domingo, 19 de abril de 2015

José Leite: In Memoriam!

* Elson Martins

Zé Leite: do humor à tristeza com a mesma densidade (Foto: Acervo da família)

Faz 16 anos que o mais reconhecido e amado jornalista acreano nos deixou. No dia 27 de Março de 1998, aos 61 anos, ele submeteu a imprensa do Acre ao luto permanente. Mas também a premiou com um legado de boa escrita com ética e humor. Todo ano esse legado é lembrado pelo Prêmio que leva seu nome e movimenta comunicadores de TV, Rádio e Jornal inspirados em sua rica e exemplar história.

Naquela data triste eu me encontrava em Macapá, comandando o diário Folha do Amapá, mas também emprestava meu nome à direção do tabloide quinzenal O Acre, que começara a circular em Rio Branco com ares de florestania. A morte de José Chalub Leite exigiu a preparação de uma edição especial de 32 páginas, na qual seus amigos, jornalistas ou não, deixaram testemunhos sobre sua personalidade incomum.

Eu produzi a crônica "Tão Zé!" (leia abaixo) pensando na performance que lhe era mais constante: a de brincar na redação, surpreendendo colegas de trabalho com traquinagem. A Charlene Carvalho diz que não foi uma, nem duas vezes que ele escondeu seus sapatos na redação. “Também não foi uma, nem duas vezes que ele encheu minha bolsa de grampeador, bobina de Durex, papel velho, dicionário e me fez sair carregando peso” – declarou.

Clélio Rabelo, outro afortunado aprendiz do editor de O Rio Branco, lembrou manchetes molecas que ele estampou no jornal. Uma delas – “Pinto endurece contra aumento” – referia-se ao fato do ex- governador Edmundo Pinto (1991) ter reagido à proposta de aumento na tarifa de ônibus. Não menos hilária foi outra, com o mesmo personagem, desta vez na Câmara Municipal, num embate com o vereador adversário Rubem Rola: “Pinto e Rola vão às vias de fato na Câmara”.

O espírito moleque do editor o colocava, às vezes, em cheque junto aos leitores, como num 1º de Abril (Dia da Mentira) em que pespegou na capa do jornal: “Xuxa desembarca hoje para alegria da petizada”. Claro, pais e filhos saíram em “desabalada” carreira para o aeroporto Presidente Médici, no 2o. distrito. E foi impressionante como, mesmo contrariados, ninguém se exaltou contra o autor da “pegadinha”!

Um terceiro aprendiz, o Chico Araujo, desolado escreveu: “Caro Zé, eu te confesso, fiquei sem tesão para editar jornal”!

Já a colunista social na época, Wânia Pinheiro, admitiu ter sofrido por conta das “ironias construtivas” do editor ao iniciar-se no jornalismo: “Um dia ele me chamou para conversar. Disse que gostava muito da minha coluna e foi logo perguntando com aquela cara de gozador, se era eu mesmo quem fazia os textos”!

Falando sérioQuarenta pessoas entre jornalistas, políticos, profissionais liberais, desportistas, universitários e membros da família assinaram relatos sobre o Zé na Edição Especial de O Acre. Um deles, o nosso filósofo Antônio Alves (Toinho), um dos editores (do tabloide) que manteve com o Zé uma relação de mútuo aprendizado, escreveu o texto mais longo, do qual apresento pequeno trecho:

“Zé Leite dizia: ‘ninguém vem para o Acre impunemente’. Lendo a frase com outros olhos, digo que o Acre é uma terra cármica: aqui, por mais que enganem as aparências de impunidade, é onde todos pagam suas dívidas. Bebeu água desses rios, não escapa. Que o digam Galvez, Plácido, Chico, Edmundo. Tragédia? Que nada, como toda província que se preza, somos engraçados. Patéticos, ridículos, ingênuos até na esperteza, produzimos os mais variados tipos e as mais deliciosas histórias. Aqui Hamlet é funcionário público e Jeca Tatu é deputado. Torquemada é médico, Van Gogh corta seringa.(…) Por isso o humor, sem o qual não compreendemos nada”.
Tão Zé!
Numa tarde insuportavelmente quente de 1975, eu suava em bicas na redação de O Rio Branco - em sua antiga sede à Rua João Donato com a Avenida Ceará-, redigindo um texto sobre conflito de terras com as costas voltadas para a entrada do jornal. Acho que estava cochilando sobre uma velha Olivetti quando um vira-lata rosnou e abocanhou meus calcanhares. Imaginem o susto! Dei um pulo e caí de bunda no chão sujo de tinta de impressão, enquanto a risadaria ecoava das oficinas ao setor comercial. Após alguns segundos, me dei conta que o suposto “vira-lata” havia corrido de volta à sua mesa de editor-chefe.

Foi mais ou menos assim que conheci o Zé Leite com seu espírito brincalhão. A primeira vez que o vi, ele estava sentado naquela mesa, espremida na entrada do jornal, fumando com auxílio de uma piteira e cercado de pessoas que apareciam diariamente para conversar miolo de pote. O delegado José Tristão, meu cunhado, fez as apresentações.

Após 18 anos fora do Acre eu estava retornando como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. Muito prazer, disse o Zé, com uma cara fingida e sem desviar a atenção da conversa com o grupo. O próprio Tristão, quando saímos do jornal, procurou dar uma explicação para a indiferença do editor: “O Zé pensa que todo mundo é picareta. Ele não está acreditando que tu és correspondente do Estadão”, disse.

Passaram-se alguns dias e vi que minhas matérias publicadas no diário paulista estavam sendo reproduzidas em O Rio Branco. Fui lá saber se não interessava ao jornal publicar as matérias completas, sem os cortes feitos na redação em São Paulo. O Zé Leite me recebeu com entusiasmo, dizendo que andava à minha procura para acertar a colaboração. Foi assim que me tornei seu repórter para conflitos fundiários, tendo que me submeter às brincadeiras do editor.

Minha reação naquela tarde canina, porém, não foi boa. Rasguei as laudas que havia redigido e fui para casa demorando a voltar para a redação. O Zé pediu desculpas, com um riso maroto, e penso que nunca as aceitei completamente. Durante anos de camaradagem e identidade jornalística, eu sempre me aproximei dele cauteloso, temendo ser abocanhado outra vez. Eu observava como seus olhos, durante uma conversa, perscrutavam em volta com um rosto inquieto e intrigante.

Creio que esse era o traço mais característico de sua personalidade: um jornalista que seduzia pela inteligência, perspicácia, atenção e dissimulação. Ele parecia orgulhar-se da forma ardilosa como chegava a saber de tudo sem precisar utilizar as informações que detinha. E era humano e ético, o suficiente para evitar má utilização delas.

Como mantinha a dignidade se fazendo necessário em ambientes críticos era outro truque. Nenhum jornalista da época conseguiria, por exemplo, entrar e sair de um governo como o de Orleir Camely (1994/1998) sem uma única acusação. Mas ele atravessava as tendências ideológicas, ilicitudes e destemperos sem arranhão, enquanto ficávamos felizes de recebê-lo do outro lado, são e salvo.

Bom, Zé, vê se agora te comportas com esse teu jeito moleque! Ou, pelo menos, apara as unhas quando for brincar de vira-lata aí no céu…


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