domingo, 17 de maio de 2020

Lhé: sangue árabe no Acre

Foto: Alexandre Noronha
* Abrahim faleceu no sábado, 16, e esse texto foi produzido em 2010.

 Em 1909, o libanês Abrahim Farhat, de 25 anos, pobre e desempregado ouviu notícias sobre a borracha e rios de dinheiro que enriqueciam a todos que ousavam penetrar a Amazônia. Sem pensar duas vezes, deixou no Líbano a esposa Fátima, grávida, com Hechem na barriga, pegou um navio e três meses depois já vendia bananas em frente ao suntuoso Teatro Amazonas, de Manaus. No ano seguinte, enfiou-se nas matas do Acre para vender panelas para os seringueiros. Transformado em arigó-libanês, carregava suas mercadorias num tabuleiro atravessando varadouros espinhentos e escorregadios abertos na mata bruta; fazia tanto barulho que o apelidaram de Abrahim Teco-Teco. Em poucos anos (1912), o tabuleiro se transformou na Casa Farhat, forte empreendimento comercial instalado no segundo distrito de Rio Branco. Abrahim passou anos sem voltar ao seu país. Acabou casando novamente, desta vez em Belém do Pará, com a portuguesa Adelina, com quem gerou três filhos: José, Alberto e Said Farhat. Os dois primeiros, quando crescidos viajaram para a terra do pai, o terceiro permaneceu no ex-Território do Acre até a década de 1940, chegando a ser nomeado prefeito de Brasiléia na fronteira com a Bolívia. Depois, foi para o Rio de Janeiro e chegou a ser ministro da ditadura militar (1964). No sentido contrário Hechem, filho de Abrahim com Fátima, veio do Líbano para tomar conta dos negócios da família em Rio Branco. Revelou-se um líder, sobretudo no meio da grande colônia árabe que se formara no Acre. Em 1941, rico e prestigiado, casou com Elza (Silvia Maluf Farhat), no Rio de Janeiro, colocando mais gente no mundo: além do Lhé (Abrahim), Nilza, Helena, Fátima, Léa, Jorge e Lúcia. Em 1952, Abrahim Teco-Teco deixou o Acre e foi viver com suas duas mulheres no Líbano, deixando a bem estruturada Casa Farhat com Hechem, que plantaria raízes na terra de Chico Mendes. Aqui entra entre em cena o Abrahim Neto, braço direito do pai fazendo diabrura ideológica. De fato, a loja humanisticamente se transformou na embaixada dos perseguidos: da Palestina, do Brasil militarizado, do Chile, de Cuba, do próprio Acre pós 1964. Sobretudo, das vítimas da bovinização a partir da década de 1970. Abrahim Neto nunca foi militante orgânico, desses de apelido clandestino, mas aprendeu com o avô e com o pai a ser solidário com as pessoas ameaçadas. Ouvia rádios de Havana, Moscou, Egito, acompanhava de perto as guerras do Oriente Médio e pregava (prega) os direitos Humanos. O pai o aconselhava: “Não se deixe levar pelo mundo do dinheiro”. Certa vez, ele indagou o significado de Lhé em árabe e o pai explicou: é a pessoa rica que não se mistura com a burguesia, prefere viver entre o povo. Ah, bem! Pois o Lhé se tornou um dos mais verdadeiros aliados dos povos da floresta. Faltavam espingardas e munição para os seringueiros? A Casa Farhat daria um jeito, mesmo sob suspeita da Polícia federal. Em 1978/79, o então vice-governador José Fernandes do Rego aceitou argumentos para autorizar empenho para compra de extintores de incêndio, provavelmente, sabendo que a mercadoria era outra. E lá foram espingardas e cartuchos para a seringueirada em guerra com o grupo Bordon em Xapuri (Chico Mendes e seu primo Raimundo Barros levavam os paus de fogo). O governador Geraldo Mesquita (1975/1979) e seu sucessor, Joaquim Macedo, fariam vista grossa se soubessem dessas traquinagens. Afinal, saiam mais coisas da Casa Farhat: um motor Montgomery solicitado pelo cacique Alfredo Sueiro, dos kaxinawás do rio Jordão; alimentos para os hansenianos da Colônia Souza Araujo; dinheiro em espécie para o grupo musical Raízes, montado por uma garotada do colégio secundarista CERB; compra de papel e chumbo, e despesas diversas com o jornal Varadouro; emergências do cineclube Aquiry; várias solicitações do Partido dos Trabalhadores que ele ajudou a criar. Hechem sabia do que o filho primogênito fazia em nome dos direitos humanos e da democracia. Seu irmão Alberto, que era deputado do partido comunista no Líbano fazia coisa mais arriscada por lá. Para Hechem, falecido em 1975, Lhé era um humanista, como ele próprio. Ah! O Lhé fica com os olhos vermelhos ao lembrar essas coisas. Foi o que ocorreu durante o depoimento que fez na Biblioteca da Floresta, dia 31 de maio de 2010, como parte do projeto Memória dos Velhos Sábios da Floresta. Vermelhos, mas não de saudade ou lamentação. O que bole com sua alma é a indiferença, o pouco caso ao tanto que a Casa Farhat representou e ainda representa, embora definhada, parecendo casa mal assombrada no segundo distrito de Rio Branco.

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