quinta-feira, 21 de junho de 2007

CRIANÇAS PAGÃS VIRAVAM BORBOLETAS...


Océlio Medeiros*

O Frei José e o Padre Peregrino – dois missionários que passaram a figurar no folclore acreano – diziam que as crianças natimortas viravam anjinhos. Os meninos que morriam sem terem sido batizados, ou pagãos, transformavam-se nos enxames de borboletas amarelas que esvoaçavam sobre as poças, cheias de “cabeças-de-prego”, das águas podres, deixadas nas praias, após as enchentes e os repiquetes.

Os moleques acreanos raramente freqüentavam as aulas. Gazeteiros habituais, passavam o tempo caçando passarinhos com baladeiras e colhendo frutos nos quintais e nos matos. Ainda não havia merenda escolar. E a freqüência escolar só aumentou quando foram servidos munguzás e mingau de arroz.

Os meninos e meninas andavam pelas praias seminus, ou nus. Nadavam em grupos - daí porque se tornaram, inocentemente, precoces sexuais. Filharadas numerosas eram criadas soltas, os mais velhos cuidando dos mais novos, nos quintais, nas ruas, nas beiras de rios, nos matos e igarapés dos sítios.

Os “turcos” dominavam o comércio. E eles têm a sua responsabilidade nas práticas de pedofilia, abuso sexual de menores e exploração do trabalho infantil. Se estivesse vivo, o solteirão Mustafá prestaria melhor depoimento. Antes dos “turcos”, o machismo dos comandantes de gaiolas, dos seringueiros, dos caixeiros viajantes e dos soldados contribuiram para que a palavra acreana tivesse sentido pejorativo nos clássicos dicionários.

Será que os “besouros” (pedófilos) e os “papa-anjos” (tarados pelas menininhas) fazem parte da cultura acreana como herança do machismo, que desbravou e povoou o Noroeste?

ADOLESCENTES “A VER NAVIOS”

Havia raras escolas, educadores particulares ou pessoas de casa que pudessem desemburrar as crianças, fossem estas da cidade, dos povoados ou dos seringais. Meninos e meninas não tinham o que fazer. Os mais endiabrados se refugiavam nas curvas dos rios com medo do futuro, a olhar navios.

A alfabetização era mais caseira. As mães delegavam aos filhos mais velhos, que eram alfabetizados, as responsabilidades educativas. As irmãs mais velhas e mais inteligentes e letradas foram as primeiras professoras dos menores. Os pais não perdiam tempo com atividades domésticas: sempre foram machões, que emprenhavam as esposas e companheiras, teúdas e manteúdas a fim de poderem “dar conta” das raparigas e das “casas militares”.
Não havia nenhum futuro para os que não eram alfabetizados em casa ou nos grupos escolares do Acre Território. Não havia cálculos de PIB como hoje. Na administração territorial os setores de serviços eram as únicas fontes de emprego. Os que não podiam emigrar ficavam olhando o fundo do poço, procurando o futuro.

O Patronato Agrícola era a única escola profissional em Rio Branco. Sem cursos profissionalizantes, nem secundários e nem superiores, os recém saídos dos grupos escolares e das escolas isoladas ficavam nos alpendres dos barracões a olhar o primeiro navio da alagação.
Se não eram caixeiros, nem embarcadiços, ficavam dependentes dos pais e dos amigos. O patronato agrícola foi um fracasso. E a juventude sem horizonte marchava para a maturidade coçando saco, dançando, bebendo e se prostituindo.

O Dr. Peret – baixinho, gordinho, chefe escoteiro de perneiras e chapéu de rover – era o diretor do Patronato. Ministrava aulas práticas de esgrima com bastões de pontas de ferro, pelo Método Moreira César. Era uma “guerra de cuteladas”. E terminava sempre com o “golpe de prima” do vitorioso, e ferimento sangrante do vencido... A mulher do Dr. Peres socorria aos “caídos”, com compressas de arnica.

ASSIM ERA O “DESTINO” DA MOCIDADE

O destino, o futuro e as carreiras dos sem-profissões definidas eram como linhas traçadas entre as mãos, cama-de-gato ou aramados, que se fazem e desfazem.

Aqueles meninos, cujos pais eram comerciantes, bem empregados e contavam com rendas de alugueis, iam para Manaus e Belém a fim de estudarem e voltarem “preparados”. O Said (Farhat) foi estudar no Líbano, de onde voltou afrancesado. Ninguém era mandado para o Rio, ou São Paulo...

Nota: o texto acima faz parte do livro “Histórias Inconvenientes” que Océlio estará lançando ainda este ano em Brasília. A foto e a legenda são do editor desta página.

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