músicos, Décio comenta que este público sempre recebe muito bem a proposta, pois acredita que a música está em todas as coisas, basta sabermos lê-la.
E assim foi feito: no Teatro Plácido de Castro, logo nos primeiros dias de oficina, os alunos fizeram música a partir das poltronas, portas, janelas e escadas. “O resultado é muito bom, porque a pessoa não tem nenhum tipo de vício, está fresquinha, pura, recebe e entende facilmente tudo aquilo que é proposto. Geralmente estas pessoas, como a gente trabalhou aqui, com pessoas que nem todas são da área de música, têm idéias muito boas, que se tornam idéias musicais e que soam muito bem”, observa Décio.
E sobre estar pela primeira vez no Acre, Paulo comenta: “foi uma grata surpresa, pelo que a gente esperava do Acre, pois a gente tem sempre uma visão meio distante, meio indígena e a gente encontra uma cidade super-estruturada, com pessoas de várias partes do Brasil a fim de trabalhar; e pra gente isso é muito bom, pois viemos fazer um trabalho que teoricamente poucas pessoas conhecem. Mas, na verdade tem um público aqui que quer vivenciar isso, que quer fazer um trabalho bom e passar pra frente esta nossa didática, o que é muito legal. É uma coisa que a gente sentiu bem surpreendente, muito agradável. Foi muito além da expectativa”
O show
Fechando sua programação no Acre, o grupo Uakti se apresenta neste fim de semana (16 e 17) no Teatro Plácido de Castro, a partir das 21 horas. O repertório foi composto para um balé do também mineiro Grupo Corpo, mas no show as músicas estão adaptadas para a performance dos instrumentistas com seus instrumentos. “Nós temos vários repertórios, mas este show é para um primeiro contato, onde tocamos uma variedade grande de instrumentos. O Uakti tem esta nuance em seus repertórios, de apresentar os instrumentos e mostrar que é possível tocar coisas muito simples e fazer música com aquilo”, comenta Paulo.
A lenda
O nome UAKTI deriva de uma lenda indígena dos índios Tukano do Alto Rio Negro, Estado do Amazonas, como descreve Elza Camêu, estudiosa da música indígena brasileira:
“Os estudo de E. Bianca sobre os índios do rio Tiquiê, (afluente do Alto Rio Negro) revela mais um aspecto da criação de instrumentos. Uma lenda, referente ao herói Uakti, desses índios, diz que ele violava e pervertia as mulheres, por isso foi capturado. Era um monstro de formas humanas, horrendo e tendo o corpo aberto em buracos. O vento, ao atravessar-lhe o corpo, produzia sons soturnos e lúgubres. Uakti foi morto e sepultado. No lugar em que o enterraram nasceram três palmeiras altas, que passaram a guardar o grande espírito de Uakti. Desde então, os instrumentos de Uakti são feitos do caule dessa palmeira. O timbre dos instrumentos corresponde aos sons tirados pelo vento ao passar pelo corpo esburacado de Uakti. E em razão do comportamento de Uakti, as mulheres que vissem ou ouvissem o som dos instrumentos ficariam imundas. Por isso, se uma coisa dessas acontece, a mulher teria ou terá que fatalmente ser sacrificada”.
O fim é o começo
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, conheceu o Uakti em 1966, ficou encantado e escreveu o texto a seguir que está na apresentação do CD 21 lançado em 1997:
Metade Deus. Metade Diabo. Na exata e mineira medida, como é a vida. Num único espaço e tempo estão juntos porque necessariamente diferentes, e necessários um ao outro: não há vida sem morte, prazer sem dor, sim sem não, princípio sem fim, agudo sem grave, veloz sem lento, grande sem pequeno. Deus sem Diabo. Tudo é metade e o contrário da outra parte, diferente para fazer a unidade do que é contrário. Foi escutando o Uakti que aprendi o que sempre me recusei a aceitar: que todo diferente é, no fundo, parte de um mesmo igual. ‘Yin’ e ‘Yang’. Deus e o Diabo, num empate aceito pelos dois, eis o mistério. Negado em todas as partes, mas não em Minas Gerais, onde o empate é reconhecido no se, no talvez, no não sei se sim ou se não, na indefinição que define todo o saber e fazer.
Em Minas o normal é o empate. O desempate é puramente provisório. Minas Gerais, estado particular e único do Brasil. Central, no meio de tudo, com extremos, mas sem se definir. Um lugar onde a vida e a morte conversam todo o tempo sem se despedir. Terra de Milton Nascimento, de João Guimarães Rosa e do Uakti, sem mar, mas com imensidão. Terra onde a liberdade foi esquartejada na Inconfidência Mineira de Tiradentes no século 18, mas permanece de corpo inteiro. O lugar onde a liberdade dura ainda que tardia. Enfim, o mistério.
Foi lá que nasceu o Uakti e só poderia ser. Quatro anjos vertidos em demônios entraram na música e fizeram uma grande filosofia pela via das notas, do estalo, do contraste, do espanto, da doçura e da violência sem limites do som que ultrapassa todas as barreiras. Transcenderam o tempo e o espaço, reescreveram Einstein por cima de toda relatividade. Foram tão acima de tudo que tiveram que inventar até os instrumentos. E inventaram como Deus fez no começo e o Diabo ajudou.
Deus inventou a humanidade, o Uakti inventou o instrumento da música. Não se pode entender o Uakti sem se levar esse choque do totalmente Deus e totalmente Diabo, uma coisa que todo mineiro entende e aqueles que podem praticam.
O fim do mundo está no começo. E o Uakti é esse Verbo.
Vale a dica
Entre os 11 álbuns do grupo, Águas da Amazônia se destaca por esta particularidade: tem inspiração em nossos rios, foi composto por Philip Glass para o espetáculo “Sete ou oito peças para um ballet” do Grupo Corpo, e interpretado pelo Uakti. As músicas recebem nomes dos rios da região, como “Xingu River” e “Purus River”, sugerindo corredeiras e redemoinhos que revelam a linguagem (ou alma) da cada um. O álbum custa 20 reais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário